Quimioterapia e intoxicação alimentar: os falsos milagres que "santificaram" Madre Teresa de Calcutá


CRÍTICOS DE MADRE TERESA DE CALCUTÁ CHEGAM A COMPARÁ-LA, EM APARÊNCIA, À VILÃ BRUXA DO MAR, DA SÉRIE DE HQ DO MARINHEIRO POPEYE.

Muito comparada com Francisco Cândido Xavier pela suposta caridade e pelas pregações morais de cunho conservador - apesar desses paradigmas iludirem muita gente que se considera progressista - , Madre Teresa de Calcutá tem também aspectos negativos em sua trajetória.

Vamos lembrar que Chico Xavier e Madre Teresa são fortemente comparados até pelos "espíritas", que acolhem a católica como se fosse uma personagem do próprio "espiritismo" brasileiro. E ambos, Chico e Teresa, seguem um roteiro de "santidade" bolado a partir do modelo de Malcolm Muggeridge, o jornalista inglês conhecido como "fabricante de santos".

Conservador, Malcolm Muggeridge, trabalhando na rede de televisão BBC, organizou um documentário intitulado Algo Bonito Para Deus (Something Beautiful For God), que foi lançado em 1969. Nele Muggeridge exaltava a figura de Madre Teresa de Calcutá, criando nela uma imagem glamourizada sustentada por um roteiro simplório de pretensa filantropia, aquela que pouco faz pelos pobres e faz mais para glorificar um suposto benfeitor.

Esses paradigmas de "caridade" e "humanismo" têm caráter conservador, por mais que tentem seduzir setores de esquerda ou mesmo do ateísmo para apreciar "humanistas" desse porte, que pregam valores do obscurantismo ideológico, através da Teologia do Sofrimento, corrente que levava o medievalismo católico às mais derradeiras consequências.

As ideias de Madre Teresa, corroboradas por Chico Xavier - cujo mito, da forma como hoje conhecemos, foi trabalhado pela Rede Globo de Televisão a partir da importação do modelo de Muggeridge (1907-1990) - , se baseiam na defesa de que os sofredores e os aflitos têm que aceitar suas desgraças e acolher as adversidades da vida com resignação e até alegria, sob a desculpa de que, no futuro ou mesmo após a morte, obtenham as prometidas "graças divinas".

Num Brasil confuso em que pessoas não conseguem se decidir se são modernas ou não - vemos pessoas que se dizem progressistas com algum resíduo de conservadorismo ideológico, e, por outro lado, pessoas tidas como arrojadas que recentemente abraçaram o bolsonarismo - , fica fácil tomar como "progressismo" ideias como "aceitar o sofrimento em silêncio" ou "agradecer a Deus pela desgraça obtida".

E se no Brasil as pessoas ainda coçam a cabeça, perdidas, por não admitir que Chico Xavier foi um baluarte, dos mais convictos, do pensamento de direita brasileiro, Madre Teresa é vista com maior realismo, e isso foi possível porque um jornalista com maior visibilidade, o inglês Christopher Hitchens (1949-2011), ateu e de esquerda, denunciou Madre Teresa através do livro A Intocável Madre Teresa de Calcutá (The Missionary Position: Mother Teresa in Theory and Practice), de 1995, e no documentário Anjo do Inferno (Hell's Angel), de 1997.

Madre Teresa foi denunciada pelas seguintes acusações:

1) Deixar os internos, doentes ou pobres, nas suas casas assistenciais, administradas por sua instituição Missionárias da Caridade (Missionaries of Charity, em inglês), em condições desumanas:

a) Inicialmente dormiam deitados no chão, mas depois dormiam em camas desconfortáveis, semelhantes às de alojamentos militares;

b) Eram alojados expostos uns aos outros, o que fazia com que os doentes mais graves contagiassem os outros, mesmo não enfermos, espalhando infecção entre todos os alojados;

c) Os doentes eram remediados apenas com analgésicos como aspirina e paracetamol;

d) As seringas, infectadas, só eram lavadas com água (relativamente suja) da torneira e reutilizadas, o que permitia a transmissão de doenças;

e) Os internos eram mal alimentados;

f) Não havia higiene nos alojamentos nem nos cuidados feitos pelos voluntários, que, por sua vez, eram escolhidos sem ter qualquer preparo para qualquer função.

2) Madre Teresa viajava em jatos particulares de magnatas e ditadores, sob o pretexto de pedir doações volumosas para as Missionárias da Caridade;

3) Madre Teresa desviava o dinheiro arrecadado para os depósitos particulares de sacerdotes poderosos da cúpula do Vaticano.

4) Madre Teresa, que recebeu o Nobel da Paz em 1979 (pelo jeito a narrativa de Muggeridge funcionou), também recebeu a Medalha da Liberdade do presidente dos EUA, Ronald Reagan, em 1985. Reagan foi acusado de promover carnificinas para exterminar ativistas sociais e políticos de esquerda em países da América Central.

5) Com a tragédia de Bhopal, cidade da Índia, em 03 de dezembro de 1984, cujo vazamento de gás na fábrica de pesticidas da empresa estadunidense Union Carbide India Limited (UCIL), infectando cerca de 500 mil pessoas e causando um incontável número de mortos - oficialmente, pelo menos 13 mil - , Madre Teresa, em uma entrevista, pediu para a sociedade "perdoar" os empresários da Union Carbide, acusados de negligência. "Perdoe, perdoe", disse ela.

Os críticos de Madre Teresa de Calcutá chegam a chamar a atenção pela aparência física da beata - nascida Anjezë Gonxhe Bojaxhiu, na então Armênia, atual Macedônia, em 26 de agosto, no mesmo ano de 1910 de Chico Xavier, nascido meses antes - , comparável à vilã Bruxa do Mar (Sea Hag), da famosa série de quadrinhos e animação do marinheiro Popeye.

HOLOCAUSTO DO BEM

Independente de ser ateu, Christopher Hitchens difundiu as denúncias sem compromisso de promoção pessoal. Ele entrevistou gente que trabalhou com Madre Teresa e que se sentiu interessada em denunciar os maus tratos que viram pessoalmente. Um médico que trabalhou com ela, Aroup Chatterjee, escreveu o livro Madre Teresa, o Veredicto Final (Mother Teresa The Final Veredict).

Há também uma desconfiança, já que Malcolm Muggeridge é acusado de ser colaborador da CIA - o famoso serviço de informação do Departamento de Estado dos EUA - , de que Madre Teresa estaria promovendo o "holocausto do bem", tendo dado continuidade ao processo de exterminação do povo pobre normalmente feito por tiranias políticas (do nazismo de Hitler às ditaduras africanas).

"Madre Teresa não é amiga dos pobres. Ela é amiga da pobreza. Ela disse que o sofrimento era um presente de Deus. Ela passou sua vida se opondo à única cura conhecida para a pobreza, que é o poder das mulheres e sua emancipação de uma forma animal de reprodução compulsória", disse Christopher Hitchens.

Madre Teresa teria "convertido" mais de 29 mil mortos de seus internos batizando-os "para que São Pedro os deixe entrar no Céu". Segundo Chatterjee, Madre Teresa havia dito que "É muito bonito ver as pessoas morrerem com tanta alegria". Pelo jeito, a "alegria" dela, e não dos sofredores.

Esse "holocausto do bem" também é corroborado por Chico Xavier, através de suas pregações sobre os "resgates espirituais" e os mitos idealizados da "vida futura", feitos sem fundamentação lógica. Numa estranha coincidência, adultos e idosos que se tornavam adeptos de Chico Xavier sempre tinham filhos morrendo prematuramente por algum acontecimento repentino.

FALSOS MILAGRES

Os dois supostos milagres que se atribui a Madre Teresa de Calcutá não ocorreram. As rezas em torno das medalhas com a imagem da católica, falecida em 1997, em nada influíram nas "inexplicáveis curas" de dois casos graves envolvendo enfermos, porque se revelou que circunstâncias normais permitiram essas curas, um devido a um tratamento e outro, pela doença não ter sido tão grave assim.

O primeiro caso foi em 1998. Monica Besra, uma dona-de-casa indiana então com 30 anos, da tribo dos Santsal, na cidade de Harirampur, a 300 km de Calcutá, sofreu fortes dores abdominais. Foi constatado que ela sofria de um câncer no ovário. Ela foi até atendida por freiras da instituição Missionárias da Caridade, que lhe ofereceram uma medalha com a imagem de Madre Teresa, para orar por ela.

Todavia, Monica Besra também foi consultar um médico e realizou um tratamento de quimioterapia rigorosamente cumprido. Curou-se porque o câncer estava num estágio que permitiu a retirada do tumor, e ela se curou devido aos cuidados médicos feitos em momento oportuno e com todas as recomendações médicas, inclusive repouso, feitas.

Já o segundo caso, que garantiu a canonização, em 04 de setembro de 2016 - um episódio que pode ser incluído no contexto da retomada conservadora internacional - , de Madre Teresa, envolve um suposto episódio brasileiro em que se alegou que um engenheiro sofria de câncer em estágio terminal.

O engenheiro Marcílio Haddad Andrino, que vivia em Santos, mudou-se para o Rio de Janeiro em 2007. Em outubro de 2008, casou-se com sua hoje esposa Fernanda Rocha e o casal viajou para Gramado para uma lua-de-mel.

De repente, ele sentiu-se um mal-estar, com fortes dores de cabeça e tonturas. Associando o caso a uma antiga ferida nas pernas, ocorrida num antigo acidente, os médicos do Hospital São Lucas em Santos, para onde o paciente foi levado assim que voltou à cidade do litoral paulista, constataram uma suposta infecção bacteriana cerebral que teria causado um grave tumor em estágio terminal.

Procurando uma igreja, Fernanda recebeu do padre Elmiran Ferreira Santos uma medalha de Madre Teresa para realizar orações, enquanto o marido estava internado sob observação, enquanto aguardava uma cirurgia supostamente de risco.

No dia seguinte, porém, Marcílio aparecia sentado, lúcido e aparentemente em estado de recuperação. Não apresentava os supostos problemas que pareciam lhe garantir o óbito. Em cerca de 45 dias, ele teve alta e leva uma vida saudável.

Em ambos os casos, de Besra e Andrino, comissões de médicos assinaram atestados com supostos males que "desafiavam" a compreensão médica, apresentando curas supostamente inexplicáveis. Um lobby de médicos, juristas e religiosos se formou para defender a canonização de Madre Teresa de Calcutá, diante de supostas proezas.

No caso do engenheiro brasileiro, tudo indica, porém, que o diagnóstico teria sido forjado. Os sintomas sofridos pelo engenheiro lembram muito o que pessoas que sofrem intoxicação alimentar encaram: sensação de "formigamento" na cabeça, com fortes dores, estado de tontura, vômitos, profundo mal-estar.

A convalescença não chega a ser demorada. Um doente de intoxicação alimentar tem um período de recuperação de, em média, cinco dias. Mas, diante do "espetáculo" criado em torno do suposto tumor cerebral, Andrino teve que ser internado por mais dias, ficando pouco mais de um mês "de molho", enquanto uma comissão médica do hospital católico montava documentação para enviar para o Vaticano, uma burocracia exigida para abrir o processo de canonização.

Consta-se que os problemas nos movimentos das pernas de Andrino não têm relação com o mal-estar que ele sofreu durante a lua-de-mel e remetem apenas a um acidente antigo. Mas os dois problemas foram juntados para criar a narrativa do "câncer terminal" para forçar a ocorrência de um suposto milagre, garantindo assim a canonização de Madre Teresa de Calcutá.

Madre Teresa, assim como Chico Xavier, são daquelas figuras que são beatas de correntes medievais do Catolicismo, pessoas de personalidade bastante reacionária e defensoras de um modelo de "caridade" que só dá aos pobres ações paliativas e benefícios relativos, sem oferecer risco aos privilégios dos mais ricos.

Essa "caridade" é mais uma forma de propaganda para promover ídolos religiosos, sendo mais uma "caridade" que beneficia mais o benfeitor do que os mais necessitados. Estes que fiquem com benefícios relativos, mesmo que eles representem alguma emancipação pessoal, mas em níveis bastante modestos. O que importa é a adoração ao "benfeitor", exposto ao êxtase religioso de seus seguidores e suas comoções fáceis e premeditadas, comparáveis a uma masturbação pelos olhos.

O problema disso tudo é que, se os devotos de Chico Xavier e Madre Teresa de Calcutá adoram tanto eles, se for por essa idolatria, mais ou menos divinizada - mesmo quando seguidores do "médium" dizem admitir suas imperfeições - , então esses devotos deveriam considerar que Malcolm Muggeridge, quando vivo, foi a "encarnação de Deus" na Terra, para a fantasia religiosa ficar completa.