'Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho' mostra sua farsa ao não trazer revelações históricas

Escrito por Francisco Cândido Xavier e pelo presidente da "Federação Espírita Brasileira", Antônio Wantuil de Freiras sob encomenda do chefe do Departamento de Imprensa e Propaganda do Estado Novo, Lourival Fontes - mediante um acordo de que o "movimento espírita" não seria mais reprimido por ações policiais - , o livro creditado tendenciosamente ao espírito de Humberto de Campos e lançado em 1938 aponta um sério problema.
Esse problema consiste de que o livro, supostamente uma obra de revelações sublimes da esfera espiritual, não estabeleceu ruptura alguma com a historiografia oficial que prevalecia sobre os livros didáticos, que estabelecia uma narrativa romantizada e voltada a heroificação de políticos, militares e monarcas, além de alguns eventuais ativistas.
O livro não rompe com paradigmas ufanistas que definem o suposto Descobrimento do Brasil como um fato sublime. Pelo contrário, glorifica esse evento, ocorrido em 22 de abril de 1500, como o "marco zero para a Pátria do Evangelho", incluindo uma narrativa piegas da "euforia dos espíritos benfeitores" com o acontecimento, o que é uma incoerência.
Afinal, abordagens mais realistas da História do Brasil alertam que a historiografia oficial menosprezava o fato de que o Brasil havia sido previamente povoado por povos que arqueólogos consideram como provavelmente vindos da Polinésia (ilhas do Sul do Oceano Pacífico) e que se formaram os povos indígenas brasileiros.
Além disso, o chamado "descobrimento" era, na verdade, uma expedição meramente econômica, quando navegadores a serviço de Portugal, e este, por sua vez, integrando uma rede de relações econômicas comandada pela Grã-Bretanha, viajaram para a "terra nova" visando obter para si várias riquezas, entre elas o Pau-Brasil, tipo de árvore leguminosa que inspirou o nome do novo país, fundado sob o domínio da coroa portuguesa.
A abordagem do livro "mediúnico" esteve longe de oferecer revelações que seriam próprias de uma historiografia mais realista e consistente - elas teriam incluído até mesmo viagens de Pedro Álvares Cabral cujos documentos se perderam no terremoto de Lisboa em 1755 - , com abordagem crítica que deveria constar em revelações espirituais bastante sérias e comprometidas com o Conhecimento.
Em vez disso, o que se viu foi o mesmo conteúdo rasteiro dos livros didáticos conservadores da época, preocupados mais em promover pretensos heróis - seja um caricato Tiradentes feito um clone de Jesus de Nazaré (o qual foi condenado à forca cabeludo e barbudo, e não com a cabeça raspada e rosto liso que a realidade mostrava), seja um Duque de Caxias e um Conde d'Eu comandando a Guerra do Paraguai (uma visão direitista de atribuir governos de esquerda latino-americana como "caudilhismo") - do que mostrar uma história real da formação do nosso Brasil.
A situação chega ao ponto patético e irreal de definir o imperador Dom Pedro II e sua filha, a Princesa Isabel (esposa de Conde d'Eu - Louis Philippe Marie Ferdinand Gaston; Neuilly-sur-Seine, francês naturalizado brasileiro - , que chefiou, depois de Luís Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias, as tropas brasileiras que promoveram a carnificina no Paraguai sob as ordens da monarquia britânica), como "ativistas do Abolicionismo".
DOM PEDRO ERA HESITANTE QUANTO À ESCRAVIDÃO
Mesmo o cotidiano histórico dos brasileiros na época admitia que Dom Pedro II teve uma postura hesitante quanto à escravidão, atividade econômica de natureza desumana e racista - que primeiro tentou explorar mão-de-obra indígena, depois usando a mão-de-obra negra, de ascendência ou origem africana - que predominava no Brasil. Durante anos mesmo o movimento da Conjuração Mineira (ou Inconfidência, conforme a narrativa oficial) não adotava a postura abolicionista, por serem muitos de seus membros senhores de engenho.
O imperador não era favorável à escravidão, mas nada fez para acabar com esse triste quadro no mercado de trabalho brasileiro, em que escravos eram tratados como animais e comercializados como se fossem objetos, estando sujeitos a terríveis humilhações impostas pela sociedade retrógrada da época.
Até o tutor de Dom Pedro II, o político José Bonifácio de Andrada e Silva, o Patriarca da Independência (foi ele que realizou, de fato, a independência do Brasil do reino de Portugal), já manifestava uma postura abolicionista em 1823.
A Grã-Bretanha também determinava, na época, o fim do trabalho escravo, ameaçando bombardear navios negreiros, visando, com essa causa, implantar a industrialização capitalista vigente desde 1750 na monarquia europeia. A industrialização também apresentava padrões desumanos e perversos de trabalho, mas apresentava pequenas evoluções diante do escravagismo dominante no Brasil.
Segundo acreditam os "espíritas", a partir do livro ufanista de Chico Xavier - mas creditado a Humberto de Campos - , Dom Pedro II teria sido Cassius Longinus, no tempo de Jesus Cristo, e Isabel teria sido uma filha do mesmo nome.
Mas a atribuição de pai e filha como "militantes do Abolicionismo" foi um mito que a FEB criou em fins do século XIX para obter empréstimos da monarquia brasileira, através dessa visão ufanista desenvolvida às vésperas da Proclamação da República. O Segundo Império acabou, mas ficaram as atribuições de que Pedro II e Isabel eram "abolicionistas", o que não corresponde à verdade.
A História registra que uma série de jornalistas e parlamentares lutaram pela Abolição durante décadas. Nomes como os irmãos Rebouças, André e Antônio, e José do Patrocínio, se tornaram notórios ativistas pelo fim da exploração do trabalho escravo no Brasil.
A atuação de Adolfo Bezerra de Menezes, um dos fundadores da FEB, no Parlamento brasileiro, registrada no livro de 1869, A Escravidão no Brasil e as Medidas que Convém Tomar para Extingui-la sem Dano para a Nação, é correta, mas não foi marcante e havia sido tardia demais para colocar o médico, militar e "espírita" como um dos mais nobres abolicionistas de nossa História.
Há relatos de racismo no livro, definindo negros como "selvagens" e tratando os indígenas como "ingênuos" (sob o eufemismo de "puros") em Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, o que é um prisma conservador, mesmo na época, se percebermos que, na Europa, havia uma nova tendência da abordagem histórica mundial, a História das Mentalidades.
Na época em que o livro "mediúnico" era lançado, os franceses Marc Bloch e Lucien Febvre fundaram a Escola dos Annales, que introduziu a História das Mentalidades como alternativa à História dos Acontecimentos (do qual se insere a obra "espírita", na forma de uma historiografia medíocre), substituindo a historiografia que exaltava militares, políticos e celebridades pela abordagem que se preocupava mais com hábitos e costumes sociais e à interpretação objetiva dos fatos.
HUMBERTO DE CAMPOS NUNCA TERIA ESCRITO O LIVRO
Sabemos que Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, como toda obra creditada a Humberto de Campos ou Irmão X, nunca teria sido escrita pelo autor maranhense a que se atribui oficialmente este livro.
A obra destoa do estilo original do autor maranhense e o único vestígio que lembra o trabalho de Humberto está relacionada ao capítulo "A Lei das Aposentadorias", de O Brasil Anedótico, de 1927, obra original do escritor e membro da Academia Brasileira de Letras que foi plagiado no livro "psicografado". É um plágio risível, pois o livro "mediúnico", pretendendo parecer sério, no entanto recorreu a uma obra humorística para copiar um de seus capítulos.
O livro é risível e não tem o estilo de escrita bem feita de Humberto. É um dos primeiros desleixos em relação aos livros Palavras do Infinito e Crônicas de Além-Túmulo (que também tem um plágio de O Brasil Anedótico), porque estes foram cautelosos nos pastiches literários, através de uma minuciosa revisão e colaboração de consultores literários, que se afrouxou nas publicações posteriores.
Humberto de Campos poderia não ter tido necessariamente um dom de historiador. Mas ele também não arriscaria a desempenhar mal essa tarefa, como supostamente se atribui em Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho. E o autor maranhense também não defenderia uma causa dessas, mais própria de um Plínio Salgado e de um Menotti del Picchia, líderes do Integralismo, pela perspectiva fascista que sempre se vê num país querendo dominar o mundo, mesmo no âmbito da religião.
Portanto, só essas análises já permitem seguramente definir Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho como uma farsa, uma "patriotada" literária sem muita serventia, comprometida com a mistificação religiosa e cheia de profundas falhas historiográficas, como atribuir ao imperador Dom Pedro II um ativismo abolicionista que a própria História do Brasil comprovou nunca ter existido.