Caráter duvidoso das "psicografias" requer mais dúvidas do que possibilidades



Dizia, com muita sabedoria, o pedagogo Allan Kardec, que quando uma obra tida como psicográfica apresentar algum ponto duvidoso, no que se refere à lógica e ao bom senso em diversos aspectos, como estilo pessoal, informações particulares etc, recomenda-se a rejeição imediata dessa obra, sem a menor hesitação.

Essa recomentação existe em vários momentos da obra kardeciana, principalmente em O Livro dos Médiuns, e isso é endereçado, para desespero dos brasileiros que cultuam Francisco Cândido Xavier, ao seu próprio ídolo, embora seus seguidores se esforcem em livrar o "médium" de qualquer responsabilidade negativa.

Várias obras dele apresentam uma infinidade de pontos duvidosos aqui e ali. Não são erros pequeninos, nem coisas sem importância, que se permita deixar para lá. São coisas graves, que mexem na memória de gente falecida, contaminando seu legado e, muitas vezes, distorcendo e deturpando a compreensão real do pensamento de um falecido, reduzido, nas "psicografias", a um mero propagandista religioso.

Sem que se haja uma teoria segura e consistente e sem um preparo prévio dos brasileiros, que já são desinformados sobre o que eles são e o que querem na vida, quanto mais para conhecer o "outro lado", o que Chico Xavier realizou nunca passou de uma aventura mistificadora, na qual contou a sorte de conveniências diversas vezes e de diversas formas tramadas, de forma a sair-se bem na fita, a ponto de poder trair os ensinamentos de Kardec e ainda ser considerado seu "fiel discípulo".

INCERTEZA POSITIVA

Um grande erro cometido por brasileiros é deixar a pendência da análise das "psicografias" de Chico Xavier sob uma linha de análise que podemos definir como a "teoria da Incerteza Positiva". Ou seja, trata-se de um fenômeno, ente ou obra que, mesmo apresentando dúvidas em vários aspectos, mesmo comprometendo sua hipótese de possível veracidade, ganham aceitação e são socialmente compartilhados.

Diferente dos conselhos dados por Allan Kardec, não se rejeitam as obras de Chico Xavier, mesmo com graves problemas em vários aspectos, vários deles realmente preocupantes - como a forma com que se espetaculariza as famílias de pessoas mortas que receberam do "médium" mensagens supostamente consoladoras de pretensas cartas "psicográficas" - , e suas obras repousam na zona de conforto das pesquisas inconclusivas, apenas sendo alvos de eventuais simulacros de investigação.

Essas "investigações", de cunho acadêmico, tecnológico ou jornalístico, nunca são feitos para rejeitar a obra xavieriana, antes apelando para a Incerteza Positiva, uma espécie de entendimento duvidoso, no qual não há conclusões seguras nem fechadas sobre o assunto, mas que mesmo assim autorizam a livre circulação e compartilhamento das obras em questão.

Esse é um procedimento errado e vai contra o rigor da razão de Kardec, pois este pensava exatamente o contrário. Para o pedagogo francês, se há aspectos duvidosos numa obra "mediúnica", rejeita-se a mesma de imediato, sem pensar duas vezes. No Brasil, esses aspectos duvidosos são deixados para lá, enquanto simulacros de estudos científicos e reportagens investigativas deixam a obra de Chico Xavier "em aberto", sob diversas desculpas, as principais a saber:

1) Há o pretexto das obras não trazerem mensagens "desagradáveis" nem baixarias ou ofensas;

2) Há nas obras a expressão de mensagens de cunho religioso, que, por si mesmas, são consideradas socialmente aceitáveis e compartilháveis por todos os indivíduos;

3) Não há uma questão quanto ao uso de direitos autorais quanto a obras "escritas" ou "ditadas" por supostos autores mortos, e certas correntes do Direito entendem que o "médium" pode ser responsável pelos direitos autorais dessas obras.

Juntando a isso, existe a própria condição subdesenvolvida de um Brasil de gente ao mesmo tempo desinformada e emocionalmente vulnerável. Tudo isso faz com que a mistificação religiosa esteja acima do Conhecimento e até mesmo tenha a pretensão de substitui-lo, se passando pelo mesmo. A Fé torna-se, no Brasil, aquilo que Allan Kardec reprovava severamente: um princípio que se impõe acima da Razão, sob a desculpa de, com isso, promover um equilíbrio.

Kardec, originalmente, falou no fisco da "fé cega". Uma Fé que se acha com mais razão que a Razão. No Brasil, essa "fé cega" é defendida não com essa palavra de sentido pejorativo, mas pelo eufemismo dos "olhos do coração". Como se o Coração reivindicasse para si o ato de pensar, quando o mero músculo cardíaco reflete mais uma simbologia sentimental e não racional.

Com a Incerteza Positiva que autoriza, mesmo com dúvidas pendentes, a legitimação informal das obras de Chico Xavier e derivados, o "espiritismo" brasileiro comete uma série de desserviços, permitindo a usurpação gratuita das memórias dos mortos, apenas sob a condição de transmitir mensagens religiosas e narrativas agradáveis, ainda que dramáticas.

Isso não representa, porém, um atenuante para tais usurpações, antes sendo um agravamento das mesmas, por entendermos que a Fé torna-se uma máscara para apropriações tão levianas, e isso não é bom de maneira alguma. Seria melhor rejeitar essas obras "mediúnicas", se é para termos um pingo de respeito às memórias dos mortos que não estão mais aí para reclamar.