A ilusão dos progressistas quanto ao "espiritismo" brasileiro



Você é progressista mesmo? Ou defende alguma severidade moral? Você defende mesmo a liberdade? Até que ponto? E quando vê o outro com dificuldade para obter emprego? Você prefere dar bronca ao desempregado do que pedir ao empregador a lhe arrumar um trabalho? Você é realmente altruísta ou cobra demais de quem não tem?

O Brasil, tomado de um sem-número de informações transitando aqui e ali, faz com que as pessoas, desinformadas na essência e confusas na overdose de informações recebidas, optem por escolhas contraditórias. Elas tentam parecer modernas e progressistas, mas não saem da comodidade de um moralismo conservador, apesar de todo discurso emocionalmente "avançado" em vários aspectos.

As pessoas andam muito confusas em suas intenções, opiniões, tendências. Mesmo nas esquerdas, há terríveis omissões, condescendências ou ilusões, principalmente porque boa parte das forças progressistas adota paradigmas culturais conservadores e vinculados à centro-direita que, sob a desculpa de "combater a polarização", são acolhidos de maneira submissa pelos progressistas de primeira viagem.

Houve o recente modismo do "combate ao preconceito", no qual tentou se inverter o processo de degradação sócio-cultural das classes populares transformando seus próprios problemas em "agenda positiva", como viver em casas mal-construídas em favelas, optar pela prostituição, ser compositor medíocre, ser submisso à colonização cultural dos EUA junto às grandes redes de rádio e TV brasileiras, trabalhar em comércio de contrabandeados e piratas etc.

Nesse modismo, as forças progressistas caíram no ridículo de se iludir com a retórica do "fim do preconceito". Acolheram tendências musicais e comportamentais de gosto duvidoso, que eram respaldados por um esquema de mídia e mercado extremamente conservadores. Ídolos musicais da ditadura militar acabaram sendo apreciados por setores das esquerdas, que foram colonizadas por pautas culturais de centro-direita.

Com atitudes duvidosas como as que tentavam forjar um discurso de pretenso feminismo na objetificação do corpo feminino, as esquerdas perderam o protagonismo sem perceber que as pautas que apoiaram eram, na verdade, próprias do ideário da centro-direita que derrubou as deslumbradas esquerdas através do golpe político de 2016.

O "baile funk" que a Furacão 2000, do rico empresário Rômulo Costa, foi um embuste armado para as esquerdas, conforme afirmam vários críticos desse esquerdismo festivo e débil que se deixou perder no caminho político e entregou o poder a seus opositores. Rômulo é aliado de políticos opositores ao PT e ligado a profissionais da Rede Globo, como Luciano Huck, comprometidos com a pauta da centro-direita, socialmente liberal, mas economicamente conservadora.

A armadilha que Rômulo Costa armou para os petistas, que acharam que ele estava apoiando o governo Dilma Rousseff, deu certo: as esquerdas foram seduzidas e suas pautas políticas foram deixadas em segundo plano, prevalecendo a "alegria da dança" que minimizou o tom das manifestações políticas e garantiu, aos opositores da presidente, a votação tranquila do processo de impeachment, porque a raiva das esquerdas foi neutralizada pela festa funkeira.

Foi tudo muito fácil. Os progressistas apoiam pautas culturais - musicais, comportamentais, lúdicas, esportivas e religiosas - conservadoras, achando que elas estão "acima das ideologias" e, supostamente associadas às classes populares, poderiam ser acolhidas por movimentos de esquerda. A ilusão teve um preço muito caro: a retomada ultraconservadora de 2016 que avançou com todo o caminho tranquilo para Michel Temer impor sua agenda maléfica e passar o bastão para Jair Bolsonaro.

As esquerdas, presas numa perspectiva espetacularizada do ativismo social, se perdeu na caminhada festiva, supervalorizando causas identitárias e se iludindo com pautas conservadoras que pareçam progressistas no discurso. Cultuar de mulheres-objetos a "médiuns espíritas", em nome da "liberdade e da emancipação do povo", foi crucial para as esquerdas não só perderem o protagonismo, mas perder, da mesma forma, o controle para combater os abusos dos golpistas de plantão.

A ILUSÃO DAS "AGENDAS POSITIVAS"

O maior erro das esquerdas, que contamina as mentes de muita gente boa e influente, é criar um maniqueísmo em torno do humor na polarização ideológica. Nesse maniqueísmo, ser de direita é necessariamente ser mal-humorado, enquanto que ser de esquerda é ser alegre. Quase se caiu na ilusão de inverter as coisas, com o direitista associado à contestação e inconformação e o esquerdista, à aceitação e resignação.

Essa ilusão acabou derrubando as forças progressistas. Fortaleceu a revolta das elites reacionárias que perderam o protagonismo político em 2002 e recuperaram facilmente o que perderam mais de uma década depois. O golpe que parecia discreto nas jornadas de junho de 2013 culminou, cinco anos depois, na vitória eleitoral de Jair Bolsonaro, contrariando todas as advertências.

O "espiritismo" brasileiro apoiou o golpe político de 2016 e a campanha de Jair Bolsonaro. Os chamados "espíritas progressistas" que não compartilham dessa causa adotam uma postura confusa. Reivindicam a fidelidade a Allan Kardec, mas ignoram o teor deturpador e reacionário da obra de Francisco Cândido Xavier. Os "espíritas progressistas" também se acham no protagonismo religioso, quando eles não são mais do que uma tímida e não-assumida dissidência.

Hoje o Brasil está apreensivo diante da ação de deturpadores doutrinários, quando um filme "espírita" é lançado, Divaldo - Mensageiro da Paz, de Clóvis Mello, sobre Divaldo Franco, e quando se descobre que um dos editores do The Intercept Brasil - que investiga os bastidores da Operação Lava Jato - , Alexandre de Sarti, escreveu o livro Chico Xavier - A Vida, As Obras, As Polêmicas, baseado em artigos que ele havia escrito, com outro jornalista, para a revista Superinteressante, da Editora Abril.

O risco de reabilitação do "espiritismo" brasileiro - que dissimula com suposta "caridade" e "assistência social" os desvios doutrinários que afastaram os brasileiros do Espiritismo francês original - é grande, ainda mais com o desgaste do governo Jair Bolsonaro que os "espíritas" ajudaram a chegar ao poder.

Sem deixar o direitismo de lado, o "desembarque" dos "espíritas" bolsonaristas desta causa cria a ilusão de que o "movimento espírita", aos olhos das esquerdas deslumbradas, virá mergulhar fundo na causa do Lula Livre e abraçará o progressismo pleno, sob o pretexto de que "espíritas" e esquerdistas se afinem, em tese, na causa comum de auxílio permanente ao próximo buscando melhoria de vida.

Só que o "espiritismo" brasileiro, se desembarcar da causa bolsonarista, acolherá as pautas neoliberais trazidas pelo Renova BR, movimento de cunho assistencialista comandado por um grupo de empresários brasileiros, dos quais se incluem Abílio Diniz, Nizan Guanaes, Jorge Paulo Lemann (o "rei da cerveja", apontado como maior financiador da campanha "contra o preconceito" aos fenômenos popularescos) e, principalmente, Luciano Huck.

O "empresariado do bem" do Renova BR, que fez seu teste de popularidade lançando a "ativista" Tábata Amaral, deputada federal do PDT paulista, como símbolo de uma "nova pauta", criando a tendência das "agendas positivas" que setores conservadores da sociedade brasileira começam a desenvolver.

Se afinando com setores domesticados das esquerdas - infelizmente predominantes nesse plano ideológico, como forças masoquistas a serviço do culturalismo populista e conservador - em causas identitárias e no sistema de costumes, o Renova BR, no entanto, se afina, no plano econômico, com as pautas reacionárias trazidas pelo ministro da Economia de Jair Bolsonaro, Paulo Guedes.

Confundindo as coisas, as esquerdas não estabeleceram, ainda, as diferenças entre Assistencialismo e Assistência Social. Assistencialismo é um sistema de ajudas meramente paliativas e restritas a ações paternalistas. Os resultados sociais são muito baixos. O "benfeitor" é que fica com o protagonismo. Na Assistência Social, a coisa é diferente e as ajudas são mais profundas, interferindo seriamente nos privilégios dos mais ricos, obrigados a ceder muito para os mais necessitados.

No Assistencialismo, os privilégios dos mais ricos não sofrem essa "sangria". Daí que as religiões defendem esse Assistencialismo, porque, dentro dos padrões limitados de "ajuda ao próximo", a caridade é mínima e, a pretexto do "equilíbrio", ricos permanecem ricos e pobres permanecem pobres, apenas "aliviando" as desigualdades sociais.

Aí, se faz a maior festa em torno do suposto benfeitor, no caso Chico Xavier e Divaldo Franco, que estão associados meramente a ações paliativas, de baixos resultados sociais, enquanto seus devotos se esquecem dos mais necessitados. Se eles receberam cobertores mofados e rasgados, se as sopas que tomaram têm sabor ruim, se eles vivem regime militaresco nas instituições "espíritas", se os mendigos recebem dos "espíritas" campanhas de banho só no Natal, pouco importa. A sociedade prefere louvar os "médiuns", e lhes basta o protagonismo, danando-se os resultados obtidos.

As "agendas positivas" acabam se tornando uma ilusão na qual as esquerdas acreditam que vão tomar o protagonismo. Fácil desenvolver um discurso "fraternalista" que, na pacificação fácil do balé das palavras bonitas, promove, em termos metafóricos, a confraternização da raposa com as galinhas.

As esquerdas, se comportando como os excluídos sociais da escola, antigamente chamados "nerds" - décadas antes do termo ganhar outro sentido, o de um fanfarrão viciado em informática, quadrinhos e seriados de TV, socialmente mais privilegiado que os nerds de outrora - , diante de armadilhas culturais da centro-direita, como o "funk" (um subproduto da mídia hegemônica que vendeu uma falsa imagem de "vanguarda sócio-cultural") e os "médiuns espíritas", afunda em sua ilusão.

Não conseguindo entender que certas "agendas positivas" se baseiam na manutenção, mesmo sob o aparato ativista-filantrópico, das condições inferiorizadas do povo pobre, as esquerdas abraçam esses paradigmas conservadores achando que se tratam de causas igualmente progressistas, sem saber que elas mais legitimam do que combatem o sistema de dominação e desigualdades sociais.

Depois da gafe de terem acolhido o "funk", deixando Dilma Rousseff "dançar" no seu segundo mandato, as esquerdas domesticadas agora querem reabilitar o "médium" Chico Xavier e seus associados (como Divaldo Franco), achando que se tratam de "genuínos ativistas de esquerda".

Os esquerdistas complacentes com essa agenda paternalista aos pobres usam a falácia do "combate à polarização" para neutralizar questionamentos, quando a verdadeira polarização que é o protagonismo dos conservadores sob os aplausos de esquerdistas resignados, ocupados em festinhas identitárias enquanto choram lágrimas de crocodilo com o fim dos direitos dos trabalhadores.

As esquerdas domesticadas, em verdade, pouco se preocupam com o verdadeiro sofrimento do povo pobre. Elas vivem no conforto, podem viajar para o exterior, não são eles que vivem em favelas caindo aos pedaços, não são eles que são obrigados a dormir sob o som de tiros nos morros, perigando serem atingidos por balas perdidas, não são eles que vivem de trabalho exaustivo, obrigados, em condições sub-humanas, a dividir suas mentes entre o trabalho e a prece.

Fácil, nessas condições, se julgar esquerdista visando agradar amigos e pessoas influentes e obter vantagens sociais com isso, e, por outro lado, cultuar o "funk" que exalta o machismo e faz apologia da pobreza e da ignorância, e cultuar "médiuns" como Chico Xavier por causa de seu moralismo que é dito com palavras dóceis, mas fazem apologia da desgraça humana, como nas tendências medievais do Catolicismo. Difícil é ser sincero e refletir e assumir suas próprias contradições.