Chico Xavier repudiou o Roustanguismo? Não, realmente

No livro O Verbo e a Carne, José Herculano Pires mostra sua complacência com o amigo Francisco Cândido Xavier, ao qual atribuiu a obra deturpatória como "acidental". Na sua boa-fé, o sobrinho do contador caipira Cornélio Pires via em Chico Xavier um "ingênuo" que havia "embarcado" no Roustanguismo levado pela identificação com os ideais igrejeiros de Os Quatro Evangelhos.
Esta obra foi lançada por Roustaing em 1866 - três anos antes do falecimento de Kardec - , por meio de supostas mensagens espirituais trazidas pela "médium" belga Emilie Collignon, atribuídas aos quatro evangelistas, Mateus, Marcos, Lucas e João.
Os Quatro Evangelhos é o marco da "catolicização" do Espiritismo e "previa" a absorção, sob o pretexto do "ecumenismo", das demais crenças religiosas para uma só religião, um "espiritismo" completamente catolicizado e distante dos ensinamentos originais kardecianos.
Disse Herculano Pires no livro: "Chico Xavier tem sido vítima de mentirosos envolvimentos e sua obra chegou a sofrer deturpações, mas a verdade é que ele nunca apoiou Roustaing". Embora Herculano estivesse com suas boas intenções, ele na verdade havia se enganado e subestimado a deturpação espírita na obra do amigo de Pedro Leopoldo e Uberaba.
Imaginemos, como exemplo, dois amigos de infância. Um se guiou pela honestidade, traçando o caminho do trabalho honesto, das relações sociais salutares, do desempenho íntegro de suas atribuições morais. O seu amigo, em contrapartida, foi seduzido pela aventura infeliz do crime, dos delitos, das ações delinquentes, e, ainda que tivesse sofrido a influência de terceiros, deveria ser responsabilizado em parte dessa situação.
Temos o grande erro em blindar Chico Xavier para mantê-lo de pé no Espiritismo que o suposto médium contribuiu para arruinar. Seus erros foram graves, sua abordagem só "está de acordo com a Doutrina Espírita", oficialmente falando, porque a obra de Allan Kardec foi lapidada em tradução igrejeira de Guillón Ribeiro, o mesmo que traduziu os livros de J. B. Roustaing.
Infelizmente, poucos admitem que Chico Xavier adaptou a obra roustanguiana para a realidade brasileira. Superestimamos pontos polêmicos de Roustaing, como também superestimamos os conflitos de Chico Xavier com a igreja católica. São dois equívocos, que exageram a abordagem ao levar em conta apenas alguns detalhes pontuais.
É claro que, em dado momento, o jornalista Herculano Pires cansou de brigar com o igrejismo do "movimento espírita". E ele, que havia traduzido a obra kardeciana de maneira honesta e brilhante, combateu a deturpação espírita que fazia do Espiritismo uma "doutrina de papalvos" e denunciou o oportunismo de Divaldo Franco, baixou a guarda e, talvez enganado pela ilusão de fraternidade religiosa que prevalece no Brasil, acreditou numa confraternização entre místicos e científicos.
Escreveu Herculano, na citada obra co-escrita com Júlio Abreu Filho:
"Não é fácil compreendermos hoje o clima religioso que o Espiritismo se desenvolveu entre nós. Houve, naturalmente, a dissidência racionalista, constituída por elementos que tendiam para o aspecto racional da doutrina. Daí a divisão, acentuada por Canuto de Abreu, entre os espíritas místicos e científicos. Divisão que foi perdendo o seu sentido na proporção em que a obra Kardec era melhor compreendida, revelando a sua essência religiosa e sobretudo a sua natureza de elo entre a Religião e a Ciência".
Herculano, em outra passagem, pede para combater a mistificação roustanguista, lamentando o baixo efeito das denúncias da deturpação que atingiu o Espiritismo no Brasil:
"Apesar de tudo a propaganda continua e a obra deturpadora vai semeando o seu joio na seara. O silêncio estabelecido pelo "Pacto Áureo" deu resultados negativos, pois toda uma geração espírita se formou nesse período e agora está sendo colhida de surpresa pela "novidade" do Roustainguismo. Por esses frutos podemos avaliar a árvore. Qual o bom fruto que o Roustainguismo produziu? Qual?
Por tudo isso – e pelas suas conseqüências desmoralizadoras – é necessário que os espíritas sinceros não se calem. É preciso dizer, alto e bom som, nas palestras e conferências, nos artigos e nos livros, a verdade sobre a obra de Roustaing. A análise que acabamos de fazer tinha a pretensão de ser apenas análise – e acabou nos levando obrigatoriamente ao terreno da acusação. Porque não é possível calar diante da astúcia dos mistificadores e da fascinação dos que a aceitam e aplaudem.
É dever dos espíritas sinceros combater a mistificação roustainguista neste alvorecer da Era Espírita no Brasil. Ou arrancamos o joio da seara ou seremos coniventes na deturpação doutrinária que continua maliciosamente a ser feita".
ROUSTANGUISMO (OU ROUSTAINGUISMO) NÃO FOI SÓ "JESUS FLUÍDICO" NEM "CRIPTÓGAMOS CARNUDOS"
O combate ao Roustanguismo (ou Roustainguismo ou, segundo algumas fontes, Rustenismo, em sua forma aportuguesada) foi bastante parcial. Foi apenas nos aspectos mais polêmicos apresentados em Os Quatro Evangelhos. Foram dois: a tese do "Jesus Fluídico" e a tese dos "Criptógamos Carnudos".
A tese do "Jesus Fluídico" consiste na suposição de que Jesus Cristo não esteve encarnado entre nós, tendo sido um fantasma em toda a sua vida. A tese é claramente absurda. Jesus só apareceu "fantasmagórico" na chamada "ressurreição", onde se diz, tradicionalmente, que ele havia aparecido para seus principais apóstolos.
Evidentemente a vida ou mesmo a existência de Jesus Cristo é bastante controversa. Há quem diga que ele teria sido personagem fictício, a exemplo do que se suspeita do filósofo Sócrates. Mas as hipóteses que indicam que Jesus e Sócrates existiram são plausíveis e, se Jesus esteve entre nós, foi na forma de uma pessoa encarnada, diferindo apenas nos dados oficiais de nascimento e tempo de vida creditados pela Igreja Católica.
Jesus, segundo descobertas arqueológicas e historiográficas, teria nascido no começo de abril. Na ironia de se creditar o seu nascimento como "marco zero", Jesus teria, na verdade, nascido cerca de cinco ou seis anos antes da Era Cristã, sendo até gozado falar que Jesus Cristo nasceu em 5 ou 6 antes de Cristo.
Outro aspecto polêmico são os "criptógamos carnudos", que seria a reencarnação de espíritos considerados evoluídos, mas que haviam cometido alguma falta, à forma de vegetais, animais, insetos ou vermes. Isso seria uma maneira de expiação, na qual os espíritos evoluídos que se tornaram falidos em alguma ocasião teriam que passar para depurar a alma.
CHICO XAVIER E O MORALISMO PUNITIVISTA
É um equívoco, e isso temos que admitir em Herculano Pires - que acabou falhando no combate à deturpação, acreditando que poderia chamar alguns deturpadores para a recuperação das bases doutrinárias, na chamada "confraternização das galinhas com as raposas" - , dizer que Chico Xavier repudiou o Roustanguismo.
A verdade, mesmo, é que Chico Xavier, que teve uma formação católica ortodoxa que refletiu em rigorosamente toda a sua obra, adaptou o Roustanguismo para o contexto brasileiro, e os desvios doutrinários que o "médium" mineiro fez em relação à obra de Allan Kardec não podem ser subestimados nem considerados "acidentais" ou fruto de "exageros de entusiasmo" na origem católica.
Chico - que apenas retirou os aspectos polêmicos, se limitando a abordar o Jesus "naturalmente católico" e substituir os "criptógamos carnudos" pelos "bichinhos no mundo espiritual" - pegou um dos principais aspectos do Roustanguismo, o moralismo punitivista, do qual os "criptógamos carnudos" são apenas um detalhe delirante.
O moralismo de Chico Xavier é um dos mais perversos da bibliografia religiosa, mas o próprio Brasil, cego pela trave da religiosidade conservadora que, surpreendentemente, alcança até ateus e ativistas de esquerda, não consegue ver conservadorismo naquilo que lhe parece natural.
Desse modo, as ideias de Chico Xavier, explicitamente moldadas na Teologia do Sofrimento - que também guia o moralismo de Os Quatro Evangelhos - , corrente católica da Idade Média que faz apologia ao sofrimento humano como "caminho para receber as bênçãos de Deus" (o "quanto pior, melhor" da religião), são uma amostra dessa herança roustanguista, pois tais ideias estão ausentes na obra kardeciana.
Nos livros de Chico Xavier, verdadeiros manuais de religiosidade e moral conservadoras, desde Parnaso de Além-Túmulo - o estranho livro que supôs ter sido ditado por grandes escritores já falecidos - , há várias passagens que pedem ao sofredor extremo que aceite sua desgraça sem reclamar ou se sacrifique duramente para superar sua situação. Em muitos momentos, Chico Xavier defendia abertamente a submissão hierárquica e a dedicação ao trabalho exaustivo.
Um depoimento de Chico Xavier demonstra claramente seu vínculo à Teologia do Sofrimento:
"— Diz o Evangelho que as nossas provas são um índício, não um fim… Estamos, dentro delas fazendo um vestibular de promoção espiritual ou ficamos sob determinadas dependências…
O nosso espírito tem que estar ajustado às Leis de Deus. Paciência operosa, esperança ativa não são simples palavras… Podemos estar sofrendo, estar aflitos, mas, se estamos desesperados, criando problemas para os outros com os nossos problemas nós não estaremos atravessando os nossos problemas com as nossas almas ligadas às Leis de Deus… Não estamos liberados só porque sofremos; depende de nossa atitude a vitória que desejamos alcançar. Estejamos com o nosso pensamento em Deus, com a nossa alma a doar de si, sem pensar em si… Vamos podar o sofrimento daqueles que Deus nos deu à convivência, para que eles sejam mais felizes; calar as nossas dores, pacificar o nosso próprio espírito quando tudo nos induz ao desespero (…). Existe algo que nós podemos dar sem termos: é a felicidade! Precisamos aprender a sofrer sem mostrar sofrimento, atravessar dificuldade sem colocá-la na pauta dos outros… Estamos matriculados na prova; vamos ver qual será a nota".
Em outro depoimento, Chico Xavier demonstra que defende o trabalho exaustivo, o que derruba de vez a fama de "progressista" que, sem o menor fundamento mas movido por simbologias emocionais, determinados seguidores atribuíram ao "médium":
RECOMEÇO
Quando o teu próprio trabalho te pareça impossível ...
Quando a dificuldade e sofrimento te surjam a cada passo ...
Quando te sintas à porta de extremo cansaço ...
Quando a crítica de vários amigos te incitem ao abatimento e à solidão ...
Quando adversários de teus ideais e tarefas te apontem por vítima do azar ...
Quando as sombras em torno se te afigurem mais densas ...
Quando companheiros de ontem te acreditem incapaz a fim de assumir compromissos novos ...
Quando te inclines à tristeza e à solidão ...
Levanta-te, trabalha e segue adiante.
Quando tudo reponte no caminho das horas, não te desanimes, porque terás chegado ao dia de mais servir e recomeçar".
Ou este, relacionado à tese de que a encarnação é apenas um mero processo de "pagamento de dívidas morais":
"Tratemos de acumular créditos espirituais, para que a lei se sensibilize em nosso favor; quando somos úteis aos nossos semelhantes a lei vai nos transformando a quitação de nossos débitos em oportunidade de mais serviço".
Nada disso corresponde ao Espiritismo original e Chico Xavier defendeu essas ideias até o fim de sua vida. O grande problema é que a sociedade brasileira é tão conservadora que seus resíduos de conservadorismo estão presentes até mesmo em pessoas que não se imagina conservadoras, como músicos de rock, artistas modernistas, feministas, parte da comunidade LGBTT, jovens rebeldes em geral.
Em dado momento, pessoas assim expressam ideias terrivelmente conservadoras, como músicos de rock fascistas, artistas modernistas que são católico-medievais, feministas com resíduos machistas ao acolherem o fenômeno das mulheres-objetos, negros racistas contra sua raça, gays homofóbicos que defendem a estrutura familiar tradicional e jovens com linguagem punk defendendo, através do cyberbullying, pontos de vista retrógrados que são discordados pela pessoa agredida na Internet.
Por isso, não conseguimos enxergar o conservadorismo em Chico Xavier porque, simplesmente, a maior parte dos brasileiros vive numa bolha social cujo invólucro não se vê. Imaginamos o universo acima de nossa bolha abertos para nós, quando há uma barreira que é justamente o limite dessa bolha, que nos parece invisível.
Com isso, imaginamos que Chico Xavier nunca foi roustanguista, mas a verdade é que ele agiu, sim, para introduzir o Roustanguismo no Brasil, bem mais do que Adolfo Bezerra de Menezes, o "dr. Bezerra", um dos fundadores da "Federação Espírita Brasileira". Isso porque Bezerra apresentou Roustaing aos febianos, mas foi Chico Xavier que espalhou as sementes roustanguistas que cresceram tanto que não conseguimos ver essas árvores acima de nós.
Para piorar as coisas, ainda há uma verdadeira torcida organizada, um "Gaviões da Fiel espírita", que luta para "provar", mesmo sem o menor fundamento teórico, que Chico Xavier havia sido reencarnação de Allan Kardec. Nem em transe mediúnico, amigos!