Como deu certo a deturpação do Espiritismo no Brasil?



É preocupante saber que são muito poucos os brasileiros que admitem que o Espiritismo que se faz no nosso país é deturpado. Levamos gato por lebre. Pegamos um engodo religioso que combina Catolicismo medieval, esoterismo, homeopatia, e uma dose de demagogia e falácias diversas, e imaginamos que é a própria doutrina de Allan Kardec que foi saudavelmente adaptada por aqui.

Não, não foi. O que vemos é uma traição vergonhosa, constrangedora, preocupante. E mais preocupante porque a deturpação doutrinária tornou-se tão organizada que foi muito bem sucedida. Arruma-se desculpa para tudo, o que deixa muita gente tranquila. Espiritismo, no Brasil, virou sinônimo de permissividade, uma farra que se pratica sob o pretexto do "livre arbítrio".

A religião "espírita" encontra terreno fértil num país de pessoas que dissimulam, traem, roubam, mentem e querem ser o que não são para agradar os outros. O Brasil é o paraíso das fake news, das identidades fake da Internet, dos "robôs" (algoritmos) que popularizam pautas informativas sem a menor graça e ajudam a eleger políticos nefastos para a população.

Que a falsidade tornou-se um fenômeno mundial, isso é verdade. Mas o "espiritismo" brasileiro, que transformou um deturpador, reacionário e produtor de livros e cartas fake, Francisco Cândido Xavier, numa pretensa unanimidade, cultuado seja pela imagem de "semi-deus", seja pela imagem de "homem simples", tornou-se uma religião muitíssimo perigosa e traiçoeira, que faz as seitas evangélicas neopentecostais parecerem brincadeira de criança.

O que faz o "espiritismo" brasileiro ser aceito pela população e consiga enganar até parte das pessoas dotadas de algum esclarecimento é sua narrativa bastante organizada, que dá uma ilusão de sobriedade, de despretensiosismo e de ideias e práticas que parecem agradáveis à primeira vista. A forma com que ocorrem os desvios doutrinários parece seduzir muita gente, porque as narrativas e as aparências sempre apontam para forjar suavidade e positividade.

CATOLICIZAÇÃO

A chamada "catolicização do Espiritismo" é vista pela maioria dos brasileiros como um aspecto saudável. Duas desculpas principais fazem com que isso seja aceito sem críticas, a saber:

1) As tradições da religiosidade popular brasileira se somaram ao cientificismo de Allan Kardec;

2) A catolicização se deu pelas afinidades que, em tese, o Espiritismo tem com os ensinamentos de Jesus Cristo.

Quanto à primeira desculpa, observa-se que o Espiritismo brasileiro é encarado, erroneamente, como um "Catolicismo 2.0", apreciado até mesmo pelos mais velhos, que se iludem em ver a religião deturpada, mas que usa o tendencioso nome de "kardecismo" - que, na prática, não passa de um roustanguismo "passado a limpo" - , como algo mais moderno que a Igreja Católica.

A verdade é que o Espiritismo seguiu o caminho inverso do Catolicismo. Este, com todos os seus dogmas surreais - a "virgindade" de Maria, por exemplo - , conseguiu se adaptar às mudanças da sociedade. Há erros, sim, como canonizar Madre Teresa de Calcutá por falsos milagres, mas há também acertos, como a autocrítica quanto aos crimes sexuais de padres e sacerdotes católicos.

O Espiritismo, por outro lado, caminhou para trás. Enquanto Allan Kardec se inspirava no Iluminismo e nos progressos da Ciência para desenvolver seus postulados, sua suposta adaptação brasileira, sobretudo nas mãos de Chico Xavier, regrediu para os padrões de obscurantismo medieval de Portugal do século XVI, já que esta foi a época em que a antiga metrópole enviou para a colônia brasileira as missões da Companhia de Jesus, ainda fundamentadas em valores medievais.

A "catolicização do Espiritismo" não foi um processo inocente nem saudável, e a ela nem se pode atribuir um ingênuo "entusiasmo original" de Chico Xavier e seu discípulo Divaldo Franco por suas origens católicas. A "catolicização" se deu até por uma inicial questão de sobrevivência, mas depois tornou-se a base doutrinária no Brasil, da seguinte maneira:

1) Em primeiro momento, a aproximação do "movimento espírita" com a praxe e os paradigmas da Igreja Católica foi feita para buscar a proteção dos católicos e do poder público visando pôr fim à repressão policial que se dava aos "centros espíritas", acusados de práticas de charlatanismo e curandeirismo.

2) Em segundo momento, a "catolicização" acabou se tornando uma escolha inescrupulosa, visando obter vantagens e a minimizar o teor racional do Espiritismo original.

Além disso, é um "catolicismo à paisana", um "catolicismo de chinelos", que dispensa as formalidades da missa nas igrejas católicas - onde pessoas fazem a "ginástica" do senta-e-levanta, nos ritos correspondentes - , e acaba sendo um "catolicismo para preguiçosos", para gente que pode ficar sentada o tempo inteiro. Neste sentido, os mais idosos, que possuem sérias limitações físicas, usam o "espiritismo" visando os seguintes objetivos:

1) Não precisam da formalidade religiosa do "catolicismo praticante", indo para "reuniões espíritas" apenas para ouvir uma estorinha piegas de um palestrante, num entretenimento religioso inócuo.

2) O "espiritismo" brasileiro não possui o aparato pomposo das igrejas católicas. Os "padres espíritas" (palestrantes e escritores comuns) e os "médiuns" (supostamente em contato com o "outro mundo") não possuem as vestimentas de batinas revestidas de ouro e podem usar roupas comuns, quando muito um terno e roupas formais, sem gravata.

Nota-se até mesmo uma hierarquia dessa "catolicização espírita". Os palestrantes e escritores comuns não necessariamente têm o "privilégio" de, supostamente, receber contato das "almas do além", os chamados "benfeitores espirituais". Já os "médiuns", os sacerdotes dessa doutrina igrejeira, possuem, em tese, tal atribuição.

DISCURSO BEM CONSTRUÍDO

Embora o discurso do "espiritismo" brasileiro dê margem a contradições aqui e ali, ele é bem organizado, de maneira suficiente para que, ao menos, criem correntes que, embora divergentes, evitam serem conflituantes.

São correntes que, em aspectos gerais, se dividem entre ver Chico Xavier com alguém sobrenatural e vê-lo como pessoa "mais simples". Uns lhe arrumam um lugar no Céu divino do imaginário coletivo. Outros lhe arrumam um pequeno altar na Terra.

"Sequestrando" as narrativas de correntes humanistas do Catolicismo, como a Teologia da Libertação, o "espiritismo" brasileiro capricha numa embalagem profundamente agradável, que conquista a todos, da extrema-direita a setores das esquerdas, dos mais ferrenhos beatos religiosos aos ateus, pelo aparato discursivo bem construído.

Mas como o "espiritismo" brasileiro conseguiu fazer com que a deturpação doutrinária original fosse tão bem sucedida, apesar de ser uma traição a Allan Kardec muito pior, mais frequente e ainda mais inescrupulosa do que a traição que se atribui a Judas Iscariotes contra Jesus Cristo?

Simples. É a formação de um repertório que sempre fale de ideias positivas e agradáveis. Um simulacro de serenidade e equilíbrio tomados emprestados de crenças orientais milenares. Neste caso até mesmo narrativas do budismo e de setores humanistas do Catolicismo e da Igreja Batista são apropriados pelos "espíritas", supostamente por "questões de afinidades".

A narrativa chega ao ponto do "espiritismo" brasileiro, que vende uma falsa imagem de "filosofia racional", mais parecer um "conto de fadas" para adultos, porque os apelos aparentemente positivos, com ênfase na emotividade e na comoção humanas, além de promessas de "consolação" e "serenidade", chegam ao nível da pieguice mais viscosa. Mas o que é pieguice num Brasil que sofreu uma retomada ultraconservadora desde 2016?

A FALÁCIA DA "VIDA FUTURA": O MASOQUISMO DO "QUANTO PIOR, MELHOR"

Normalmente, consideramos que o futuro é uma incógnita. Mas os "espíritas", não. E eles, com isso, mostram alguns dos diversos aspectos negativos que aparecem na sua retórica organizadamente "positiva" que ilude muita gente boa.

O "espiritismo" brasileiro cria condições psicológicas para que o Brasil permaneça no seu "complexo de vira-lata", quando se resigna com sua situação medíocre, subalterna e até mesmo corrupta. O Brasil enfrenta as mesmas desigualdades e tragédias, vive uma constrangedora e preocupante mediocrização cultural, as redes sociais são um antro de obscurantismo e burrice e a ignorância humana ganhou status de virtude.

Como uma doutrina pretensamente consoladora, o "espiritismo" brasileiro trocou os ensinamentos originais de Allan Kardec (bajulado até as últimas consequências, mas nunca corretamente seguido pelos brasileiros) pela Teologia do Sofrimento, que foi o que havia de mais medieval no Catolicismo Apostólico Romano da Idade Média.

A Teologia do Sofrimento tem como princípio a aceitação das desgraças que se acumulam na vida presente. A ideia é que a vida presente seja vista como um misto de competição com sentença criminal, e a pessoa que aceitar viver, no presente e por tempo indeterminado, uma série de adversidades acumuladas sem controle, sem que pronuncie uma sílaba de queixumes, terá como prêmio a "vida futura".

Entende-se a "vida futura" - no discurso católico da Teologia do Sofrimento, fala-se em "vida eterna" - às vezes como a velhice ou o pós-morte, neste caso podendo tanto ser o mundo espiritual quanto a próxima encarnação. Troca-se o certo pelo duvidoso, e, enquanto a vida presente torna-se uma tragédia sem fim, a "vida futura" continua sendo um mistério.

A retórica é agradável e engana a muitos, que acabam caindo nesse masoquismo do "quanto pior, melhor", visando as recompensas que supostamente se terá no futuro. "Puxa, vou sofrer as piores coisas possíveis, porque, assim, eu encurto meu caminho para o Céu e vou me entregar ao inferno de agora para ter, em seguida, uma coleção de bênçãos", pensa o masoquista.

Só que não temos garantias de que a "vida futura" será melhor. Algumas condições sociais que hoje se encontram podem se perder no futuro. Contextos culturais, ou mesmo alguns pormenores circunstanciais, poderão estar aquém e podem trazer alguma decepção no reencarnado que sofreu demais na encarnação anterior.

Apesar desses impasses, a Teologia do Sofrimento "espírita" - que tem em Chico Xavier seu maior defensor, queiram ou não queiram seus seguidores e simpatizantes, porque essa constatação se baseia em ideias explicitamente expressas por ele, em livros e depoimentos - faz muitos brasileiros aceitarem o masoquismo de cada dia, dentro daquela ilusão de que "dá para viver com prejuízos". Daí o mesmo círculo vicioso dos sofrimentos e desgraças que nunca se acabam.

E isso faz com que até os esquerdistas sejam ludibriados pelo discurso "espírita", pois acreditam na utopia de que "o presente é bolsonarista mas o futuro é Lula Livre". Tão tolos e ingênuos, os esquerdistas que acreditam em Chico Xavier caem em contradição consigo mesmos, porque a luta das esquerdas é para garantir ao povo um presente melhor, e não deixar para amanhã as melhorias sociais.

Ainda não há teorias seguras que possam dizer como realmente é o mundo espiritual ou como será a reencarnação. Nós estamos acostumados com a ideia de "vida futura" de acordo com as paixões humanas, mas a reencarnação e o mundo espiritual são hipóteses que só estão legitimadas no plano filosófico. Cientificamente, elas encontram pendências muito sérias, questões complexas que requerem minuciosa investigação.

O êxito do "espiritismo" brasileiro está, sobretudo, em dois aspectos principais. Primeiro, a apropriação de ideias abstratas e agradáveis da religiosidade católica. Segundo, a complementação pela apropriação de paradigmas do pensamento antigo oriental. Terceiro, o desenvolvimento de uma retórica tão agradável que até o "holocausto do bem" da Teologia do Sofrimento é acolhido pelos brasileiros com uma alegria masoquista que ninguém percebe o caráter sádico dessa teoria.

Só que o "espiritismo" brasileiro acaba revelando sua perversidade, porque prega a aceitação do sofrimento e das adversidades humanas, sob a sádica recomendação de evitar queixumes, sob o prêmio das "bênçãos futuras". É fácil apontar o caminho da bonança para quem está sob trevas. Difícil é saber se haverá esse caminho mais adiante e como será.