"Psicografia" atribuída a Humberto de Campos aponta indícios de revanchismo

A suposta psicografia que Francisco Cândido Xavier fez levando o nome de Humberto de Campos e, depois de um processo judicial que terminou em impunidade a favor do "médium", em 1944, passou a ter o nome de "Irmão X", são, comprovadamente, falsas.
Uma simples leitura confirma isso. E em outra oportunidade vamos mostrar as diferenças gritantes entre a obra que o autor maranhense, membro da Academia Brasileira de Letras, deixou em vida, e a obra "psicográfica" lançada por Chico Xavier. São estilos completamente diferentes e as semelhanças, embora alardeadas, quase não existem e, quando há, soam paródicas.
Só um Brasil com um hábito deficiente de leitura - quando se lê livros, não há o preparo para uma compreensão real da obra lida - , que recentemente tornou-se receptivo a "livros para colorir", é que permite que as obras supostamente espirituais creditadas a "Humberto de Campos / Irmão X" sejam não só publicadas livremente, como acessíveis até de graça ou em preços baratos em sebos.
Em país menos ingênuo, tais obras seriam banidas completamente. Não seriam sequer publicadas e a editora da "Federação Espírita Brasileira" seria proibida de participar em bienais de livro, por decisão da Justiça. Mas como as paixões religiosas são um terreno fértil para a permissividade e, em nome da "liberdade da fé", se pode até mesmo o uso abusivo dos nomes dos mortos para mensagens abertamente fake, bastando apenas uma notável habilidade para a propaganda religiosa.
PROVÁVEL REVANCHISMO
A pretensa "parceria" que Chico Xavier disse ter desenvolvido com Humberto de Campos é uma coisa estranha. Ela teve origem antes de o suposto médium, acusado de sofrer de esquizofrenia, mas também de ser um habilidoso oportunista, teria inventado um sonho para forçar os dirigentes da FEB para aceitar a produção de livros sob o nome de Humberto de Campos.
Tudo começou em 1932, quando o escritor Humberto de Campos escreveu uma resenha de duas partes - acessíveis neste e em outro endereço - , que resultaram em dois artigos (solução dada pelos limites de espaço em jornal) do Diário Carioca, lançados em 10 e 12 de julho daquele ano.
O livro resenhado era o estranho Parnaso de Além-Túmulo, que apresentava poemas e prosas supostamente atribuídos a grandes escritores mortos. A resenha de Humberto aparentemente "reconhecia" as semelhanças que, supostamente, se atribuía à obra que autores mortos deixaram em vida. Mas a linguagem é irônica e o cronista aconselhava a Chico Xavier não investir nessas obras, para evitar concorrer com as obras dos autores vivos.
Eis que Humberto, em um dado dia, contraiu doença grave - seria uma maldição do "médium"? - e, com apenas 48 anos de idade, faleceu em dezembro de 1934. Foi aí que, em 1935, Chico Xavier, malandramente, teria inventado um sonho que, comunicado à FEB em carta, dizia mais ou menos o seguinte:
Chico Xavier via uma multidão enquanto andava em algum lugar, não identificado. De repente, dessa multidão, teria se destacado Humberto de Campos, que, amistosamente, teria perguntado ao jovem "medium":
- Você é o menino do Parnaso?
Diante da resposta afirmativa de Chico, o escritor maranhense se apresentou:
- Prazer, eu sou Humberto de Campos.
Diante disso, a FEB, vendo uma possibilidade de faturamento alto com um nome que, na época, gozava de grande visibilidade, aceitou a desculpa de Chico Xavier, e, de uma maneira bastante surreal, uma suposta parceria literária se deu a partir de um sonho, do qual nem se tem provas de que realmente houve, e pode ter sido uma mentira inventada pelo "médium".
Era como desses trotes nos quais seria duvidoso aceitar. Mas a ideia de Chico Xavier agradou, sobretudo, o seu descobridor, o ambicioso presidente da FEB, Antônio Wantuil de Freitas, que viu na oportunidade uma chance de faturar e enriquecer, através de um grande nome da literatura que, supostamente, "retornou" do mundo espiritual para "produzir novas obras".
O que chama a atenção é que o nome Humberto foi usado com preferência acima do habitual. Dos membros da ABL, Olavo Bilac havia sido o mais famoso membro usado em "psicografias" publicadas em Parnaso de Além-Túmulo. Poderia-se usar o nome de Machado de Assis, mas é curioso que ele não foi usado, apesar do enorme prestígio diante do público. Não se usou Machado para "produzir", por exemplo, a obra ufanista Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho.
Então, por que veio a ideia de usar Humberto de Campos, e não Machado de Assis? Isso indica que, por Machado ser muitíssimo popular - Humberto também era, nos anos 1930, mas em nível inferior ao do escritor carioca - , isso despertaria muita desconfiança.
O uso de Humberto já provocou o escândalo que causou, chegando ao processo judicial de 1944 no qual só não resultou na punição a Chico Xavier por conta da seletividade de nossa Justiça, que cria seus privilegiados para a impunidade de certos crimes.
O prestígio religioso era um desses privilégios, e isso permitiu que Chico fizesse o que quisesse com o nome de Humberto, apenas usando, para uso externo aos meios "espíritas", o pseudônimo de "Irmão X", escolhido em comum acordo pelo "médium" e por Wantuil.
Os escândalos se devem porque os meios literários, profundamente conhecedores dos estilos dos escritores, se revoltaram com as "psicografias", as quais apontavam fraudes vergonhosas. Eram identificados cacófatos constrangedores que Humberto não escreveria em sua obra.
Segundo Milton Barbosa, advogado dos herdeiros do autor maranhense, sobre o livro Boa Nova, de 1941, apontou alguns cacófatos: ""Observou este cacófato: “Que cada”? E este verbo. Já ouviu alguém dizer “testifique”? O verbo para o caso seria “testemunhar”, é claro. Acha o senhor possível que um escritor como Humberto de Campos escrevesse estas coisas?"
AMBICIOSO, CHICO XAVIER NÃO TERIA GOSTADO DAS CRÍTICAS
A imagem que se construiu de Chico Xavier, que o transforma praticamente em personagem de contos de fadas e se torna a base da idolatria que ele recebe nos últimos 40 anos - a partir de uma campanha travestida em cobertura jornalística montada pela Rede Globo de Televisão - , forjou uma pretensa reputação de "homem simples, sem ambições, humilde e bondoso".
Essa imagem é enganosa, se observarmos, a fundo, o passado que permitiu a popularização do suposto médium. É só verificar as fotos de Jean Manzon, na reportagem "Detetive do Além", de David Nasser, publicada pela revista O Cruzeiro de 12 de agosto de 1944, que se verá um Chico Xavier arrogante e presunçoso. Anos antes, em O Globo, de 1935, via-se Chico Xavier olhando de frente, com um semblante malicioso e pesado.
Mas, mesmo na velhice, Chico Xavier também não demonstrava a meiguice que tanto se atribui a ele. Há até mesmo uma foto em que ele cheira uma rosa com uma satisfação que beira a um sentimento de orgulho. No programa Pinga Fogo, da TV Tupi, no qual Chico Xavier se revelou profundamente reacionário, ele passava um semblante ranzinza, além de falar de maneira seca, sem a amorosidade que tanto é atribuída ao "médium".
E, diante disso, podemos inferir que Chico Xavier teria ficado irritado com a resenha de Humberto, que recomendou a ele não produzir mais "psicografias" para não "tirar o ganha-pão" dos escritores vivos. Um dado também a considerar é que Chico levou três anos para produzir o segundo livro "psicográfico", Cartas de Uma Morta, atribuído à sua mãe, Maria João de Deus, em 1935 e quatro para decidir usar o nome "Humberto de Campos", a partir de Crônicas de Além-Túmulo.
Ainda depende de investigação a forma como Chico Xavier teria se vingado de Humberto, mas a suposta "psicografia", por apresentar um estilo diferente do autor maranhense - o que deve ter sido de propósito, com o católico "médium" transformando o "espírito Humberto" num igrejista obsessivo - , traz um fortíssimo indício de que a "parceria" nada teve de amistosa, mas sim de uma grande molecagem que ofende a memória de um dos mais injustiçados escritores do Brasil.