Há "médiuns" demais no Brasil

CHICO XAVIER CONSULTANDO JORNAIS E ANOTANDO INFORMAÇÕES PARA NOVAS "PSICOGRAFIAS", EM FOTO TIRADA POR JEAN MANZON, EM 1944, PARA A REVISTA O CRUZEIRO.

Notemos que o Brasil é o menos preparado país para assuntos de paranormalidade, que no mundo mais desenvolvido e, historicamente, mais experiente, ainda é um enigma que rende profundas controvérsias. Não é o pensamento desejoso de muitos, aliado à mistificação religiosa, que faz do Brasil um país "despreparado" que, num estalo de Deus, teria se tornado "paraíso" das atividades paranormais do mundo.

Isso não tem lógica. É como se, só porque os sábios cometeram falhas, se recorresse aos ignorantes absolutos a solução de seus problemas. Mesmo quando há casos de crianças superinteligentes, como o prematuro estudante universitário de Engenharia Elétrica, um garoto belga de nove anos chamado Laurent Simons, ele teve dons específicos para tais atribuições.

Não serão os que estão no "jardim de infância" da vida, como os brasileiros, que darão uma lição de "paranormalidade" para o mundo. Pelo contrário, o caso de Francisco Cândido Xavier só deu certo por causa da burrice e da informação de grande parte dos brasileiros em torno de como é mesmo o tema da paranormalidade.

A atividade de Chico Xavier, conforme estudos sérios mostram, é irregular e cheia de falhas gravíssimas. Há indícios de fraudes, relatados até mesmo sem querer, por fontes solidárias ao "médium". Há comprovações de falhas em relação a aspectos pessoais, como estilos literários e caligrafias, e denúncias de "leituras frias" e consultas jornalísticas para produção de "psicografias" de pessoas comuns.

Não há como inocentar Chico Xavier dos erros que hoje se reconhecem em terceiros. Ele foi pioneiro desses erros, que vão de fraudes "mediúnicas" ao recreio perigoso de atribuir encarnações passadas, dadas sem o menor fundamento científico e desobedecendo as recomendações de Allan Kardec que via um perigo em tais atribuições.

Diante da trajetória irregular de Chico Xavier - que só as conveniências de interesses conseguiram vender a falsa reputação de "médium mais respeitável do mundo (sic)" - , abriu-se precedente para a multiplicação de supostos médiuns, através da aparente ideia de que "todos somos médiuns".

MEDIUNIDADE E PARANORMALIDADE

Há uma coleção de erros nessa ideia de "mediunidade". Primeiro, é um erro dizer que "mediunidade" é o fato de um vivo falar com um morto. Isso não é mediunidade. Mediunidade é a transmissão desse contato de um vivo para outros vivos e vice-versa. O simples contato particular entre vivos e mortos não é "mediunidade", mas uma aplicação social da paranormalidade, digamos, um contato metafísico.

Segundo, porque a forma com que Chico Xavier trouxe a tal "mediunidade" é cheia de equívocos, feita sem fundamentação científica, mas com muitas irregularidades e falhas graves que atingem a memória dos mortos, abriu precedente para a multiplicação de supostos médiuns, pela "receita fácil" que o "médium" mineiro lançou para seus seguidores e sucessores.

Basta fingir fechar os olhos e escrever algo previamente baseado em consultas bibliográficas, depoimentos de terceiros ou outras fontes, como consultores literários. Junta-se previamente um "repertório" de informações de um morto, e aplica-se esses dados em mensagens de pura propaganda religiosa. Vende-se livros prometendo "novas mensagens" de pessoas falecidas, o que é garantia de sensacionalismo num país ignorante e misticamente vulnerável como o Brasil.

Note-se que Allan Kardec reprovou algo que justamente foi motivo de projeção de Chico Xavier: o uso de "grandes nomes" para impressionar as pessoas e impor mistificação. Foi isso que foi feito em Parnaso de Além-Túmulo, um livro que, definitivamente, pode ser considerado uma obra pioneira da literatura fake. A obra apresenta estranhezas profundas nos aspectos pessoais dos supostos autores mortos e sofreu estranhas e sucessivas reparações editoriais, cinco vezes em 23 anos.

Consta-se que, com a "antologia poética" de 1932 e a série do suposto Humberto de Campos, Chico Xavier obteve marketing, nos níveis que Jair Bolsonaro obteve com seu plano terrorista de explodir quartéis em 1987. Ver que um suposto médium tenha sua ascensão calculada pela combinação de conveniências e truques publicitários para contornar encrencas, é assustador.

Mas foi isso que fez com que o Brasil tivesse falsos médiuns, como na verdade foi Chico Xavier e Divaldo Franco - ainda mais grotesco que Chico, pois este ainda se disfarçava sob "diversas linguagens", enquanto Divaldo era "único" num mesmo texto, seja se passando por "Joana de Angelis", "Deodoro da Fonseca", "Manuel Filomeno de Miranda", "Adolfo Bezerra de Menezes" e até mesmo o próprio "médium" baiano, nas entrevistas - , e uma infinidade de outros.

Em tese, todos podemos ser médiuns, mas como atividade ocupacional, esse dom requer maior cuidado. Infelizmente o Brasil corrompeu a necessidade de conhecer o tema da paranormalidade por aceitar arremedos dessas práticas cheios de irregularidades e feitos sem o menor fundamento nem o menor preparo.

A "receita" de Chico Xavier criou uma "corrida do ouro" de supostos médiuns que se multiplicavam numa quantidade muito estranha para uma atividade que requer preparos específicos e que surge com estranha frequência, maior do que em países como França e Bélgica.

Na França, aliás, a função de "médium" levava a sério a atribuição de "intermediário". O "médium" era apenas um canal entre vivos e mortos, um intermediário, um mero transmissor de mensagens. No Brasil, porém, "médium" virou o sacerdote, o dublê de pensador e de filósofo, o centro das atenções, a estrela do espetáculo, e a ele se reserva o culto à personalidade, como se vê em Chico e Divaldo.

A coisa tornou-se tão grave que a atividade "mediúnica", no Brasil, é feita com os padrões de um ilusionismo circense, com forte acento esotérico, mas socialmente estimulado pelas supostas alegações de promover a "paz" e a "caridade".

E isso criou uma série de supostos médiuns, de escreventes a curandeiros, passando por pintores, que na verdade não são mais do que praticantes de prestidigitação, técnica de enganar o público através de atos ilusionistas movidos pela agilidade das mãos. Vide a escrita rápida de Chico Xavier.

Na "Federação Espírita Brasileira", em movimentos "dissidentes" ou até independentes do "movimento espírita", vieram uma infinidade de supostos médiuns com uma quantidade muito estranha. Afinal, para uma aparente novidade que é a paranormalidade, o número de "médiuns" que apareceu é estranho demais, porque, como toda novidade, deveria sempre começar com uma quantidade muito pequena de adesões.

E é isso que provocou uma desordem e complicou ainda mais as pesquisas sobre contatos entre vivos e mortos. É inútil isolar Chico Xavier dos seguidores mais desordeiros, porque foi ele quem abriu o caminho, e não procede chamá-lo de "qualificado" e "confiável", diante das sérias irregularidades que chegaram a colocá-lo no banco dos réus, em 1944, do qual só evitou a prisão e outra sentença criminal por conta das conveniências e dos jogos de interesses diversos.

O Brasil acaba sendo castigado por tamanha pretensão. Mesmo na retaguarda da compreensão mundial das nações sobre o tema da paranormalidade, o nosso país tentou furar a fila e tentar largar na frente, com trabalhos "mediúnicos" que não passam de meros espetáculos de ilusionismo circense e que ofendem as recomendações e os conselhos do ignorado mestre Kardec.