"Fazer o bem sem olhar a quem" é um termo vago e impreciso



A emotividade tóxica da ideia de "caridade" faz com que a filantropia seja mais um gancho para idolatrias mais ou menos assumidas, além de um "balé das palavras" nas quais se fala muito e se faz muitíssimo pouco.

Francisco Cândido Xavier era um desses sujeitos que usavam demais as palavras, desperdiçando material de mais de 400 livros - é verdade que vários deles eram pequenos, com poucas páginas, mas mesmo assim foi desperdício de papel - para vender mensagens melífluas que só servem para deslumbrar as pessoas.

Isso é o perigo que havia sido alertado por Allan Kardec. A ideia de usar do artifício das palavras melífluas, para promover mistificação, idolatria, fanatismo e fé cega. As frases de Chico Xavier, meros jogos de trocadilhos semânticos, nem precisavam ser ditas, por serem mensagens de auto-ajuda barata e meros artifícios de linguagem, como na frase acima:

"O que fazemos ao próximo, com sinceridade de propósitos, fazemos a nós mesmos: Todas as vezes em que levantamos um caído nos levantamos também com ele".

Fácil dizer, difícil fazer. E a ideia de "fazer o bem sem olhar a quem", de autoria anônima mas associada constantemente a Chico Xavier, também mostra esse caráter vago de uma "caridade" que muito se fala e quase nada se faz, a não ser pelos limites do Assistencialismo, que era o que o "médium" fazia, não diretamente - na verdade, ele pedia aos outros para fazer essa "caridade" - , e antecipando exemplos hoje conhecidos como os de Luciano Huck no Caldeirão do Huck (Rede Globo).

Primeiro, porque essa frase é apenas um jogo de rimas. Prefere-se brincar com as palavras do que ajudar, realmente, o próximo. As favelas continuam com sua arquitetura caótica e sua realidade degradada e ninguém faz coisa alguma para superar isso.

Por outro lado, as pessoas que com muita facilidade choram lágrimas de êxtase religioso, através da masturbação pelos olhos da comoção feita entretenimento, caprichando na pose chorosa de olharem para o alto com as mãos unidas em pose de bênção, só ajudam na base de tratar os pobres como se fossem lixeiras, dando a eles mantimentos de marcas ruins, roupas fora de moda ou com algum defeito (manchas ou rasgos) e outros materiais qualquer nota.

Ah, quantos balés de palavras dóceis e meigas circulam no imaginário religioso. Quantas lágrimas desperdiçadas pelo êxtase fácil das "lindas estórias", que escondem o perverso sentido de se divertir com a tragédia e o sofrimento alheio, na ilusão dos devotos serem falsamente inocentados de culpa porque os sofredores conseguiram vencer seus infortúnios, e não sem dor.

SEM OLHAR A QUEM? OU SEM SABER O QUÊ?

A ideia de "fazer o bem sem olhar a quem", em tese, sugere uma caridade sem que se observe o caráter e o perfil do beneficiado. Em tese, tudo bem. Mas essa frase, mais um jogo de rimas do que uma ideia a reforçar um ato, só serve para o deleite dos que não querem ajudar de verdade, mas preferem bancar os "bons moços" na sociedade.

É muito fácil falar em "caridade", idolatrar um suposto benfeitor, como Chico Xavier e Madre Teresa de Calcutá, em vez de ajudar o próximo de verdade, em ações que ultrapassam os clichês religiosos e não requerem que fiquemos parados com idolatrias baratas e fanatismos místicos.

A gente até pergunta que real sentido tem essa frase? Afinal, essa frase "fazer o bem sem olhar a quem" apresenta um sentido ambíguo. Primeiro, a frase é muito vaga e imprecisa. Que bem faremos? A quem vamos ajudar? A frase pode trazer interpretações como "fazer o bem sem ver resultados", ou "fazer o bem sem objetivo", e o próprio sentido de "fazer o bem", nesta frase, é muito abstrato.

Essa frase nada nos diz. Pois não se define o que é "fazer o bem" e, na vida complexa em que vivemos, um ato pode ser benéfico para um e maléfico para mais gente. Podemos "fazer o bem" inocentando um assassino, mas isso representa uma ameaça a um número maior de pessoas.

Nas supostas psicografias de Chico Xavier, por exemplo, o que pode parecer um "bem" pode soar um "mal". A usurpação dos nomes dos mortos famosos, dos quais Humberto de Campos é o maior exemplo, pode ser um atentado à memória das personalidades que não estão mais entre nós e que de modo nenhum merecem serem usadas a bel prazer por quem quer que seja.

E as "cartas mediúnicas", também vindas de Chico Xavier? Elas não escondem a usurpação de pessoas mortas comuns, a promoção de um "médium" às custas das tragédias familiares, a exploração sensacionalista da dor humana e a espetacularização da morte? Não seriam essas atividades, tidas como "a maior caridade" de Chico Xavier, em verdade atos extremamente perversos e levianos?

O que é "fazer o bem" para uns pode ser um mal para outros. Muitas vezes é melhor uma desilusão do que uma ilusão, e os infortúnios, em dose moderada, podem reeducar a vontade humana. Quando demais - infelizmente, o "espiritismo" brasileiro defende a overdose de infortúnios - , as pessoas se brutalizam, se degradam moralmente e pode atingir até mesmo a saúde física e psicológica de maneira muito grave.

Neste caso, não há "bem" que justifique o excesso cotidiano de desgraças, que os "espíritas", com seu sorriso docilmente sádico, defendem para os sofredores extremos, sob a desculpa de obter as prometidas "bênçãos futuras" mediante um estelionato moral chamado de "pagamento de dívidas morais passadas", "dívidas" alegadas sem o menor fundamento teórico.

O próprio "espiritismo" brasileiro, apesar das palavrinhas bonitinhas de Chico Xavier sobre "levantar os caídos", nunca levanta quem comete quedas. Como no conto do bom samaritano, traduzido para nossos dias, assim como os evangélicos neopentecostais passam ao largo da pessoa assaltada e violentada, os "espíritas" param, observam, mas também não socorrem. Preferem acreditar que a pessoa "paga pelo que fez em outra encarnação" e se recusa a socorrer.

E aí pensamos que sentido tem "fazer o bem sem olhar a quem". Se a moral "espírita" consente que os sofredores tenham que "segurar a barra" ou "dar murro em ponta de faca" para superar seus infortúnios, que "fazer o bem" é esse e ainda mais "sem olhar a quem"?

O próprio Chico Xavier manifestou completa indiferença aos "caídos". Em outros momentos, ele dizia para as pessoas aceitarem o sofrimento "sem queixumes". Ele se contradisse à frase que aqui mostramos, várias vezes, porque apelava para ninguém questionar, para os oprimidos continuarem na sua situação infeliz até que um dia as "forças divinas" venham trazer alguma bonança, geralmente quando é tarde demais.

Pior é o orgulho dos religiosos, como o próprio Chico Xavier, que tomados de seu status, forjam falsas quedas achando que qualquer um irá lhes levantar. É como nas catimbas de futebol, em que craques se jogam no chão e fingem algum ferimento para forçar o juiz a fazer falta no adversário.

Enquanto as pessoas que verdadeiramente caem na vida esperam por um socorro que nunca chega, os orgulhosos da fé religiosa, protegidos pelo seu grande status de pretensos iluminados, forjam falsas quedas através de seus erros propositais.

Temos uma desigualdade na qual os que erram sem querer pagam mais caro, sofrendo mais do que podem ou merecem, enquanto os que erram de propósito e sem escrúpulos são socorridos por outrem, iludidos estão aqueles que levantam os falsos caídos, realimentando o orgulho destes.

A frase "fazer o bem sem olhar a quem", pelo seu caráter vago, impreciso e ambíguo, nada nos diz sobre a verdadeira caridade. Até porque a verdadeira caridade tem mais a ver com atos do que com palavras. Talvez fosse melhor deixarmos a idolatria religiosa a pessoas como Chico Xavier para trás, e vermos por nossos próprios meios no que precisamos ajudar na vida. A ideia é deixarmos de falar e escrever demais e passarmos a agir de verdade.