Por que Chico Xavier é anti-kardeciano

Os brasileiros, infelizmente, não têm a menor ideia de que, sob o rótulo do Espiritismo, estão levando gato por lebre. Não sabem que há a deturpação doutrinária que, através de uma suposta concessão às tradições da religiosidade brasileira, desfigura os ensinamentos espíritas originais da pior maneira.
Isso não é invencionice. Basta observarmos os livros originais de Allan Kardec, cuja tradução mais fiel ao texto original, em que pesem poucos e pequeninos erros, é a de José Herculano Pires e seus colaboradores (publicados pela Editora LAKE), e compararmos com os livros e depoimentos de Francisco Cândido Xavier.
O contraste é muito, muito grande. Não se pode iludir pela fachada discursiva, na qual ambas as teorias são postas como supostamente convergentes no que se refere à caridade, ao amor ao próximo. Por debaixo desse pano, vemos que o nome Espiritismo é usado para duas crenças antagônicas e gravemente conflituosas, a francesa e a brasileira.
O que é mais irônico é que a obra de Chico Xavier apresenta ideias e procedimentos que haviam sido condenados por Allan Kardec em sua obra original. Aspectos que, sobretudo, aparecem explícitos em O Livro dos Médiuns e colocam Chico Xavier e seus associados como "inimigos internos do Espiritismo", uma constatação que entristece muita gente, mas é do mais contundente realismo e comprovado pelo farto repertório de argumentos e provas robustos.
Em resumo, Allan Kardec parece ter previsto o fenômeno Chico Xavier quando apontou aspectos negativos que viriam marcar a trajetória do "médium" brasileiro e deturpador doutrinário\;
1) Os textos de Chico Xavier são empolados, forçadamente eruditos, com eventuais expressões rebuscadas e linguagem prolixa e maçante, feitos para promover mistificação. Uma das principais mistificações é a suposição de haver uma "cidade espiritual", chamada de Nosso Lar, sem que houvesse qualquer fundamentação científica, além de ter sido baseada em sensações meramente materiais e terrenas;
2) Chico Xavier previu datas determinadas para fatos futuros, como a "data-limite de 2019". Embora parte de seus seguidores recuse a admitir isso - eles acreditam que Chico Xavier nunca fez "profecias" - , isso pode ser confirmado em várias de suas obras literárias e no depoimento do programa Pinga-Fogo, da TV Tupi. A pretensão de "prever o futuro" com datas fixas, segundo Kardec, expressa baixo nível moral e influência de espíritos zombeteiros para despertar medo e ansiedade nas pessoas;
3) O uso de nomes ilustres para promover mistificação e sensacionalismo. O lançamento de Parnaso de Além-Túmulo forçou muito a barra com uma múltipla menção de nomes de grandes escritores, atribuídos à suposta autoria espiritual. Especialistas literários dos mais sérios reconhecem o livro como uma fraude, feita por Chico e seus colaboradores, mediante robusta argumentação e provas fartas. A obra se encaixa nos alertas de Kardec de que o uso de "grandes nomes" em supostas psicografias pode representar uma perigosa armadilha misfiticadora.
4) Uma dessas armadilhas mistificadoras é supor uma predestinação privilegiada para o Brasil, uma espécie de "patriotada religiosa" simbolizada pelo projeto Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, nome de uma obra que Chico Xavier escreveu por sua mente pessoal, juntamente com a parceria terrena do presidente da "Federação Espírita Brasileira", Antônio Wantuil de Freitas. Na sua obra, Kardec nunca defendeu que um único país possa liderar o planeta, com suposta missão humanitária, porque se trata de uma perigosa fusão de Estado com Religião.
O uso do nome de Humberto de Campos revela esse caráter tendencioso e a promessa dos "espíritas" de que a "pátria do Evangelho" se limitaria apenas a promover mutirão e união fraterna são uma ilusão, porque a natureza de uma nação, sendo dominante política e religiosamente, é a de se formar uma nova tirania, porque isso é da natureza do instinto humano.
É enganoso que a "pátria do Evangelho", com o "espiritismo" brasileiro comandando a Terra, reaja a crenças divergentes, como o islamismo e a umbanda, com uma dócil e paciente tolerância. O suposto ecumenismo do "espiritismo" brasileiro é uma armadilha que serve para cooptar várias crenças para depois elas serem absorvidas numa única religião.
Essa proposta está incluída tanto na obra de Jean-Baptiste Roustaing, Os Quatro Evangelhos, cujas afinidades com o pensamento de Chico Xavier desmentem que ele tenha renegado o roustanguismo (o "médium" foi roustanguista a vida toda), quanto na tática dos jesuítas do Brasil colonial, sobretudo do século XVI, que, sob o pretexto de "aculturar" os povos indígenas, os catequizaram para torná-los submissos ao poder colonizador e à religião católica.
Aliás, o que vemos é uma grave divergência do Espiritismo francês e sua suposta adaptação brasileira. Se Kardec era influenciado pelo Iluminismo, que representou uma ruptura conceitual dos padrões de vida e pensamento medievais, Xavier era influenciado pelo Catolicismo jesuíta, que remete às raízes medievais do Catolicismo português que predominou no Brasil nos primeiros séculos.
RAZÃO X FÉ
Mas a maior divergência, o mais mortal conflito que Allan Kardec e seu suposto seguidor Chico Xavier enfrentam é que, enquanto o pedagogo francês rega o exame rigoroso da razão, o "médium" brasileiro sempre rejeitava o raciocínio crítico e investigativo, considerado "amaldiçoado", sobretudo quando passa a contestar os dogmas da fé religiosa.
Uma grande falácia dissimula a postura obscurantista defendida por Chico Xavier. Entendemos, por exemplo, que a expressão que o "médium" tanto prega, os "olhos do coração", são na verdade eufemismo para fé cega, aquela que tenta se impor à Razão. Uma Fé que autoproclama ter mais razão que a Razão é obscurantista, e vai contra o esclarecimento, pois a Fé, neste caso, apela para uma pretensa "luz" feita mais para cegar as pessoas do que para lhes permitir a ver.
Um dos maiores exemplos de que Chico Xavier rejeita o pensamento crítico, é inimigo da Razão e repudia a análise investigativa - atribuições da Lógica que o "médium" só aceita se estiverem longe dos terrenos da Fé - se trata de uma frase que parece dócil e confortante, mas é de um sentido medieval e obscurantista dos mais preocupantes:
"A sabedoria superior tolera, a inferior julga; a superior perdoa, a inferior condena. Tem coisas que o coração só fala para quem sabe escutar!"
Evidentemente que essa frase é hipócrita. A sabedoria superior não é aquela, é verdade, que impõe suas atribuições lógicas para o mal. No entanto, Chico Xavier, ao defender que o "sábio" deva "tolerar e perdoar", no seu sentido igrejeiro, substituindo o cérebro pelo coração, o "médium" está, sob o aparato do "mel das palavras", defendendo que o sábio deveria evitar questionar, investigar e analisar, e seu "único raciocínio" só deve servir para a submissão à Fé e aceitar seus dogmas, por mais absurdos e contraditórios que sejam.
Contrariando Chico Xavier, o pensamento de Allan Kardec vai no sentido contrário. Kardec chega a admitir que, se a Ciência comprovar teses que invalidam as do pedagogo francês, que seja preferível ficar com a Ciência. O rigor da lógica, manifesto em diversas passagens, manifesta-se, sobretudo, nesta frase, no O Evangelho Segundo o Espiritismo, Capítulo 19, "A Fé que Transporta Montanhas", segmento " Fé Religiosa - Condição da Fé Inabalável":
"É precisamente o dogma da fé cega que hoje em dia produz o maior número de incrédulos. Porque ela quer impor-se, exigindo a abdicação de uma das mais preciosas prerrogativas do homem: a que se constitui do raciocínio e do livre-arbítrio".
São muitas e muitas passagens que esse conflito mortal entre Allan Kardec e Chico Xavier confirmam esse contraste, quando o pedagogo francês defende o rigor da Razão, estimulando o debate, o questionamento profundo e investigativo, e o "médium" brasileiro puxa para trás, falando em "tóxico do intelectualismo" e amaldiçoando quem tiver um senso crítico bastante afiado, atribuindo levianamente a quem age assim uma "perigosa rendição às paixões terrenas".
Usando da Síndrome da Projeção, fenômeno da Psicologia que consiste em uma pessoa atribuir defeitos que ela tem em outras pessoas, o pensamento de Chico Xavier tenta comparar o pensamento crítico aprofundado a uma inquisição medieval. Essa comparação é desprovida de qualquer coerência, porque o próprio Chico Xavier defende ideias obscurantistas, e a História registra que as inquisições medievais foram motivadas não pelo rigor da Razão, mas pela supremacia da Fé.
PEGADINHA
Há, todavia, passagens que parecem colocar Allan Kardec como apoiador da Fé e Chico Xavier como apoiador da Razão, o que, numa observação precipitada e imprudente, pode legitimar os erros e contradições vistos sob o rótulo de Espiritismo no Brasil.
No discurso de abertura da reunião da Sociedade Espírita de Paris, em 01 de novembro de 1868, intitulado "O Espiritismo é uma religião e nós nos ufanamos disso", merece observação cautelosa:
"O elo estabelecido por uma religião, seja qual for o seu objeto, é, portanto, um elo essencialmente moral, que liga os corações, que identifica os pensamentos, as aspirações, e não é apenas o fato de compromissos materiais que eles quebram à vontade, ou a realização de fórmulas que falam mais aos olhos do que à mente. O efeito deste vínculo moral é estabelecer entre aqueles a quem une, como conseqüência da comunidade de visões e sentimentos, fraternidade e solidariedade, indulgência mútua e benevolência. É nesse sentido que também dizemos: a religião da amizade, a religião da família.
Se assim for, será dito que o Espiritismo é uma religião? Bem, sim! sem dúvida, cavalheiros; No sentido filosófico, o Espiritismo é uma religião, e nós nos orgulhamos dele, porque é a doutrina que funda os laços de fraternidade e comunhão de pensamento, não em uma simples convenção, mas na base de mais sólido: as próprias leis da natureza".
Esse texto não pode ser entendido no sentido de "religião" abraçado por Chico Xavier, que sempre foi um católico ortodoxo, como confirmam as suas raízes sociais. A "religião" defendida pelo "médium", por mais que use retóricas mentirosas de "ligação filosófica entre o Homem e o Criador", sempre estão associadas à forma depreciativa de conceitos ritualistas e dogmáticos, como os que foram consagrados pelo Catolicismo da Idade Média.
Quando Kardec escreveu "A fé inabalável é aquela capaz de enfrentar sem temor a Razão. Essa é a mais pura verdade", ele não quis defender a supremacia da Fé sobre a Razão. A expressão "sem temor" deve ser entendida no sentido de que a verdadeira Fé não contradiz a Razão e, portanto, pode encará-la sem o peso da consciência da contradição e do conflito.
Por outro lado, vejamos o que escreveu Chico Xavier, no livro Emmanuel, de 1938, no Capítulo IV, "A Base Religiosa", subtítulo "O Tóxico do Intelectualismo":
"O sentimento religioso é a base de todas as civilizações. Preconiza-se uma educação pela inteligência, concedendo-se liberdade aos impulsos naturais do homem. A experiência fracassaria. É ocioso acrescentar que me refiro aqui à moral religiosa, que deverá inspirar a formação do caráter e do instituto da família e não ao sectarismo do círculo estreito das igrejas terrestres, que costumam envenenar, aí no mundo, o ambiente das escolas públicas, onde deverá prevalecer sempre o mais largo critério de liberdade do pensamento".
A recomendação é que desconfiemos do termo "largo critério de liberdade do pensamento". Contextualizando o sentido de "liberdade" na obra de Chico Xavier, esse conceito se encaixa na falácia religiosa que diz que "liberdade é se submeter aos desígnios de Deus". É o mesmo sentido hipócrita que motivou famílias reacionárias, comandadas por religiões e correntes reacionárias, a pedirem o golpe militar na Marcha da Família Unida com Deus pela Liberdade, ocorrida no Vale do Anhangabaú, em São Paulo, em 19 de março de 1964.
A marcha que "comoveu" a direita e fez surgir a sangrenta ditadura militar foi promovida por movimentos católicos e evangélicos, incluindo a Cruzada do Rosário em Família, corrente católico-conservadora do padre irlandês Patrick Peyton, a Igreja Nova Vida, de Robert McAllister e a Assembleia de Deus. A "Federação Espírita Brasileira", conforme registra o livro 1964: O golpe que derrubou um presidente, dos historiadores Jorge Ferreira (autor da do livro João Goulart - Uma Biografia) e Ângela de Castro Gomes, capítulo 23, "E o golpe virou revolução...":
"O que marcou a caminhada foram os grupos religiosos e, claro, as mulheres. Embora a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil não apoiasse oficialmente as Marchas, nada impedia que padres e bispos, por sua própria convicção pessoal, participassem do evento. Mas estiveram presentes também fiéis das igrejas protestantes, rabinos, espíritas kardecistas (sic) e umbandistas".
(...)
Quando a Marcha chegou ao seu destino (Vale do Anhangabaú, em São Paulo), começaram os discursos. É importante observar quem foram os oradores. Houve líderes religiosos falando em nome dos espíritas kardecistas e da Comissão de Divulgação da Imagem de Iemanjá, além de um rabino, um pastor protestante e um representante da Igreja Romana Ortodoxa".
Em muitos momentos, Chico Xavier, através de seus "mensageiros espirituais" (ou seriam heterônimos?), condenava o senso crítico, o questionamento aprofundado, o saber investigativo. O pensamento de Chico Xavier sempre apelou para a restrição do Saber, que ele "defendeu" apenas sob a condição dele se submeter aos dogmas da Fé religiosa, sem representar ameaça a crenças míticas e místicas, por mais contraditórias e absurdas que sejam.
Com isso, podemos confirmar que Chico Xavier é o maior inimigo interno do Espiritismo, assim como qualquer um que esteja associado a ele. Essa constatação, embora dolorosa para muitos, é realista e nada tem de exagerada, porque ela se sustenta por uma farta coleção de provas robustas e argumentos consistentes, que não podem ser atribuídos à "perversas paixões humanas".
Afinal, os "espíritas", a partir de Chico Xavier, falam tanto no "saber amaldiçoado", no "uso perverso das inteligências sofisticadas para o mal", mas o próprio "médium" se esquece que sua trajetória é marcada por atos desonestos, covardes e reacionários, que são mascarados pelo prestígio religioso. Ou seja, se existe o Saber voltado para o Mal, o que é, de fato, lamentável, também existe a Desonestidade que se esconde sob a máscara da Fé, o que é pior ainda.