Divergência grave entre Allan Kardec e o "médium" Chico Xavier



Uma séria e gravíssima divergência põe, sem dúvida alguma, a imagem positiva do Espiritismo feito no Brasil em xeque. E, digamos, em xeque-mate. É a forma como se relacionam a Fé e a Razão, que se tornam extremamente opostas na doutrina francesa e na sua suposta adaptação brasileira.

Muita gente não se dá conta, mas as raízes do "movimento espírita" no Brasil se repousam, até hoje, nas ideias do pioneiro deturpador doutrinário Jean-Baptiste Roustaing. A influência do Roustanguismo no "espiritismo à brasileira" é tanta que ele inspirou duas medidas que "abrasileiraram" o pensamento do advogado de Bordéus, para o caso de seu controverso nome ser descartado assim que ele representar uma imagem repulsiva e decadente:

1) Traduziu-se a obra de Allan Kardec com a pasteurização de seu conteúdo, de forma que o fizesse menos racional e mais próximo do igrejismo. Houve várias traduções, das quais se destacam a de Guillon Ribeiro, da FEB, e Salvador Gentile, atualmente publicada pela editora IDE.

2) Francisco Cândido Xavier foi o que fielmente traduziu o pensamento de Jean-Baptiste Roustaing para o contexto brasileiro, em que pese o aparente constrangimento do "médium" em assumir o vínculo com o advogado de Bordéus. Mas livros como Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, Nosso Lar e Nos Domínios da Mediunidade comprovam a herança do pensamento roustanguiano na obra chiquista.

Foi Jean-Baptiste Roustaing que elaborou o desenho moralista que até hoje é defendido pelo "movimento espírita" no Brasil. Uma moral punitivista, que encara a reencarnação como um processo de "pagamento de dívidas", atribuídas a encarnações anteriores, que fazem com que a vida presente tenha que ser, obrigatoriamente, um repertório de desgraças e infortúnios.

Portanto, o moralismo roustanguista foi trazido aos brasileiros por Chico Xavier e, no contexto político brasileiro, se encaixou perfeitamente nos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro, que representam projetos ideológicos conservadores, bem ao gosto do "movimento espírita".

O ultraconservadorismo do "movimento espírita" é subestimado pela sociedade brasileira que, confundindo as coisas, leva gato por lebre, acreditando que os ideais progressistas do Espiritismo francês encontrassem terreno fértil num Brasil tropical, o que não aconteceu.

O que se viu, no Brasil, é a repaginação do Catolicismo medieval do período colonial, bem distanciado do Espiritismo original. Isso é tão certo que, enquanto a Doutrina Espírita francesa se inspirou no Iluminismo, que rompeu com os ideais medievais, o suposto Espiritismo no Brasil fez o contrário, acolhendo justamente o que havia de mais medieval no Catolicismo da Idade Média, a Teologia do Sofrimento.

A desinformação generalizada das pessoas é que tenta desmentir as coisas, achando que o Espiritismo não foi deturpado no Brasil, que aqui o que existe é uma forma "aperfeiçoada" do Espiritismo francês. É um grande e preocupante engano.

NA FRANÇA, ESPIRITISMO DEFENDE O RIGOR DA RAZÃO. NO BRASIL, A RAZÃO É VISTA COMO MALICIOSA

O que vemos aqui é uma grande traição doutrinária, na qual o pensamento kardeciano é distorcido ao sabor igrejista dos deturpadores brasileiros, a partir de Chico Xavier. É uma traição tão grande e tão traiçoeira que se deixa levar pela alienação generalizada, não só de seus seguidores, mas de leigos e simpatizantes da doutrina igrejeira a que se rebaixou o que se conhece aqui como Espiritismo.

Uma das provas mais contundentes disso é a relação entre Fé e Razão, que em Kardec torna-se fundamental e imprescindível, diferente do que Xavier defendeu, pois o "médium" acolheu a Razão com muitas restrições, por achá-la "maliciosa", uma visão que coloca o beato de Pedro Leopoldo como uma figura comprovadamente conservadora, igrejista e não muito amiga do verdadeiro Conhecimento, aquele que não teme questionar até mesmo os abusos da Fé.

Para Allan Kardec, nada pode ser compreendido sem o rigor da razão. O que escapar da lógica e do bom senso deve ser descartado, ainda que fosse uma ideia bastante agradável. Kardec tinha na dúvida o motor da busca da Verdade e ele foi, em toda a vida, muito questionador das coisas.

Em postura bastante contrária, Chico Xavier rejeitava o questionamento aprofundado, definia o senso crítico como "malicioso", e só defendia o raciocínio humano com limites. Ele chegou a definir como "tóxico do intelectualismo" o questionamento lógico mais aprofundado e apurado, que, sob a alegação de "sucumbir às paixões terrenas", põe em risco os dogmas místicos da chamada "fé espírita" brasileira.

Não vamos aqui mencionar todas as passagens que revelam esse conflito "sangrento" entre o pensamento de Allan Kardec e o de Chico Xavier, porque seria um longo processo de citação de livros e artigos ou depoimentos. Mas selecionamos duas passagens, que mostram o quanto a divergência entre um e outro são irreconciliáveis, apesar de todo esforço retórico em forjar essa impossível reconciliação.

Da parte de Kardec, uma declaração que desfaz o mal-entendido de sua declaração sobre a "fé inabalável" - que dá a falsa impressão de que a Fé prevalece sobre a Razão, coisa que o pedagogo de Lyon em nenhum momento defendeu - foi publicada em O Evangelho Segundo o Espiritismo, Capítulo 19, "A Fé que Transporta Montanhas", segmento "A Fé Religiosa - Condição da Fé Inabalável":

"É precisamente o dogma da fé cega que hoje em dia produz o maior número de incrédulos. Porque ela quer impor-se, exigindo a abdicação de uma das mais preciosas prerrogativas do homem: a que se constitui do raciocínio e do livre-arbítrio".

Um trecho de O Livro dos Médiuns, Capítulo 26, "Perguntas que se Podem Fazer", o recado kardeciano até fala dos "limites convenientes" das perguntas acerca dos temas espíritas, mas eles nunca devem ser entendidos como limites de questionamento e senso crítico, desde que feitos de acordo com a Lógica. Vamos ao item 287:

"287. Algumas pessoas pensam que é preferível não fazer perguntas, convindo esperar o ensinamento dos Espíritos, sem o provocar. Isso é um erro. Não há dúvida que os Espíritos dão instruções espontâneas de elevado alcance que não podemos desprezar, mas há explicações que teríamos de esperar por muito tempo se não solicitássemos. Sem as nossas perguntas. O Livro dos Espíritos e O Livro dos Médiuns ainda estariam por fazer ou pelo menos seriam muito mais incompletos: numerosos problemas de grande importância estariam ainda por resolver.(4)

Longe de terem qualquer inconveniente, as perguntas são de grande utilidade para a nossa instrução, quando as sabemos formular nos limites convenientes. E oferecem ainda outra vantagem, pois ajudam a desmascarar os Espíritos mistificadores. Estes, mais pretensiosos do que sábios, raramente suportam a prova de um questionário formulado com lógica cerrada, cujas perguntas os levam aos seus últimos redutos. Como os Espíritos realmente superiores nada têm a temer de semelhante processo, são os primeiros a sugerir que se peçam explicações sobre os pontos obscuros. Os outros, pelo contrário, temendo enfrentar argumentos mais fortes, empenham-se cuidadosamente em evitá-los. É assim que geralmente recomendam aos médiuns que desejam dominar, para fazê-los aceitar as suas utopias, que se abstenham de toda controvérsia a respeito dos seus ensinos.

Quem bem compreendeu o que dissemos até aqui, nesta obra, já pode fazer idéia da área a que deve limitar as perguntas dirigidas aos Espíritos. Não obstante, para maior certeza, damos abaixo as suas respostas aos principais assuntos que pessoas pouco experientes estão geralmente dispostas a apresentar-lhes".

Oposto a Kardec, o pensamento de Chico Xavier apela para a supremacia da Fé sobre a Razão. Muito do pensamento xavieriano não passaria pelo rigor da Razão, e é esse o medo. Chico usa eufemismos para definir, negativamente, o pensamento crítico, definido como "tóxico do intelectualismo", e para defender a fé cega, que se impõe à Razão, sob a alcunha de "olhar do coração".

Uma prova do caráter mistificador de Chico Xavier está no livro Emmanuel, de 1938, no Capítulo IV, "A Base Religiosa", no subtítulo "O Tóxico do Intelectualismo", onde logo de cara se manifesta a reprovação do senso crítico:

"O sentimento religioso é a base de todas as civilizações. Preconiza-se uma educação pela inteligência, concedendo-se liberdade aos impulsos naturais do homem. A experiência fracassaria. É ocioso acrescentar que me refiro aqui à moral religiosa, que deverá inspirar a formação do caráter e do instituto da família e não ao sectarismo do círculo estreito das igrejas terrestres, que costumam envenenar, aí no mundo, o ambiente das escolas públicas, onde deverá prevalecer sempre o mais largo critério de liberdade do pensamento".

O trecho é cheio de ideias truncadas e de opiniões tendenciosamente suspeitas, pela suposta condenação ao "círculo estreito das igrejas terrestres", talvez uma indireta ao Catolicismo que estava questionando as irregularidades "mediúnicas" de Chico Xavier. Chico sempre foi católico, e dos mais ortodoxos, mas passou a divergir da Igreja Católica quando esta, a partir das fraudes de Parnaso de Além-Túmulo, pôs em dúvida a suposta mediunidade de Xavier.

Devemos levar em consideração que o termo "largo critério de liberdade de pensamento" deve ser entendido com cautela, porque é um termo falso, uma vez que em vários momentos da obra de Chico Xavier e do seu depoimento no Pinga Fogo da TV Tupi, em 1971, onde ele expressa seu conservadorismo obscurantista, o senso crítico, ferramenta maior da liberdade de pensamento, era sempre amaldiçoado pelo "médium" como "fonte de paixões maliciosas, materialistas e terrenas".

Infelizmente, nem mesmo o mais entusiasmado seguidor de Chico Xavier se arrisca a ler de verdade os seus textos. Tomado de cegueira emocional, ele prefere cultuar o "médium" de acordo com os limites confortáveis de suas paixões e fantasias. Daí que ele não tem a menor desconfiança das ideias truncadas e obscurantistas do "médium", cuja formação conservadora fez com que fosse possível inferir que Chico Xavier apoiaria, sem dúvida, o governo Jair Bolsonaro, mesmo com reservas.

A gravíssima divergência entre o pensamento kardeciano e o pensamento xavieriano provam do preocupante problema que muitos ignoram do Espiritismo: o conflito entre a defesa do rigor da Lógica e da Razão pelo Espiritismo francês e a supremacia da Fé pelo suposto Espiritismo feito no Brasil.