O bairrismo valorativo da moral de Chico Xavier


PEDRO LEOPOLDO, TERRA DE CHICO XAVIER, É UMA CIDADE COM FEIÇÕES PROVINCIANAS MUITO FORTES.

O moralismo de Francisco Cândido Xavier é retrógrado. E isso se revela não apenas pelo gritante conservadorismo de suas ideias, mas de como ele expressava o ideal de vida, que nada tinha de moderno.

Em várias de suas fontes, o "ideal de vida" defendido por Chico Xavier se resumia apenas à servidão. O prazer era tido como "amaldiçoado", assim como o senso crítico. A vida era encarada como uma sucessão de infortúnios. O trabalho, um processo de relações servis do empregado ao empregador, além do desempenho de atividades difíceis e sem vocação. A família, uma instituição rigidamente hierarquizada, em que a função dos filhos é tão somente a obediência e a submissão.

Muitos livros e muitos depoimentos de Chico Xavier falam apenas que a encarnação tem como fim a prática da servidão, da submissão a Deus e à hierarquia e da aceitação resignada do infortúnio, como meios de "encurtar o caminho a Deus". E a perspectiva da vida humana nada tinha de moderna, como se Chico Xavier pensasse o mundo como se fosse a extensão de sua terra natal, a cidade mineira de Pedro Leopoldo.

Conforme fotos da Enciclopédia dos Municípios Brasileiros do IBGE, que no caso de Pedro Leopoldo, foram registradas em 1955, a cidade, que no passado era distrito de Santa Luzia, na Grande Belo Horizonte, nem parece ser da região metropolitana da capital mineira (a Grande BH), pelas feições provincianas, atrasadas e precariamente urbanas de sua área.

Na época dessa coleção do IBGE - que no verbete de Pedro Leopoldo não faz uma única menção do "médium" como "ilustre personalidade" (o que prova que a glorificação de Chico Xavier foi um processo trabalhado tardiamente, nos anos 1970, pela ditadura militar) - , a terra natal do "médium" vivia um processo incipiente de urbanização, dentro dos padrões de cidade interiorana.

Imagine, então, a cidade em 1910. Era simplesmente rural e interiorana, e, nessa condição, seguia a lógica dominante em Minas Gerais, onde os valores culturais ainda estavam presos ao século XIX e seu moralismo era essencialmente medieval. Difícil encontrar um terreno fértil de movimentos progressistas nessa área. E, se houvesse algum, não seria, evidentemente, de parte de Chico Xavier.

Já em Parnaso de Além-Túmulo, Chico Xavier já incluiu mensagens que falam na "missão de servir", dentro de um moralismo católico conservador. Isso significa que "servir", neste caso, quer dizer "servidão" e não necessariamente "serviço". Significa desempenhar um trabalho difícil, encarar um patrão hostil, ter problemas com colegas de trabalho, receber baixa remuneração, trabalhar em horário exaustivo, etc.

Para piorar mais as coisas, Chico Xavier, em vários momentos - mesmo usando "autorias espirituais" para se livrar de responsabilidades - , dizia que "bênçãos futuras" seriam "novas oportunidades para sofrer e servir", como se a vida carnal fosse uma gincana militar na qual a pessoa que mais enfrentasse infortúnios estaria encurtando o "caminho para o Céu".

Com tantos valores desse tipo, explícitos na obra de Chico Xavier em vários livros e depoimentos pessoais, é assustadoramente estranho que seus seguidores, mesmo os "isentos", se revoltem quando se fala que o "médium" defendia ideias que se encaixam no projeto de reforma trabalhista defendido por Eduardo Cunha, Michel Temer, Rodrigo Maia e Jair Bolsonaro (com Paulo Guedes junto).

Está tudo nas ideias apresentadas. De que adianta se revoltar se as ideias são apresentadas de maneira explícita? Também é impossível culpar o espírito de Emmanuel, suposto autor de ideias reacionárias em livros de Chico Xavier, por tamanha postura, pois Emmanuel é adotado como "autor fundamental" pelas "casas espíritas" em geral e há um consenso entre seus seguidores que o "médium" concordava com praticamente tudo que pensava o espírito considerado seu "mentor".

VISÃO RURAL

Embora Chico Xavier mencionasse, até por tendencioso pedantismo, assuntos científicos, temas modernos e até crenças supostamente futuristas - como a Ufologia, por exemplo - , sua perspectiva da vida humana sempre seguia uma ótica rural. Para Chico Xavier, não era a Pedro Leopoldo de seu tempo, rural e provinciana, que deveria se dobrar ao mundo, era o mundo que deveria se dobrar à Pedro Leopoldo de outrora.

As tragédias correspondentes às "cartas mediúnicas" difundidas por Chico Xavier seguem essa lógica, evocando casos de gente de áreas suburbanas, rurais ou de urbanização incipiente. O moralismo de Chico Xavier também seguia um bairrismo valorativo, principalmente quando discriminava o prazer e o senso crítico, ferramentas mentais da vida moderna da humanidade.

Ao descrever que o destino do homem encarnado é tão somente "servir", e ao corroborar o recado atribuído a Emmanuel de que o ser humano tem que ter "disciplina, disciplina e disciplina" - depois ninguém gosta quando se associa Chico Xavier a Jair Bolsonaro - , o "médium" enxergou a perspectiva de trabalho de maneira solipsista.

A perspectiva envolve um sentimento bairrista de ver tudo como se o mundo já fosse ou devesse ser como Pedro Leopoldo: trabalhos como professores, cozinheiros, funcionários públicos, ajudantes de fazendeiros, enfermeiros, médicos e pouco além disso. São trabalhos válidos, mas a ideologia de Chico Xavier, ao enfatizar a ideia de "servir", indica que a perspectiva da vida humana não ia além de uma abordagem rural ou precariamente urbanizada.

É por isso que outros trabalhos eram tratados como se fossem "distanciados". A criatividade artística, um dom muitíssimo distante. Na perspectiva do "servir", tanto faz um pianista de Bossa Nova ser impedido, por circunstâncias adversas, de atuar no movimento e passar a ser músico de apoio de algum ídolo brega dos anos 1990, tipo os cantores de "sertanejo" e "pagode romântico".

Problemas nesse sentido são ignorados. Como também problemas filosóficos mais complexos, tendências culturais e tecnológicas, e mesmo a rebeldia do rock é tratada com muito preconceito pelos "iluminados espíritas". Mesmo quando há casos como o radialista "espírita" Nelson Moraes forjar "psicografias" de Raul Seixas, o suposto espírito do roqueiro (no qual se usou o codinome Zílio) aparece "domesticado" e totalmente desprovido de sua essência original.

A vida moderna é desprezível para o "espiritismo" brasileiro. A defesa de relações sociais hierarquizadas é dissimulada pelo discurso dominante que dá, ao "espiritismo" brasileiro, uma fachada pretensamente progressista, mas nota-se que os valores sociais modernos, no moralismo "espírita", são apenas superficialmente defendidos, mas, no interior das "casas espíritas" e nas ideias dos seus pregadores, são reprovados até com certa severidade.

O PRESENTE IMITANDO O PASSADO, O FUTURO PROMETENDO O PRESENTE QUE DEIXOU DE SER OU NÃO CONSEGUIU SÊ-LO

O moralismo do "espiritismo" brasileiro, a partir das ideias de Chico Xavier, é tão retrógrado que ele é expressão de um modelo atrasado de vida. Dessa maneira, a ideia de que o presente esteja dependente do passado, através do pagamento de supostas dívidas morais, enquanto o futuro, que deveria ser, em tese, o que o presente deixou de ser ou não conseguiu sê-lo.

A ideia da "vida futura" é, portanto, confusa. Toma o incerto como se fosse certo. Não sabemos como será o futuro, mas como o "espiritismo" brasileiro, de maneira taxativa, atribui a "possibilidade de uma vida melhor" para os tempos posteriores, muitos acreditam ingenuamente que é preciso sofrer demais hoje para em seguida conquistar a bonança.

Afinal, não há dados científicos que comprovem a existência do mundo espiritual nas concepções semelhantes ao que se tem no mundo corpóreo. A "colônia" de Nosso Lar, aliás, foi movida por paixões materialistas, além de ter sido um artifício para criar uma recompensa post-mortem para aquele que aceitar transformar sua encarnação numa overdose de infortúnios.

Evidentemente, é possível ter esperança no futuro, mas o "espiritismo" brasileiro exagera nas expeculações e cria expectativas cegas que, depois, não raro levam reencarnados à decepção. Por outro lado, a aceitação de sofrer infortúnios em série na encarnação presente pode criar sentimentos mais corrosivos do que evoluídos, mesmo que a pessoa contraia uma aparente conformação e serenidade. Afinal, é da natureza humana a pessoa querer sempre uma compensação drástica para as adversidades excessivas na vida.