A irritante hipocrisia do "espiritismo" brasileiro

Ninguém tem a mínima ideia de que Espiritismo, no Brasil, é uma doutrina deturpada, cujos ensinamentos originais foram criminosamente desvirtuados. Para piorar as coisas, as traições doutrinárias, mais constantes e permanentes do que as de Judas Iscariotes contra Jesus de Nazaré, são jogadas para baixo do tapete.
Isso é uma grande hipocrisia. Muitos "espíritas" brasileiros cometem traições doutrinárias graves aos ensinamentos de Allan Kardec, mas fazem falsos juramentos de "fidelidade absoluta", jogando na conta do pedagogo francês ideias que ele não defenderia - como as "crianças-índigo", a "profecia da data-limite" e o moralismo punitivista dos "resgates coletivos" - e contrariando o cientificismo com uma estranha ênfase na religiosidade.
Mas o que piora ainda mais as coisas é que muitos desses hipócritas estufam o peito e dizem que "só existe um espiritismo único, o de Kardec", enquanto seguem a deturpação catolicizante de todos os momentos. E como se essa hipocrisia não bastasse, esses deturpadores ainda cobram dos outros uma "melhor compreensão" do Espiritismo original: "não basta entender Kardec, é preciso viver Kardec todas as horas, no dia a dia, fora das reuniões espíritas!".
A história do "espiritismo" brasileiro se fundamenta no Roustanguismo que nenhum de seus seguidores tem um pingo de coragem em assumir. No passado, porém, assumiam sem problema a herança do pioneiro deturpador Jean-Baptiste Roustaing, que, através de uma suposta médium, a madame belga Emilie Collignon, alegava ter recebido novas mensagens de supostos espíritos dos quatro evangelistas (Marcos, Mateus, Lucas e João), que gerou o livro Os Quatro Evangelhos.
Nos primórdios da "Federação Espírita Brasileira", o Roustanguismo era estimulado até mesmo acima do próprio legado kardeciano. Tanto que um "Allan Kardec" absolutamente fake era difundido na sede da "Sociedade Espírita Fraternidade", no Rio de Janeiro, em 05 de fevereiro de 1889, pelo suposto médium Frederico Pereira da Silva Júnior, o Frederico Júnior. Dizia o suposto Kardec, em estranha linguagem, que lembra a de um sacerdote e não a de um pedagogo sério:
"Eis que se aproxima para mim o momento de cumprir minha promessa, vindo fazer convosco em particular e com os espíritas em geral um estudo rápido e conciso, sobre a marcha da nossa doutrina nesta parte do planeta. É natural que a vossa bondade me forneça para isso o ensejo, na próxima sessão prática, servindo-me do médium com a mesma passividade com que o tem feito das outras vezes. A ele peço, particularmente, não cogitar de forma da nossa comunicação, não só porque dessa cogitação pode advir alteração dos pensamentos, como ainda porque acredito haver necessidade, sem ofensa à sua capacidade intelectual, de submeter a novos moldes, quanto à forma, aquilo que tenho dito e vou dizer em relação ao assunto".
No dia seguinte, o suposto espírito do Codificador trazia recados estranhíssimos:
"Ismael, o vosso Guia, tomando a responsabilidade de vos conduzir ao grande templo do amor e da fraternidade humana, levantou a sua bandeira, tendo inscrito nela – DEUS, CRISTO E CARIDADE. Forte pela sua dedicação, animado pela misericórdia de Deus, que nunca falta aos seus trabalhadores, sua voz santa e evangélica ecoou em todos os corações procurando atraí-los para um único agrupamento onde, unidos, teriam a força dos leões e a mansidão das pombas; onde unidos, pudessem afrontar todo o peso das iniquidade humanas; onde entrelaçados num único segmento – o do amor - , pudessem adorar o Pai em espírito e verdade; onde se levantasse a grande muralha da fé,
Contra a qual viessem quebrar-se todas as armas dos inimigos da luz; onde, finalmente, se pudesse formar um grande dique à onda tempestuosa das paixões, dos crimes e dos vícios que avassalam a Humanidade inteira!
Constituiu-se esse agrupamento; a voz de Ismael foi sentida nos corações. Mas, oh! misérias humanas! À semelhança das sementes lançadas no pedregulho, eles não encontram terra boa para suas raízes e quando aquele Anjo Bom – aquele Enviado do Eterno – julgava ter em seu seio amigos e irmãos capazes de ajudá-lo na sua grande tarefa, santa e boa, as sementes foram mirrando ao fogo das paixões – foram-se encravando na rocha, apesar do orvalho da misericórdia divina as banhar constantemente para sua vivificação!
(...)
Ismael tem o seu Templo e sobre ele a sua bandeira – Deus, Cristo e Caridade! Ismael tem a sua pequenina tenda, onde procura reunir todos os seus irmãos – todos aqueles que ouviram a sua palavra e a aceitaram como a verdade. Chamam-se FRATERNIDADE!
Pergunto-vos: Pertenceis à Fraternidade? Trabalhais para o levantamento desse Templo cujo lema é Deus, Cristo e Caridade?
Como, e de que modo?
Meus amigos! É possível que eu seja injusto convosco naquilo que vou dizer: - O vosso trabalho, feito todo de acordo – não com a doutrina – mas com o que interessa exclusivamente aos vossos sentimentos, não pode dar bom fruto. Esse trabalho, sem método, sem regime, sem disciplina, só pode, de acordo com a doutrina que esposastes, trazer espinhos que dilacerem vossas almas, dores pungentes aos vossos Espíritos, por isso que, desvirtuando os princípios em que ela assenta, dais entrada constante e funesta aquele que encontrando-vos desunidos pelo egoísmo, pelo orgulho, pela vaidade, facilmente vos acabrunhará, com todo o peso da sua iniquidade.
Entretanto, dar-se-ia o mesmo se estivésseis unidos? Porventura acreditais na eficiência de um grande exército dirigido por diversos generais, cada qual com seu sistema, com o seu método de operar e com pontos de mira divergentes? Jamais! Nessas condições sé encontrareis a derrota porquanto – vede bem, o que não podeis fazer com o Evangelho – unir-vos pelo amor do bem – fazem os vossos inimigos, unindo-vos pelo amor do mal!
Eles não obedecem a diversas orientações, nem colimam objetivos diversos; tudo converge para a doutrina espírita – revelação da revelação (grifo nosso) – que não lhes convém e que precisam destruir, para o que empregam toda a sua inteligência, todo do seu amor do mal, submetendo-se a uma única direção!".
Notem o termo "revelação da revelação", subtítulo de Os Quatro Evangelhos, era evocado pela mensagem do suposto Kardec, em 1889, mesmo ano da Proclamação da República. Essa mensagem é um marco do desvirtuamento do Espiritismo que, no Brasil, contraiu um DNA roustanguista que hoje tenta renegar, em vão.
Isso porque dois artifícios foram feitos para camuflar o roustanguismo em "kardecismo autêntico". Um é traduzir de maneira tendenciosa os livros de Allan Kardec, através de textos catolicizados de Guillón Ribeiro e, de maneira mais politicamente correta, Salvador Gentile, respectivamente editados pelas editoras da FEB e IDE. As ideias de Kardec passaram a ser então trabalhadas de maneira leviana, de forma a não contrariar os interesses igrejeiros do "movimento espírita".
O outro artifício é utilizar justamente Francisco Cândido Xavier para adaptar as ideias de Roustaing para a realidade brasileira, tirando dele os pontos mais polêmicos ("Jesus fluídico" e os "criptógamos carnudos", reencarnação de espíritos em forma de animais, plantas ou micróbios). O livro Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho é uma adaptação de Os Quatro Evangelhos que, além desse propósito, ainda foi feito por encomenda pelo Estado Novo para evitar a repressão policial às "casas espíritas", acusadas de charlatanismo.
Com essas duas estratégias, deu para o "movimento espírita", principalmente após a morte de Antônio Wantuil de Freitas - descobridor e tutor de Chico Xavier e roustanguista radical - , forjar um "kardecismo autêntico" por intermédio da "catolicização do Espiritismo", criando um "Espiritismo para francês ver", supostamente "fiel" aos postulados originais kardecianos.
Criou-se, de 1974 para cá, um grande jogo de aparências no qual o "espiritismo" brasileiro vende a falsa ideia de que "está de acordo com Kardec". A "catolicização", que, descontando a fase de sobrevivência (aproximar-se do Catolicismo como forma de proteção contra a repressão policial) que durou até os anos 1930, tornou-se um processo perverso, foi aceito como uma "diferença regional saudável".
Em outras palavras, a "catolicização do Espiritismo", um processo perverso de desvirtuamento dos ensinamentos kardecianos, não só foi minimizada como problema como é vista até mesmo como "saudável", aceita e estimulada sob a desculpa de que o Brasil conta com "profundas tradições populares de religiosidade".
E aí as traições doutrinárias passaram a ocorrer com maior intensidade, por dois aspectos: um é o absoluto desconhecimento da "maioria silenciosa" de que Espiritismo, no Brasil, é deturpado. Isso é tão grave que nem mesmo a imprensa investigativa brasileira consegue revelar essa triste realidade. Muitos pensam que Espiritismo, no Brasil, só tem "pequenas e admiráveis diferenças" em relação ao original francês e supõem, ingenuamente, que a essência kardeciana está preservada por aqui.
Outro aspecto é que os deturpadores usam aspectos simbólicos da religiosidade, como a "caridade" e os "bons sentimentos" - como a suposta tolerância, como se os "espíritas" não fossem intolerantes, apesar desse aspecto macabro ser revelado quando se fazem questionamentos contra Chico Xavier - , além de um aparato de "simplicidade" e "despretensão" que tenta diferir os "espíritas" brasileiros dos católicos.
Isso abriu caminho para a permissividade que se tornou o "movimento espírita" e as atividades "espíritas" em geral, usando os nomes dos mortos da maneira que quer, em mensagens que não são mais do que mershandising religioso: o "morto" dizendo que "sofreu no umbral, foi socorrido para uma colônia espiritual, recebeu assistência espiritual e religiosa e manda recado para as pessoas na Terra viverem na 'fraternidade de Cristo'".
Além disso, comete-se traições doutrinárias preocupantes, com o agravante de que, invertendo o processo de Judas Iscariotes, os "espíritas" que traem Kardec continuam lhe mandando beijos, lhe manifestando, falsamente, "fidelidade absoluta" e até, com cínica hipocrisia, pedirem aos outros "respeito rigoroso com os postulados de Kardec". Com "kardecistas fiéis" desse porte, quem é que precisa de traidores?