Mito da anti-polarização não permite "esquerdizar" o "espiritismo de direita"


CHICO XAVIER E DIVALDO FRANCO - PIONEIRISMO ENTRE OS "MÉDIUNS DE DIREITA".

Muitos debates existentes nos círculos intelectuais, políticos ou mesmo nas redes sociais manifestam preocupação quanto ao problema da polarização, um fenômeno marcado pelas expressões de ódio gratuito que já resultaram em crimes motivados pela vingança e pela intolerância e que se intensificaram desde que o golpe político se efetivou no decorrer de 2016 no Brasil.

A polarização, segundo muitos analistas, chegou a dividir famílias e afastar amigos de infância, e a criar impasses diversos. Além disso, fez com que analistas como o sociólogo Jessé Souza apontassem o fenômeno como o sepultamento do mito do "brasileiro cordial" que durante décadas prevaleceu no país. Concordando com as teses do sociólogo, a filósofa Marilena Chauí também lembrou de que o Brasil sempre teve uma tradição autoritária, mas só agora ela está mais explícita.

É claro que a polarização traz efeitos nefastos para a sociedade, mas quem acha que ela é inválida, se engana. Também é perigoso o discurso anti-polarização porque, através dessa atitude, pessoas reacionárias podem se passar por "neutras" ou "progressistas", enganando a sociedade em geral e até se infiltrando nas esquerdas como pretensos aliados.

Sim, porque temos que tomar muito cuidado. Afinal, o que é a conciliação, dentro de um cenário de interesses divergentes intensos? O maior risco que a anti-polarização pode causar é trazer a polarização para dentro de um lado mais progressista, o que comprometeu o governo Lula, diante do "acordo de coalizão" com parte da direita "flexível" brasileira, que mais tarde pulou fora e hoje apoia, em parte, o governo Jair Bolsonaro.

A retórica anti-polarização pode parecer bem intencionada, mas antes de aceitarmos tudo pela cabra-cega, usando alegações emocionalmente agradáveis em torno da "fraternidade" e da "superação das diferenças", é bom vermos a coisa com cautela. Tem muito oportunista querendo dar uma de "conciliador", oferecendo um "abraço caloroso" para, na "hora H", apunhalar o outro pelas costas.

"ESPIRITISMO DE DIREITA"

No "espiritismo" brasileiro, temos a suposta novidade do "espiritismo de direita", trazida por denúncias de que "médiuns" como Divaldo Franco e João Teixeira de Faria, o João de Deus, estariam apoiando Sérgio Moro, um dos ativistas conservadores através do ofício de juiz da Operação Lava Jato, que lhe garantiu um assento na equipe ministerial de Jair Bolsonaro.

Há também figuras de destaque dessa tendência, como o famosíssimo ator Carlos Vereza, veterano que havia protagonizado o filme Memórias do Cárcere, de 1984, no papel do próprio escritor Graciliano Ramos, e que recentemente fez o papel de Adolfo Bezerra de Menezes, um dos mais festejados figurões do "movimento espírita" brasileiro.

Carlos Vereza virou um histérico defensor do "espírita de direita", entre os "não-médiuns". Seu reacionarismo é comparável ao do ex-professor de Astrologia e militante ultraconservador, Olavo de Carvalho. Vereza é conhecido por comentários raivosos contra a esquerda brasileira.

Há também nomes como Carlos Baccelli, de Uberaba, que se tornou também militante conservador e havia dito que Francisco Cândido Xavier tinha pavor do Partido dos Trabalhadores e havia previsto em 1979 que o Brasil, trinta anos após, seria governado por um político conservador que, no final da década de 1970, tinha idade próxima aos 25 anos. Em 1979, Jair Bolsonaro tinha 24 anos.

Mas quem duvida que o próprio Chico Xavier estaria fora do "espiritismo de direita", está redondamente enganado. Ele manifestou pontos de vista extremamente conservadores, rejeitando os movimentos proletários e exaltando a ditadura militar, diante do gigantesco público dentro e fora da plateia do programa Pinga Fogo da TV Tupi, em 1971.

Era uma demonstração de reacionarismo tão explícita que soa estranho as pessoas hoje renegarem o reacionarismo em Chico Xavier, criando teses sem pé nem cabeça para tentar relativizar tudo. Infelizmente, muitos se baseiam numa narrativa posterior e mais idealizada, que coloca o "médium" num status comparável ao de fadas-madrinhas de contos de fadas, e por isso acham "um absurdo" que Chico Xavier tenha sido reacionário, e ele foi, e um dos piores.

Só que os "espíritas" tentam relativizar tudo isso ainda de outra maneira. A de atribuir como "opiniões pessoais e sem efeito doutrinário" aos "médiuns de direita". Só que até nisso os "espíritas" erraram, pois Chico Xavier apresentava ideias ultraconservadoras com efeito doutrinário, porque está presente nos livros e nas suas pregações nas "casas espíritas" onde atuou, em Pedro Leopoldo, Uberaba e em outros lugares como convidado.

Isso derruba qualquer chance de colocar o "espiritismo" brasileiro num contexto de anti-polarização. Ideologicamente, o "espiritismo" brasileiro se encontra num campo intermediário entre o bolsonarismo e o Renova BR, em nada lembrando sequer o rascunho de algum movimento progressista.

Além disso, é no "espiritismo" que justamente se inserem as piores contradições expressas na retórica da anti-polarização, por ela ocorrer de maneira dupla. O "espiritismo" brasileiro é deturpado e professa crenças contrárias ao cientificismo de Allan Kardec. Além disso, o "espiritismo" brasileiro também professa ideias ligadas ao moralismo ultraconservador - como os "reajustes espirituais", tese punitivista herdada do roustanguismo - , que se chocam com a fachada "progressista" que muitos atribuem à religião brasileira.

É por essas duas contradições que fazem com que o "espiritismo" brasileiro seja ainda mais ameaçado de conflitos internos sob o manto da "anti-polarização". Em certo sentido, até questionamentos se o discurso anti-polarização não traria a polarização para dentro de uma causa progressista ou neutra, em vez de assumir uma polaridade externa, um conflito mais explícito cuja vantagem está em distanciar as partes divergentes.

Isso porque a anti-polarização pode apresentar um risco de disputas e conflitos internos, e aí ocorre uma polarização ainda pior do que aquela que tenta se combater com uma suposta conciliação. O problema acaba residindo em botar os conflitos debaixo do tapete e jogar a briga para dentro do recinto "conciliador". Porque, em dado momento, alguma divergência aparece.

Daí não ser possível "esquerdizar" o "espiritismo de direita" o qual Chico Xavier é um pioneiro certeiro, explícito e escancarado, porém nunca devidamente reconhecido nessa condição. A ideia de despir Chico Xavier do mito adocicado trabalhado há 40 anos é necessário e não adianta apenas dizer que ele "nunca foi salvador da pátria" ou "ele não era semi-deus".

Devemos admitir Chico Xavier, sim, como um dos maiores baluartes do pensamento conservador brasileiro, um dos mais convictos e irredutíveis, em vez de usar o pensamento desejoso para criar nele um esquerdismo que nunca existiu. E o mais grave é que o direitismo de Chico Xavier esteve presente em sua obra doutrinária, o que torna impossível a agradável, porém fantasiosa, tentativa de criar uma imagem "progressista" do "médium".