'Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho': a perigosa união de Estado e Religião
A expressão "Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho", mais do que se assemelhar à sua tradução "bolsomínion", "Brasil, Acima de Tudo, Deus Acima de Todos", apesar dos aparentes contextos diferentes, revela uma ideia bastante perigosa: a fusão de Estado com Religião.
Da forma como o livro Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, de Francisco Cândido Xavier, co-escrito por Antônio Wantuil de Freitas, presidente da "Federação Espírita Brasileira" em 1937-1938 (época da produção do livro ufanista), mas creditado ao suposto espírito de Humberto de Campos, é oficialmente anunciado, até os mais céticos, os ateus convictos e os esquerdistas combativos, são iludidos diante do seu conteúdo aparente.
Iludidos em entender o deturpado Espiritismo praticado no Brasil como uma mistura do Espiritismo francês, de Allan Kardec, com a Teologia da Libertação católica, os progressistas imaginam que o projeto do "Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho" será uma espécie de mutirão mundial, com o Brasil, em tese, comandando o processo de confraternização planetário.
A ideia nem veio originalmente de Chico Xavier. Ela é uma atualização de uma ideia lançada quatro anos antes do livro, em 09 de setembro de 1934, pelo palestrante "espírita" Leopoldo Machado, numa conferência da FEB, intitulada "Brasil, Berço da Humanidade, Pátria dos Evangelhos". Segue um trecho da palestra:
"Irmãos meus em humanidade e provações terrenas, Jesus ilumine os nossos Espíritos, cristianize os vossos corações. (…)
A despeito de assim pensarmos, de sentirmos assim, não sabemos, de nossa parte, por que singular preferência de nosso espirito, porque sentimos congênito e secreto de nosso coração, queremos mais, muito mais, ao Brasil, a porção maravilhosa do Planeta em que tivemos a dita de nascer! E a nossa alma vibra, malgrado, ás vezes, ao nosso desejo, por tudo o que é brasileiro, que fala do Brasil. Sentimos que amamos á terra que nos é berço com um amor que é, talvez, a maior manifestação emotiva do nosso espírito. Este amor, em nós, é, porém, muito diferente desse jacobinismo, desses bairrismos por aí campeantes, que procuram, vangloriosos, que pensam, exclusivistas, que tudo de grande, de bom, de belo, de maravilhoso se restringe ou se deve restringir, só se contém ou se deve conter a dentro das fronteiras de sua Pátria! Nosso amor ao Brasil é o de quem sente e sabe a sua Pátria destinada a desempenhar uma gloriosa e providencial função dentro da Vida. É o afeto de quem sente e sabe que o Senhor de Todas as Coisas confiou á sua terra a mais bela função, que um povo e uma nacionalidade podem desempenhar, qual a de serem verdadeiros intérpretes da Doutrina luz, amor e verdade, emanada dos Evangelhos de Jesus! (…) ".
O conteúdo é igrejeiro e corroborado por Chico Xavier e Wantuil de Freitas no livro que os dois escreveram e creditaram ao escritor maranhense. Segue o trecho publicado em Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, um prefácio supostamente atribuído ao espírito Emmanuel:
"Meus caros filhos. Venho falar-vos do trabalho em que agora colaborais com o nosso amigo desencarnado, no sentido de esclarecer as origens remotas da formação da Pátria do Evangelho a que tantas vezes nos referimos em nossos diversos comunicados. O nosso irmão Humberto tem, nesse assunto, largo campo de trabalho a percorrer, com as suas facilidades de expressão e com o espírito de simpatia de que dispõe, como escritor, em face da mentalidade geral do Brasil. (…)
O Brasil não está somente destinado a suprir as necessidades materiais dos povos mais pobres do planeta, mas, também, a facultar ao mundo inteiro uma expressão consoladora de crença e de fé raciocinada e a ser o maior celeiro de claridades espirituais do orbe inteiro. (…)
Se outros povos atestaram o progresso, pelas expressões materializadas e transitórias, o Brasil terá a sua expressão imortal na vida do espírito, representando a fonte de um pensamento novo, sem as ideologias de separatividade, e inundando todos os campos das atividades humanas com uma nova luz."
A ideia de um "país fraterno comandando o mundo" é aceita num aparente consenso pelos brasileiros, mesmo os "não-espíritas", e muitos vão dormir tranquilo o sono dos anjos ao saber que a "Pátria do Evangelho" será um "paraíso de colaboração e solidariedade humanas".
Só que não é bem assim. O enunciado é positivo, agradável, porque ninguém vai abrir o jogo sobre o que está por trás. Até Kardec reagiria com desconfiança qualquer pretensão de um país exercer função dominante no mundo. Ele nunca previu que sua França seria a "Pátria do Evangelho". Do mesmo modo, não seria o próprio pedagogo francês que daria essa atribuição ao Brasil.
Como se trata de um país nosso, o Brasil, podemos fazer o que quiser com o resto do mundo. Podemos roubar no futebol, para obter vitórias sujas em Copas do Mundo. Os reacionários da Internet podem jogar a realidade, a lógica e o bom senso às favas, em favor de suas convicções pessoais, contra as quais o mundo todo não consegue combater.
No caso da "Pátria do Evangelho", a perigosa junção de Estado e Religião parece rearticular os moldes do Catolicismo medieval, pois o mesmo discurso "pacifista" e "unificador" era dado pelo titular do Império Romano do Oriente, o imperador Constantino, que quando fundou a Igreja Católica, nos moldes medievais, prometeu "igualdade e fraternidade" entre ricos, pobres, romanos e estrangeiros.
A prática se revelou o contrário. Embora o Império Romano tenha sido dissolvido e o Império Bizantino, nome posterior da parte oriental do império derrubado, tenha se enfraquecido a ponto de se reduzir, posteriormente, à atual Turquia, o Catolicismo medieval se tornou um poder político-religioso capaz de realizar atos de corrupção, assassinatos de diversos tipos e condenações mortais contra aqueles que não compartilhassem das crenças, práticas e conceitos da "Santa Igreja".
Uma carnificina de proporções gigantescas foi um dos legados dessa religião, que dominou o Velho Mundo e representou um poder político não declarado, mas praticado em níveis extremos. E isso criou uma reputação tão negativa que a Igreja Católica teve que, aos poucos, abrir mão de seus conceitos mais severos e adotar mudanças graduais em seus princípios, práticas e dogmas.
O grande perigo do projeto "Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho" é que ele seja a restauração não só do Catolicismo medieval, mas também do Império Romano do Oriente, com o Brasil "comandando o mundo" politicamente, mas economicamente subordinado aos Estados Unidos da América. Em entrevista ao Pinga Fogo, em 1971, Chico Xavier definiu os EUA como "cérebro do mundo".
Seria bom demais para ser verdade que a prometida supremacia mundial do Brasil, no âmbito político-religioso, se configure como um grande mutirão mundial, onde as desavenças seriam resolvidas no "diálogo fraterno" e na "união com Cristo". Uma coisa é a teoria, outra coisa é a prática.
Exemplos de supremacia mundial foram infelizes para o mundo inteiro. Além do Catolicismo medieval, tivemos o imperialismo dos EUA, que continua firme e forte, apesar da performance decadente do empresário Donald Trump como presidente do país. E tivemos também o projeto, felizmente abortado, do "Reino do Terceiro Reich", o projeto de uma nação nazista a dominar o mundo através das ideias reacionárias e desumanas de Adolf Hitler.
Os "espíritas", apesar da imagem oficial de uma religião "fraterna, tolerante, altruísta e acolhedora", demonstram também seu lado perverso. O "espiritismo" brasileiro adota um moralismo punitivista, entendendo a encarnação humana como o cumprimento de sentenças criminais, atribuídos à suposta "Lei de Causa e Efeito", onde supostos pecados da encarnação anterior se tornam motivos para o infortúnio que as pessoas atingidas têm que aceitar, com resignação ou com muito sacrifício para superá-lo.
Diante de tragédias coletivas, o moralismo "espírita" - herdado das ideias punitivistas de Jean-Baptiste Roustaing, adaptadas por Chico Xavier sem os detalhes polêmicos e surreais dos "criptógamos carnudos" e do "Jesus fluídico" - atribui a elas "resgates coletivos", uma aberração que não tem o menor sentido, pois não se pode atribuir um só destino a pessoas de diferentes procedências, só porque elas se encontram num mesmo lugar no momento de uma tragédia.
Com base em alegações como "resgates coletivos", "resgates espirituais" e "reajustes morais" - ou "resgates morais" e "reajustes espirituais" - , o risco é do "espiritismo" brasileiro justificar os futuros holocaustos com seu moralismo é muito grande. Pode não ser uma ação imediata nos primeiros anos da "Pátria do Evangelho", mas podem surgir um pouco mais tarde e se tornarem permanentes.
O "espiritismo" brasileiro também costuma culpabilizar a vítima. Esta é "culpada" pelo seu próprio prejuízo. Isso é um prato cheio para futuros holocaustos que a fusão Estado e Religião trazida pelo projeto que Chico Xavier defendeu em toda sua vida, com "ecos" em supostas "psicografias" - sob os nomes de Olavo Bilac (poema "Brasil") e Humberto de Campos, entre outros - , em depoimentos e até em "profecias" descritas em livros, depoimentos no Pinga Fogo (TV Tupi, 1971) e até na narrativa da "data-limite".
Tudo é lindo quando se é um mero enunciado. Mas a prática humana mostra uma série de imprevistos que podem desmascarar projetos que parecem maravilhosos. A "boa índole" do imperador Constantino não previu futuros Torquemadas sob o ideal da "fraternidade cristã". Quantos Torquemadas não viriam sob a "Pátria do Evangelho" de Chico Xavier. A pior tirania se revela sob a fusão do Estado com a Religião, através da junção do Poder com a Fé, em suas formas abusivas.