Defenestrado pelo "movimento espírita", "médium" João de Deus tem vínculo com Chico Xavier



É muito fácil expulsar alguém quando ele traz algum incômodo. Mesmo se for um conselheiro ou algum parceiro que foi longe demais em um ato desonesto. O chamado "espiritismo à brasileira" tem desse costume, de empurrar com a barriga suas contradições e tirar do caminho aqueles que, de uma maneira ou de outra, representam um obstáculo no caminho.

O recente caso do "médium" João Teixeira de Faria, o João de Deus, latifundiário e dublê de curandeiro de Goiás, é ilustrativo. Ele era considerado "independente" do "movimento espírita", mas era visto como uma promessa de um novo "mensageiro" dentro do seu meio, até que denúncias vieram sobre crimes diversos cometidos pelo religioso.

O "médium", antes badalado entre os famosos e que chegou a receber até a apresentadora estadunidense Oprah Winfrey - que depois se arrependeu da sua atitude - , foi acusado de crimes sexuais, porte ilegal de arma e enriquecimento ilícito, entre outros. Antes, ele era acusado de charlatanismo e exercício ilegal da medicina, mas tentava abafar tais acusações através de advogados.


Doente, João de Deus, de 77 anos, já havia enfrentado um câncer, no qual teve a estranheza de recorrer a um hospital, o famoso Hospital Sírio-Libanês em São Paulo, em vez de apelar para a auto-cirurgia "mediúnica". Diante de tal controversa, João de Deus chegou a fazer uma pergunta irônica: "Barbeiro corta o próprio cabelo?".

Na última semana, João de Deus estava internado para tratar da saúde e cogitava-se, atá a edição deste texto, o seu retorno à prisão. As denúncias abalaram a reputação do "médium" e fizeram diminuir drasticamente o movimento em Abadiânia, que alimentava o turismo religioso em torno das atividades do "médium".

"MOVIMENTO ESPÍRITA" PASSOU A RENEGAR JOÃO DE DEUS

Suposto médium de atuação "autônoma" e "independente" do "movimento espírita" - representado pela "Federação Espírita Brasileira" - , João de Deus era visto como um potencial "mensageiro espírita" e quase foi acolhido oficialmente pela federação para tal tarefa.

Publicações "espíritas" o incluíram em matérias e João de Deus era badalado por várias celebridades, da apresentadora Luciana Gimemez ao craque Ronaldo Fenômeno, passando pela atriz Camila Pitanga e por Joyce Pascowitch, que publicava matérias sobre o "médium" no seu site Glamurama.

Um documentário a favor do "médium" havia sido lançado, João de Deus - O Silêncio é uma Prece, de Candé Salles, com narração de Cissa Guimarães. A cantora Madonna chegou a dizer que pretendia visitá-lo, meses antes de surgirem as denúncias contra ele.

Apesar de ser latifundiário e conservador (João chegou a ser filiado ao DEM), a imprensa conservadora superestimou o atendimento que o "médium" goiano deu ao ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva e o classificou como "amigo de Lula". Recentemente, João de Deus manifestou apreço ao então juiz e hoje ministro da Justiça de Jair Bolsonaro, Sérgio Moro, considerado algoz de Lula, chegando a dizer que gostaria de ver o magistrado presidindo o Brasil.



Com as denúncias, a situação mudou. A "Federação Espírita Brasileira" passou a renegar o "médium" goiano, alegando que "não aprova a sua prática de atendimento individual, nunca autorizada pelo regulamento da federação", e afirmando que "ele mesmo não se considerava espírita".

Mas o "não-vínculo" de João de Deus ao "movimento espírita" é desmentido quando o goiano, acusado de exercer ilegalmente a medicina e de cometer charlatanismo, foi apoiado por ninguém menos que Francisco Cândido Xavier, considerado a personalidade mais importante do "movimento espírita" brasileiro.

Em vez de lhe dar alguma advertência, Chico Xavier blindou o amigo e lhe ofereceu como instituição de trabalho a Casa Dom Ignacio de Loyola, em Abadiânia (cidade cujo nome é inspirado em Nossa Senhora de Abadia, santa de devoção do "médium" mineiro), mandando uma mensagem, em 18 de setembro de 1993, data do apadrinhamento:

"Prezado João, caro amigo, Abadiânia é o abençoado recinto de sua iluminada missão e de sua paz. Chico Xavier, 18-9-93".

Isso não só confirma o vínculo de João de Deus com o "maior médium do Brasil" e considerado a "pessoa mais importante do Espiritismo brasileiro" como impõe responsabilidades a Chico Xavier, que ultimamente é incluído na moda dos "médiuns que erram", uma estranha tendência de alardear, com certa ostentação, que "médiuns espíritas também erram, são imperfeitos e endividados".

A estranha tendência é feita para livrar os "médiuns" de assumir situações desagradáveis. Mas esse modismo dos "médiuns que erram muito" tornou-se uma concessão, porque antes era comum dizer que os "médiuns" somente eram considerados "responsáveis" por atitudes positivas, pois nas atitudes negativas, acusava-se a influência de outrem, sejam pessoas pervertidas encarnadas ou desencarnadas.

Atualmente, portanto, se fala dos "médiuns que erram" com a persistência fora do usual, o que traz uma grande desconfiança. Que as pessoas erram e são imperfeitas, isso é chover no molhado. O problema está no alarde um tanto espalhafatoso dos "médiuns que erram", que pode ser mais um tiro no pé no "movimento espírita".

Afinal, a atual atribuição, embora considerada "realista", elimina parte da reputação dos "médiuns". Ninguém vai orar pedindo proteção a um "médium que erra". Eles também passam a não serem mais vistos como "mensageiros", "salvadores da pátria", "milagreiros" ou "pacifistas". O antigo endeusamento é descartado, mas nada sobra de admirável dos supostos médiuns, nem mesmo da atual forma como é visto Chico Xavier.

Portanto, pois se até a caridade dos "médiuns" é duvidosa, pelos resultados bastante medíocres e precários causados - nada muito diferente da filantropia fajuta e espetacularizada de Luciano Huck, assumidamente admirador de Chico Xavier - , muito aquém das expectativas que se atribuem a tais atividades, então para que admirar os "médiuns"? Pelos memes que inserem seus rostos em paisagens floridas?

Além disso, a atitude da FEB de manter a imagem de João de Deus dissociada do "movimento espírita" é contradita pelo próprio apoio de Chico Xavier a ele, bastante explícito e com o objetivo de blindagem. Pelo valor que o "movimento espírita" dá a Chico Xavier, a associação de João de Deus com ele não pode de forma alguma ser subestimada. Até porque a própria trajetória de Xavier, com sua mediunidade irregular, ofereceu condições para surgirem figuras como o "médium" goiano.