Chico Xavier: 75 anos de impunidade


JOÃO FREDERICO DE MOURÃO RUSSELL, COM SUA JUSTIÇA SELETIVA, AJUDOU A CONSTRUIR O MITO DE CHICO XAVIER.

É perigoso construir mitos através de uma longa combinação de conveniências. É por meio desse processo que se pode transformar mentiras descaradas em verdades indiscutíveis e figuras arrivistas em pretensas unanimidades.

O mito de Francisco Cândido Xavier, ou melhor, Chico Xavier, tornou-se um caso dos mais traiçoeiros e, preocupantemente, bem-sucedidos de como o arrivismo pode alcançar níveis abusivos de manipulação das circunstâncias.

Hoje, 23 de agosto, completam os 75 anos de impunidade de Chico Xavier no caso Humberto de Campos, tornando-se, portanto, o único caso em que a usurpação de um nome de autor ilustre e falecido pode se tornar não apenas impune mas socialmente aceita e estimulada, abrindo precedentes para que um seleto número de escritores, supostamente "médiuns", fizessem o que quiserem com os mortos, a ponto de botar neles pensamentos que nunca, em nenhum momento, defenderiam.

O juiz suplente da 8ª Vara Federal Criminal do então Distrito Federal, o hoje município do Rio de Janeiro, o depois celebrado jurista João Frederico Mourão Russell, julgou "improcedente" a ação judicial movida pelos herdeiros de Humberto de Campos contra Chico Xavier e a FEB.

Os herdeiros foram a viúva, Catarina Vergolino de Campos e os filhos Humberto, Henrique e Maria de Lourdes. A ação judicial consistia em pedir perícia para verificar se as supostas psicografias eram autênticas ou não. No caso positivo, os herdeiros ficariam com parte dos lucros dos direitos autorais No caso negativo, Chico e a FEB, na pessoa do presidente Antônio Wantuil de Freitas, teriam que indenizar os herdeiros por falsidade ideológica e apropriação indébita do nome de um autor morto.

Wantuil seria, muito provavelmente, co-autor das supostas psicografias, na verdade co-escritas com Chico Xavier. Os estilos dos livros atribuídos a Humberto de Campos fogem do estilo original do autor maranhense. Enquanto este tinha um estilo ágil, culto mas acessível, de narrativa, usando temáticas laicas e eventual senso de humor, a obra "mediúnica" revelava outro estilo, com escrita pachorrenta, temática igrejista e moralista, linguagem forçadamente culta e cansativa e narrativa melancólica e deprimente.

O juiz Mourão Russell não analisou o problema da natureza textual e se limitou apenas à questão preliminar dos direitos autorais, acreditando não haver problema que supostos médiuns apresentassem obras creditadas a autores mortos e de produção supostamente inédita, sem vestígio aparente de material já lançado ou lançável.

Esse parecer foi dado apesar de haver, em Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, de 1938, um plágio de um capítulo do livro satírico original de Humberto, O Brasil Anedótico, de 1927, "A Lei das Aposentadorias", relatado nesse link. Matéria da Revista da Semana, em 1944, já havia discutido esse plágio, que Wantuil, mentirosamente, creditou como uma inocente "reiteração das ideias escritas pelo autor em vida".

Fez Mourão Russell no seu parecer jurídico, bem nos níveis da seletividade da Justiça que hoje se observa na Operação Lava Jato, conforme narra a Revista da Semana de 02 de setembro de 1944:

"Decidindo a questão, o ilustre magistrado afirmou que a família de Humberto de Campos não tem direito à reclamação inicial do pleito movido contra a Federação Espírita Brasileira, por haver a sua editora divulgado as obras psicografadas de Francisco Cândido Xavier, concluindo que... "a presente ação declaratória, tal como está formulada a conclusão inicial, jamais poderia ser julgada improcedente, se fosse admissível. Isto posto: julgo a suplicante carecedora da ação proposta e a condeno nas custas".

A ação judicial foi considerada "improcedente" e Dona Catarina Vergolino de Campos teve que arcar com os custos judiciais. Juridicamente, a ação resultou num empate jurídico, mas é um daqueles empates que trazem vantagem a uma das partes, como se observa nos campeonatos esportivos.

Chico Xavier e a FEB, dessa forma, saíram favorecidos e fortalecidos, e em seguida surgiram interpretações jurídicas das quais a propriedade intelectual dos supostos autores mortos pertence ao "médium". Ou seja, a própria Justiça consente com uma perversidade: permite que supostos médiuns sejam "donos" dos mortos, que já perderam seus corpos físicos na Terra e ainda podem ser usados por outras pessoas em mensagens escritas por estas.

Chico Xavier apenas foi obrigado a inventar um pseudônimo para o "seu Humberto de Campos". Mas esse codinome foi adotado para uso externo. Ele parodiava um dos pseudônimos que o próprio autor, em vida, usou em suas obras satíricas: Conselheiro XX. O "apelido espiritual" adotado foi Irmão X. Mas nota-se que, enquanto Conselheiro XX se lê "Conselheiro Vinte", Irmão X se lê "Irmão Xis".

O uso externo corresponde ao uso adotado fora dos meios "espíritas", pois o nome "Irmão X" é usado para evitar o uso oficial do nome do famoso escritor maranhense. De acordo com o próprio Chico Xavier, o pseudônimo foi adotado para "evitar novos dissabores". Mas, dentro dos meios "espíritas", é como se o pseudônimo "Irmão X" inexistisse ou fosse secundário, porque seus integrantes acreditam continuar sendo o "espírito Humberto de Campos". Da lavra de Chico Xavier, a primeira obra creditada a "Irmão X" é Lázaro Redivivo, de 1945.

A liberação judicial de João Frederico Mourão Russell foi o chute inicial de uma bola de neve que cresceu demais, porque abriu caminho para a ascensão descontrolada do mito arrivista de Chico Xavier que, de conveniência em conveniência, chegou à imagem divinizada dos dias atuais.

REPROVAÇÃO POR PARTE DE ALLAN KARDEC

O uso de nomes ilustres, como foi feito pelo suposto médium Chico Xavier, seria reprovado, com firmeza, por Allan Kardec, na medida em que representa um artifício para promover mistificação. O apelo sensacionalista de Parnaso de Além-Túmulo já é um alerta grave, pois seria bom demais para ser verdade haver uma "enorme reunião literária" em torno de um anônimo matuto mineiro. A obra, sabe-se aqui, apresenta dúvidas que põem em xeque qualquer chance de veracidade.

Vejamos o que diz O Livro dos Médiuns, no Capítulo 24, Identidade dos Espíritos, num trecho do item 256:

"(...)

A situação é outra quando um Espírito de ordem inferior se enfeita com um nome respeitável para se fazer acreditar. E esse caso é tão comum que não seria demais manter-se em guarda contra esses embustes. 

Porque é graças a nomes emprestados, e sobretudo com a ajuda da fascinação, que certos Espíritos sistemáticos, mais orgulhosos do que sábios, procuram impingir as idéias mais ridículas.(2)

Assim a questão da identidade, como dissemos, é mais ou menos indiferente quando se trata de instruções gerais, desde que os Espíritos mais elevados podem substituir-se mutuamente sem que isso acarrete conseqüências. Os Espíritos superiores constituem, por assim dizer, uma coletividade, cujas individualidades nos são, com poucas exceções, completamente desconhecidas. O que nos interessa não são as pessoas, mas o ensino. Ora, se o ensino é bom, pouco importa que venha de Pedro ou de Paulo. Devemos julgá-lo pela qualidade e não pelo nome. Se um vinho é mau, não é a etiqueta que o faz melhor. Mas já é diferente nas comunicações íntimas, porque então é o indivíduo, ou sua pessoa mesma que nos interessa. É pois com razão que, nessa circunstância, se procure assegurar de que o Espírito manifestante é realmente o que se deseja".

CONCLUSÃO

A seletividade da Justiça inocentou alguém que se aproveitou, de maneira leviana, do prestígio de um autor falecido. Há um sem-número de leviandades que foram consentidas uma a uma, e que fez de Chico Xavier, um suposto paranormal de ambições traiçoeiras, um mito que cresceu vertiginosamente, abrindo precedentes para uma tendência infeliz muito comum no Brasil.

Isso fez com que pessoas desonestas ou mesmo criminosas pudessem cometer atos equivocados graves e se livrarem de encrencas, transformando seus erros graves ou crimes em trampolins par sua ascensão e prestígio social. Nomes diversos que vão de músicos canastrões que fazem sucesso estrondoso até assassinos que saem da cadeia e ganham a impunidade plena - em certos casos, com apoio de parte da sociedade - revelam esse apreço do Brasil ao arrivismo.

O próprio exemplo de Jair Bolsonaro, um militar rebelde que ameaçou explodir quartéis, tornou-se presidente da República num contexto em que um considerável número de brasileiros dá consideração aos arrivistas, num cenário social de profunda mediocridade e prevalência do "jeitinho brasileiro". Outro beneficiado desse contexto é Guilherme de Pádua, ator canastrão que matou a colega Daniella Perez, saiu da cadeia e hoje vive como sub-celebridade religiosa.

Casos assim têm Chico Xavier como precedente, porque ele causou escândalos sem necessidade, mas por culpa do próprio "médium", por ter usado os nomes de autores mortos para lançar livros de apelo sensacionalista e conteúdo mistificador, calcado no Catolicismo medieval, apesar do rótulo "espírita". E esse uso de nomes ilustres por Chico Xavier consistiu numa prática já previamente reprovada pela literatura kardeciana original. Chico Xavier foi o primeiro criminoso impune do Brasil contemporâneo.