'Fake news' atribuiu a Chico Xavier suposto pioneirismo sobre vida em Marte

O radialista e jornalista "espírita", o fluminense Gerson Simões Monteiro, presidente da Rádio Rio de Janeiro falecido em 2016, espalhou, alguns anos antes, uma tese digna de fake news, atribuindo a Francisco Cândido Xavier suposto pioneirismo nas descobertas sobre vida em Marte realizadas em 2004.
Um texto publicado no periódico "Correio Espírita" tentou forjar essa suposta façanha de Chico Xavier, supostamente com quase sete décadas de antecedência, em relação a descobertas feitas pela NASA, agência espacial dos EUA, através do robô Opportunity, no solo do planeta Marte, a partir de 2004.
Gerson Monteiro se baseia em reportagem da jornalista Roberta Jansen no caderno Ciências de O Globo, intitulada "O silêncio dos ETs", publicada em 13 de março de 2010. Além do Opportunity, que até 2007 trouxe informações confirmando ter havido depósitos de gelo em Marte, a Sonda Phoenix, pousando no planeta, descobriu, em 2008, vestígios de reservas de água.
O radialista cita como supostos pioneirismos as obras Carta de Uma Morta, atribuída à mãe de Chico Xavier, Maria João de Deus, lançada em 1935, e Novas Mensagens, atribuída a Humberto de Campos, lançada em 1939. Este segundo livro é destacado pelo articulista de "Correio Espírita".
Da obra supostamente atribuída a mãe de Chico Xavier - que os "espíritas", no Brasil, acreditam ter sido a "primeira astronauta brasileira", antecipando, em décadas, o hoje ministro da Ciência e Tecnologia do governo Jair Bolsonaro, Marcos Pontes - , segue o texto, em linguagem simplória:
"Vi-me à frente de um lago maravilhoso, junto de uma cidade, formada de edificações profundamente análogas às da Terra. (...) Vi homens mais ou menos semelhantes aos nossos irmãos terrícolas, mas os seus organismos possuíam diferenças apreciáveis. Além dos braços, tinham ao longo das espáduas ligeiras protuberâncias à guisa de asas, que lhes prodigalizavam interessantes faculdades volitivas. (...) O ar é muitíssimo mais leve: conhecem os enigmas profundos da eletricidade, que usam com maestria; as edificações são análogas às da Terra; a vida em Marte é mais aérea – poderosas máquinas; embora existam oceanos, há pouca água; sistemas de canalização; poucas montanhas".
Provavelmente desinformado das coisas ou manipulando as informações de maneira a favorecer o mito de Chico Xavier, Gerson tomou como base o que a repórter creditou como "trabalho pioneiro" do astrônomo estadunidense Frank Drake, a partir de 1950, sobre a possibilidade de haver vida em Marte. Gerson contestou isso e atribuiu ao suposto Humberto de Campos informação "mais pioneira" creditando o trabalho do Instituto de Tecnologia da Califórnia, feito em 1939. Escreveu Gerson:
"Embora a jornalista diga que a pesquisa de vida inteligente fora da Terra teve inicio a partir de 1950, citando o astrônomo Frank Drake, ela ignorou as experiências realizadas pelo Instituto de Tecnologia da Califórnia, conforme a seguinte informação do Espírito Humberto de Campos, nos seus relatos a respeito de Marte, no livro Novas Mensagens, publicado em 1939:
'Todos os grandes centros deste planeta (Marte), esclareceu o nosso amigo e mentor espiritual, sentem-se incomodados pelas influências nocivas da Terra, o único orbe de aura infeliz, nas suas vizinhanças mais próximas, e, desde muitos anos enviam mensagens, ao globo terráqueo, através das ondas luminosas, as quais se confundem com os raios cósmicos cuja presença, no mundo, é registrada pela generalidade dos aparelhos radiofônicos.
Ainda há pouco tempo, o Instituto de Tecnologia da Califórnia inaugurou um vasto período de experiências, para averiguar a procedência dessas mensagens misteriosas para o homem da Terra, anotadas com mais violência pelos balões estratosféricos, conforme as demonstrações obtidas pelo Dr. Robert Millikan, nas suas experiências científicas'”.
Ora, se a mensagem recebida do Espírito Humberto de Campos por Chico Xavier se deu no dia 25 de julho de 1939, e se o mentor espiritual utiliza a expressão “ainda há pouco tempo”, isto é, antes dessa data, logo podemos concluir que a ciência terrena se preocupa com esse assunto há mais de 65 anos, e não 50, como afirma a jornalista Roberta Jansen.
A propósito, o Dr. Roberto Millikan, citado na mensagem, foi um Cientista americano famoso dos anos vinte, e o segundo americano a receber o Prêmio Nobel em física em 1923 pelo seu estudo sobre a carga eletrônica elementar e o efeito fotoelétrico. Ele não só foi um grande cientista, mas o seu lado religioso e a sua natureza filosófica eram evidentes tanto nas conferências dele na reconciliação de ciência e religião, quanto nos quatro livros publicados.
Millikan via no Universo e nos eventos humanos a manifestação de uma inteligência superior. Afirmava que o único fundamento válido para o conhecimento racional consistia na combinação do espírito do físico com o do religioso".
O que podemos inferir é que Chico Xavier, muito provavelmente, copiou uma reportagem citando o cientista Robert Millikan, como naqueles trabalhos de plágios e pastiches das quais, lembremos, ele não fez sozinho, contando com a ajuda da equipe editorial da "Federação Espírita Brasileira" e de consultores literários a seu serviço.
O que Gerson ignora é que o assunto da possibilidade de haver vida em Marte não surgiu no século XX e, assim como no caso da glândula pineal, o "pioneirismo" secundário de Aaron Lerner tratava de um tema longamente estudado, o mesmo ocorreu com Frank Drake.
Gerson reproduz um trecho da reportagem de O Globo e deve ter ignorado o nome dos verdadeiros pioneiros nos estudos sobre vida em Marte, ao publicar o seguinte parágrafo:
"A ideia da existência de ETs inteligentes começou a ganhar força e a povoar o imaginário da população em geral e de escritores de ficção científica em particular a partir de observações feitas pelo astrônomo Giovanni Schiaparelli, em 1877, de um telescópio recém-construído. Schiaparelli notou que a superfície do planeta vermelho era marcada por linhas e sulcos intrincados, que chamou de canais. Ainda no século XIX, o astrônomo americano Percival Lowell retomou a ideia dos canais marcianos — ele chegou a criar um centro para estudá-los, popularizando-a. Tais canais, sustentava Lowell, só poderiam ter sido construídos por uma inteligência superior. A coisa chegou a tal ponto que ele chegou a localizar a região onde seria a capital de Marte, numa confluência de canais".
Giovanni Schiaparelli foi um astrônomo italiano que viveu na mesma época de Allan Kardec, e identificou, com seu telescópio, canais fluviais em solo marciano. A hipótese de haver água em Marte, indício de vestígio de vida humana através da construção de canais artificiais, já havia sido cogitada pelo filósofo, padre anglicano e historiador da ciência inglês, que popularizou a expressão scientist (cientista), William Whewell, que apontou tal vestígio em 1854.
No artigo, Gerson cita também mensagens supostamente atribuídas aos espíritos de Emmanuel e Abel Gomes, além de usar, tendenciosamente, para fins igrejistas, a frase de Jesus de Nazaré citada por Allan Kardec, "há muitas moradas na casa de Deus pai", para encerrar o seu texto, feito para alimentar o sensacionalismo religioso em torno de Chico Xavier.
Gerson, apesar de reproduzir o parágrafo que menciona o astrônomo estadunidense Percival Lowell - que está para a vida em Marte assim como Wolfgang Bargmann está para a glândula pineal - , ignora completamente o trabalho do estudioso.
Percival Lowell foi o primeiro que aperfeiçoou as pesquisas a respeito da possibilidade de haver água e vida em Marte, e divulgou suas observações numa trilogia de livros, Mars (1895), Mars and its Canals (1906) e Mars as the Abode of Life (1908), o que quer dizer que o terceiro volume foi lançado dois anos antes de Chico Xavier nascer.
Se, em relação a Wolfgang Bargmann, o "pioneirismo" de Chico Xavier, creditado a 1945, apresenta dois anos de defasagem, a façanha, no caso da vida em Marte, também é desmentida quando se vê que o "pioneirismo" de 1935 ou 1939 - ainda mais usando de forma sensacionalista o nome de Humberto de Campos - , na verdade, aponta uma defasagem de até 45 anos em torno dos estudos de Lowell.
Devemos lembrar que descobertas científicas não necessariamente trazem coisas inéditas. Não podem ser consideradas como o pastel feito na hora, preparadas há pouco tempo e imediatamente servidas. Muitas das hipóteses trazidas pelas descobertas foram longamente cogitadas, e não raro gerações de cientistas testam teorias que podem levar a fracassos ou sucessos, ou a trazer avanços, como nos casos de Lowell e Bargmann, que ajudam a impulsionar estudos que levem a descobertas científicas.
A possibilidade da presença de água e vida humana em Marte era um assunto muito longo nos anos 1930, tendo virado enredo de ficção científica desde que Jules Verne lançou seus livros, ainda no século XIX. Portanto, é impossível atribuir pioneirismo à obra de Chico Xavier, uma vez que ele já tratava de um assunto muito velho, e possivelmente deve ter copiado as informações inseridas em Cartas de Uma Morta e Novas Mensagens de reportagens referentes aos estudos sobre Marte já realizados naquela época.