Espiritismo e a questão do Saber amaldiçoado

Para tudo devemos ter cuidado. É evidente que a questão da inteligência profunda e do senso crítico apurado podem, se mal conduzidos, resultar em ideias e práticas traiçoeiras. Vejamos o que Allan Kardec havia escrito em O Livro dos Médiuns, Capítulo 24, Identidade dos Espíritos, em todo o item 265:
"A inteligência está longe de ser um sinal seguro de superioridade, porque a inteligência e a moral nem sempre andam juntas. Um Espírito pode ser bom, afável e ter conhecimentos limitados, enquanto um Espírito inteligente e instruído pode ser moralmente bastante inferior".
Em que pese sua complacência com Francisco Cândido Xavier, o jornalista autenticamente espírita, José Herculano Pires, o tradutor mais correto da obra kardeciana, havia feito uma advertência bastante pertinente, na nota 5 correspondente ao referido item:
"Atenção para a advertência final de que isso não constitui regra. Certas pessoas entendem que só devemos crer nos Espíritos ignorantes ou que se fazem passar por tal. Isso é ir de um extremo ao outro. Os Espíritos realmente elevados são inteligentes e bons, realizaram ao mesmo tempo a evolução intelectual e moral, como se depreende da própria regra de identificação de sua elevação pela linguagem".
E por que temos que tomar muito cuidado? Porque a interpretação leviana de que inteligências refinadas podem conduzir ao Mal pode levar isso como regra e não como uma eventualidade. E é justamente a interpretação leviana que é feita pelo "espiritismo" brasileiro, que, fugindo dos ensinamentos espíritas originais, trabalha para blindar o mito duvidoso de Chico Xavier, promovido como um estranho "ignorante que se tornou sábio por conta de sua elevada (sic) condição moral".
A obra de Chico Xavier é uma verdadeira campanha contra o senso crítico. Sua falácia, neste sentido, apela para a Síndrome da Projeção, recurso psicológico que faz alguém atribuir seus próprios defeitos a uma outra pessoa.
Neste caso, vemos a retórica chiquista chamar de "censura" e "inquisição" o senso crítico aprofundado, quando seu questionamento se torna bastante enérgico. E define como "liberdade de pensamento" aquela que se torna escrava dos dogmas da "fé espírita".
Muitos caem nessa lorota e se esquecem que uma das personalidades mais enérgicas na sua execução de senso crítico e questionamento aprofundados foi ninguém menos que Jesus de Nazaré, conhecido também como Jesus Cristo.
Sua trajetória é marcada por um questionamento profundo dos escribas e fariseus. Jesus era enérgico ao criticar os religiosos movidos de pretensa sabedoria, pretensa humildade e falsa simplicidade, máscaras para sua arrogância que os faz se autoproclamarem "representantes de Deus na Terra".
Jesus foi condenado justamente por ser bastante enérgico contra os pretensos sacerdotes da época, cuja conduta, que mistura falsidade com orgulho, arrogância com dissimulação, se encaixa justamente nos "médiuns espíritas" dos tempos modernos. Estes se deixam valer da pretensa ignorância, como Chico Xavier, ou de falsa sabedoria explícita, como Divaldo Franco, para se deixar valer como pretensos possuidores da verdade.
A "TRAVE ESPÍRITA"
Na verdade, as pregações "espíritas", dos livros de Chico Xavier às mensagens "imparciais" dos "isentões espíritas" - que quando se trata de questionar o "médium" mineiro, exigem o mais rigoroso dos métodos de raciocínio, mas quando se trata de apoiá-lo, vale qualquer especulação, mesmo uma simples palavra solta - , mostram que os "espíritas" em geral gostam de reprovar o argueiro nos olhos dos outros, se esquecendo das traves em seus próprios.
Alexandre Caroli Rocha, acadêmico "espírita" da USP, caiu em sua própria cilada. Num ensaio sobre a suposta psicografia sob o nome de Humberto de Campos, ele rejeitou os questionamentos que a invalidam, por achar "taxativas" e "levadas a conclusões escorregadias".
Julgando o argueiro nos olhos dos outros, Caroli Rocha foi vítima de sua armadilha. Ao analisar as cartas supostamente psicográficas sob o nome de Jair Presente, Caroli tentou ser "taxativo": "As cartas de Jair Presente são verídicas". E foi "escorregadio": "Mas isso não garante que essas cartas tenham sido escritas por alguém já morto".
Os "isentões espíritas" se multiplicam, feito insetos na lavoura, nas redes sociais, desqualificando os questionamentos que põem em xeque a reputação de Chico Xavier. Tentando levantar o tom, esses pretensos sábios cobram dos questionadores "maior rigor e objetividade", e duvidam até do óbvio e do indiscutível. Escrevendo com a linguagem de quem fala grosso para assustar os outros, os "isentões espíritas" usam falácias até para dizer que "duvidam do óbvio, que não deve ser tão óbvio assim".
Mesmo caindo em sérias contradições e equívocos que deveriam ser vexaminosos - como atribuir a Chico Xavier supostos pioneirismos em descobertas científicas ligadas à glândula pineal e à vida em Marte - , os "espíritas" se arrogam em "valorizar o Saber na forma equilibrada e saudável", que só eles julgam ser uma forma "livre e plena".
O "IGNORANTE" ESPERTO E O "SABE-TUDO"
Sabemos que tanto o mito do "ignorante que virou sábio" de Chico Xavier e o "sábio que responde a todas as coisas" de Divaldo Franco foram plantados de maneira tendenciosa com o objetivo de causar impressão em pessoas incautas e seduzir até aqueles dotados de algum esclarecimento, mas em certo momento caem em certas armadilhas.
As atribuições de Chico Xavier são mais confusas, porque seu discurso explora a contradição. O mito do "iletrado ignorante" que teria atraído para si uma multidão de grandes escritores, uma "carteirada" montada com o embuste literário chamado Parnaso de Além-Túmulo, uma obra sensacionalista cuja trajetória foi marcada por equívocos, comprovados até mesmo pelo "fogo amigo" acionado sem querer por Suely Caldas Schubert, ao divulgar uma carta antiga do "médium" confessando o "crime".
Sim, porque, para quem não sabe, Chico Xavier escreveu carta ao presidente da "Federação Espírita Brasileira", Antônio Wantuil de Freitas, admitindo que Parnaso de Além-Túmulo sofreu revisões de editores da FEB, e Chico admitiu não ter tempo para "rever os originais".
Embora Chico fale em "amigos espirituais", esse termo pode ser ambíguo ou provavelmente um código combinado entre Wantuil e o "médium". Afinal, não há tese que sustente que Chico Xavier realmente fez trabalhos mediúnicos, por dois motivos muito simples:
1) Um dos defeitos típicos dos brasileiros é sua incapacidade de concentração. Se atividades simples, como ouvir música e ler livros, não são apreciadas senão de maneira superficial, sem ter ideia exata do que realmente se ouve ou lê, imagine receber mensagens de mortos, pois a dificuldade será maior, mesmo estando em um quarto totalmente escuro (difícil escrever num ambiente nessas condições);
2) O Brasil está muito atrasado em assunto de paranormalidade, sendo praticamente leigo no assunto. Os conhecimentos ainda estão num estágio muito incipiente, e se o Velho Mundo, historica e sociologicamente mais experiente, apresenta problemas na compreensão de assuntos paranormais, é evidente que o Brasil não oferecerá respostas para tais problemas, por estar em condição cognoscitiva muito pior.
3) A personalidade de Chico Xavier sempre foi convencional e profundamente conservadora - em 99% equiparada, por exemplo, aos apoiadores de Jair Bolsonaro, com a única diferença de que o "médium" reprovava a violência explícita do cidadão comum usar revólver ou alguém queimar florestas sem trazer compensação à Natureza - , e, por isso, não se pode sequer supor que Chico Xavier venha a ser um competente paranormal, excetuando a incapacidade frequente no Brasil quanto a essa atividade.
Há muitos pontos estranhos, só em Parnaso de Além-Túmulo que, se o Brasil fosse um país menos ingênuo, desqualificariam Chico Xavier no nascedouro, a ponto dele se reduzir a um verbete de livros de curiosidades e fatos pitorescos. Só a vocação dos brasileiros para o surrealismo faz com que um mito como o de Chico Xavier crescesse de forma assustadora. Se fosse na Grã-Bretanha, a vida de Chico Xavier nunca passaria de uma comédia do Monty Python, do criador de obras fake atribuídas aos mortos que virou um semi-deus.
No entanto, o jogo de conveniências fez de Chico Xavier um pretenso sábio. São jogos de interesses aos quais seus seguidores, hipnotizados - até mesmo os "isentões espíritas", que seguem a cartilha pedante dos "intelectuais de Facebook", através de uma caprichada "máscara de objetividade" - , em nenhum momento percebem e, quando são advertidos, ainda reagem renegando.
E se Chico Xavier virou pretenso sábio com suas recomendações igrejistas e moralistas, através de um verniz garantido pela apropriação indébita dos grandes nomes da nossa literatura, Divaldo Franco foi um subproduto desse êxito, mas agindo de outra forma: igualmente igrejista, Divaldo no entanto preferiu vestir a capa de "cientista" e obter "ares professorais", diferente do seu antecessor.
E aí temos aberrações como "Divaldo Responde" - que coloca o "médium" baiano como um pretenso "sabe-tudo" - , que vão contra a natureza dos verdadeiros intelectuais, que não lançam respostas, mas questões, e procuram estimular o pensamento e não trazer "repouso intelectual" às pessoas. Os verdadeiros intelectuais trazem a dúvida, enquanto Divaldo Franco alega que traz "certezas".
A verdade é que os próprios "espíritas" é que têm o Saber amaldiçoado. Eles caem em contradições às quais não conseguem explicar de maneira segura e confiável. Cobram dos outros, que questionam totens "espíritas" como Chico Xavier, o mais rigoroso dos métodos de questionamento, mas que, de tão rigorosos, questionam mais a Razão e a Lógica do que colaboram com as mesmas.
Presos em suas mistificações, os "isentões espíritas", que nas redes sociais e fóruns digitais posam de "intelectualmente equilibrados" e se arrogam em se acharem "possuidores de uma visão objetiva e imparcial das coisas", cobram dos outros extremo rigor porque veem nos questionadores de Chico Xavier e companhia supostos argueiros que julgam cegar-lhes os olhos.
Mas os "isentões espíritas" não veem as traves nos seus olhos. Quando é contra o mito de Chico Xavier, pedem o rigor exagerado dos exames, tratando "psicografias" como se fossem fenômenos físicos, exigindo delas fórmulas matemáticas complexas, destas que nem astrônomos usam para avaliar a data de formação de asteroides.
No entanto, quando se tratam de coisas a favor de Chico Xavier, eles se conformam com qualquer especulação. Até fingem reprovar ideias mistificadoras que tratam o "médium" como um semi-deus. Os "isentões", todavia, se resignam com essa ideia, que dizem discordar mas não se sentem muito incomodados com ela.
Os "isentões espíritas" que blindam Chico Xavier na Internet se equiparam aos "coxinhas" que se confundem diante das "atribuições jurídicas" de Sérgio Moro, Deltan Dallagnol e a Operação Lava Jato. Se confundem com argumentos, cobrando dos outros a "objetividade", "impacialidade" e o "rigor metodológico" que os "isentões" não têm.
Fácil cobrar dos outros. O problema é que os questionadores do mito de Chico Xavier já possuem visão objetiva dos fatos. rigor metodológico e imparcialidade, bem mais do que os partidários do "médium" que só se preocupam com a maquiagem de "intelectualismo" e "cientificidade" para blindar seu ídolo religioso, sem medir o menor escrúpulo de cair em contradições.
Daí que é fácil um "espírita" incriminar o Saber dos outros. Mas o que os "espíritas" sentem, no fundo, é inveja daqueles que exercem melhor a capacidade de raciocinar de forma crítica, abrangente e lógica as coisas.