O erro grave de José Herculano Pires combater a deturpação espírita pela metade

JOSÉ HERCULANO PIRES AO LADO DE WALDO VIEIRA E CHICO XAVIER, POR VOLTA DE 1965.
José Herculano Pires, sem dúvida alguma, é considerado o melhor tradutor da literatura espírita original, de Allan Kardec. Descontando pequenos equívocos, como traduzir foi raisonée por "fé raciocinada" em vez de "fé fundamentada", Herculano (também conhecido pela alcunha J. Herculano Pires) procurou se aproximar da melhor forma possível ao texto original francês e a literatura kardeciana, em suas mãos, manteve a honestidade doutrinária das fontes francesas.
Herculano Pires, sobrinho do famoso prosador caipira Cornélio Pires, também foi um combatente expressivo dos desvios doutrinários que há muito atingiram e ainda atingem a Doutrina Espírita, tendo denunciado o famoso escândalo, armado pela "Federação Espírita do Estado de São Paulo" (FEESP), de criar traduções da literatura kardeciana com textos mais próximos do Roustanguismo. O plano, anunciado em 1973, foi descartado depois que Herculano fez denúncia em emissoras de rádio.
No entanto Herculano cometeu um grave erro, que trouxe consequências ainda piores para o Espiritismo. Ele se limitou apenas à teoria espírita, e não foi adiante na luta contra a deturpação. Em dado momento, ele falhou e, sob a desculpa da confraternização, acolheu os maiores deturpadores dos ensinamentos espíritas, os "médiuns", sobretudo Francisco Cândido Xavier.
Na verdade, Herculano cometeu dois erros. Um é limitar a recuperação das bases doutrinárias à teoria, mas não à prática. Daí que foi fácil, para oportunistas como Divaldo Pereira Franco, partirem para o jogo duplo de, nas entrevistas, expor, com aparente correção, a teoria original do Espiritismo, enquanto produzia livros de profundo igrejismo místico e medieval.
Outro erro é acreditar que os "médiuns" iriam ficar no lado dos "científicos" contra os abusos dos "místicos" e que bastava apenas isolar do poder os herdeiros diretos do ex-presidente da FEB Antônio Wantuil de Freitas - como Luciano dos Anjos, que denunciou que Divaldo Franco havia plagiado o já plagiador Chico Xavier - para que o Espiritismo, no Brasil, fluísse como avião em céu de brigadeiro.
Acreditava-se que os "médiuns" iriam colaborar na recuperação das bases doutrinárias. Chico Xavier e Divaldo Franco prometeram se empenhar nesta tarefa, e durante muito tempo se acreditou que ambos, mesmo com um forte acento igrejista em suas obras, eram "kardecianos autênticos".
Aliás, o termo "kardecista" tornou-se pejorativo porque, nessa época, houve a denúncia de Carlos Imbassahy, que não acreditava nos "kardecistas autênticos", e os denunciou como um subproduto dessa "conciliação de cima" na qual a cúpula wantuiliana da FEB pode ter sido isolada e, aos poucos, marginalizada, mas o poder igrejista dos "médiuns" continuava valendo como um poder remanescente do legado de Wantuil. Escreveu Carlos Imbassahy:
"Existe um grupo de espíritas que se autodenomina de “autênticos kardecistas” e que se esmera num ferrenho combate à Federação Espírita Brasileira e ao roustainguismo, centrados no detalhe absolutamente desprezível do corpo fluídico de Jesus.
No dizer de Krishnamurti de Carvalho Dias, esse é o “boi de piranha” que possibilita a entrada de conceitos contrários à grande contribuição kardecista, que é a imortalidade, a lei da evolução, progressiva e contínua.
Entretanto, esse grupo “autêntico”, curiosamente, aceita o aspecto religioso do Espiritismo e de certa forma a CRISTOLATRIA roustainguista ao apoiar-se nas teses de Emmanuel sobre a evolução em linha reta e o papel de “governador” do planeta atribuído ao Cristo, quando nada disso pode ser autenticamente encontrado no pensamento genuíno de Kardec.
Enfim, os combates margeiam o político e o imaginário, pois esses tais de “espíritas autênticos” continuam acreditando que Kardec foi apenas o codificador e não o fundador do Espiritismo. E ainda continuam atrás do mito cristão do salvador e do mito judaico do messias.
Não aprenderam a lição histórica da evolução geral e do sentido progressista de Kardec. Apegam-se ao aspecto místico da revelação sobrenatural, na chefia mítica de Jesus Cristo, como “o Espírito da Verdade” e daí por diante".
Sem dizer nomes, Carlos Imbassahy se dirige ao suposto espiritismo "puro" adotado pelo "movimento espírita" através da exaltação da figura de Chico Xavier, ele convertido não mais no exótico e controverso "paranormal", mas num pretenso mensageiro que, depois, ganharia de presente, da Rede Globo durante a ditadura militar - quando Roberto Marinho precisava promover um ídolo "ecumênico" para barrar a ascensão de pastores "evangélicos" televisivos - , uma idolatria promovida aos moldes do que o inglês Malcolm Muggeridge fez com Madre Teresa de Calcutá.
"FASE DÚBIA" DO "ESPIRITISMO" BRASILEIRO
Herculano Pires deixou chocar o "ovo da serpente" acreditando que nesse ovo nasceria um passarinho. Ele sempre blindou os supostos médiuns, em especial o amigo Chico Xavier, o qual Herculano, com toda a consideração dada a ele, deveria ter tomado mais cautela, como muitos jovens trabalhadores tomam cuidado com antigos amigos de infância que sucumbiram ao crime do tráfico de drogas.
Herculano não considerou o famoso ditado popular que diz "amigos, amigos, negócios à parte", e apoiou incondicionalmente Chico Xavier até mesmo durante o caso Amauri Xavier, sobrinho do "médium" que ameaçou denunciar não somente as fraudes do tio, mas de outros dirigentes "espíritas", mineiros e nacionais, que estavam associados ao beato de Pedro Leopoldo. Jornalista, Herculano preferiu blindar um amigo de atividades irregulares do que em buscar a verdade dos fatos.
E Herculano Pires cometeu um gravíssimo equívoco de promover a conciliação dos "médiuns" com os "científicos". É a confraternização da raposa com as galinhas. A promessa dada nos anos 1970 pelos festejados "médiuns" Chico Xavier e Divaldo Franco de recuperar as bases kardecianas foi em vão. Em que pese as apreciações tendenciosamente corretas dos postulados espíritas originais, os dois "médiuns" intensificaram ainda mais a deturpação espírita em suas obras.
Herculano Pires até tentou minimizar a contribuição de Chico Xavier na deturpação do Espiritismo, dizendo que ele "fez algumas obras" que contrariassem os ensinamentos espíritas originais. Na sua boa-fé, Herculano atribuiu isso à influência de obsessores, como se Chico não fizesse seus erros por vontade e pela exata consciência de suas más escolhas, que o "médium" considerava boas.
Vejamos no que Herculano escreveu, no livro “O Verbo e a Carne”, capítulo 2, Análises do Roustainguismo. O livro é de José Herculano Pires em parceria com Júlio Abreu Filho e foi publicado pelas Edições Cairbar, de São Paulo, em 1973:
"Chico Xavier tem sido vítima de mentirosos envolvimentos e sua obra chegou a sofrer deturpações, mas a verdade é que ele nunca apoiou Roustaing".
Esse é um enorme equívoco de Herculano Pires, porque Chico Xavier apoiou Jean-Baptiste Roustaing, sim, e adaptou seu pensamento em livros que hoje são considerados os "melhores" da bibliografia do "médium". Chico Xavier apenas tinha vergonha em assumir a influência roustanguiana, mas ela se encontrava tão explícita na obra do "médium" que o nome de Roustaing pôde ser descartado. Chico Xavier foi a mais fiel tradução de Roustaing para o contexto brasileiro.
Há ecos de Os Quatro Evangelhos de Roustaing em obras prestigiadas do "médium", como Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho e Nosso Lar. Além disso, teses como o moralismo punitivista dos "reajustes espirituais" é uma explícita herança da visão justiceira Roustaing.
Herculano Pires tentou, na boa-fé, trazer Chico Xavier para o lado dos "científicos" e chegou a lançar cinco livros em parceria com o "médium": Astronautas do Além, Chico Xavier Pede Licença, Diálogo dos Vivos, Na Era do Espírito e Na Hora do Testemunho. Apesar disso, Chico Xavier em nenhum momento largou o igrejismo medieval, que nos últimos anos se intensificou ainda mais, cometendo desvios doutrinários ainda piores, mas dentro de um aparato de "boa religiosidade".
De 1975 para cá, veio a chamada "fase dúbia", na qual o nome de Kardec era intensamente bajulado mas nunca respeitado na integridade de suas ideias. A ilusão do perdão, entendido como permissividade, aos "médiuns" deturpadores, foi defendida por Herculano Pires, que, em dado momento, baixou a guarda e se rendeu à tese de que "o Espiritismo é uma religião", levianamente interpretada no Brasil pelos deturpadores.
Esquece-se que, quando Kardec falou nessa ideia de que sua doutrina era uma "religião", ela se referiu à ideia clássica do contato do ser humano com as forças superiores ainda misteriosas, porém fontes de uma primária sensação de proteção e segurança da espécie humana, ainda no engatinhar de suas atribuições racionais.
Herculano Pires, na sua tentativa de combater a deturpação, acabou deixando-a se intensificar mais ainda. Ao morrer, em 1979, posteriormente foi vítima de uma das fraudes de materialização apoiada pelo "mui amigo" Chico Xavier. Depois de Herculano, a deturpação do Espiritismo se multiplicou nas mãos de Chico e Divaldo e criou precedentes para um mercado perverso de mensagens fake atribuídas aos mortos e a um sem-número de romances "espíritas" de gosto duvidoso, vendidos sob a promessa, vã, de trazer "lindas lições de vida".