Explicando o egoísmo "espiritualista" ante as mortes prematuras

Muitas pessoas se enganam, diante de um aparente espiritualismo, quando veem seus entes queridos e se julgam generosas ao achar que, no caso de mortes prematuras, esses jovens mortos "partiram felizes" e que "na outra encarnação irão realizar tudo aquilo que a vida recente interrompeu".
As famílias que sofrem a influência do "espiritismo" de Francisco Cândido Xavier chegam mesmo a sorrir, depois dos naturais prantos da perda trágica, supondo que os entes queridos prematuramente falecidos "estão bem" e "protegidos pela guarda de Deus".
Ah, quanto egoísmo! Imaginamos Jesus de Nazaré voltando à Terra e, vendo o que Chico Xavier fez com as ideias cristãs, se revoltar e indignar. "Hipócrita" seria um dos adjetivos que Jesus daria a Chico Xavier, sem um pingo de hesitação, mas com amplo conhecimento de causa.
Vamos parar um pouco para pensar. Um ser humano tem um tempo de vida estimado em 80 anos, conforme as leis naturais. É, portanto, evidente que um indivíduo fará seus planos de vida visando esse prazo. Mas ocorre que alguns morrem cedo sem que esse plano sequer seja iniciado, o que traz uma grande frustração no além-túmulo.
Que egoísmo não pode haver quando as pessoas dizem que um jovem morto prematuramente "morreu porque chegou a hora" ou "está feliz nos braços de Deus". Vamos comparar isso ao fato de alguém ser expulso de casa. Vamos sorrir porque alguém "ganhou a rua"?
A pessoa que, cheia de projetos de vida, morre sem realizá-los, está frustrada. Devemos saber que a vida espiritual ainda é um grande enigma, o mundo espiritual apenas tem existência defendida no âmbito filosófico, pois, cientificamente, até hoje não temos uma única amostra do que ele realmente é. Além disso, é praticamente impossível que a encarnação posterior seja igual à encarnação presente. A música "Como Uma Onda", de Lulu Santos, nos dá elementos que explicam isso.
Vamos citar o caso de uma jovem professora, para os "espíritas" entenderem melhor o problema. A professorinha tem um plano de educação de pessoas carentes, cujos métodos e teorias correspondem aos padrões dos tempos atuais e ocorrem mediante as condições correspondentes.
Num dia, a jovem professora morre precocemente, digamos com 22 anos de idade, sem poder executar sequer o primeiro dos seus planos de vida. Ela, digamos, reencarna cinco anos depois e o primeiro problema está no tempo em que levará para ter novamente 22 anos de idade.
Só os dois primeiros anos de vida foram perdidos, o que somam para sete o tempo entre o falecimento e as primeiras manifestações de lucidez humana, pois, normalmente, é com dois anos de idade que a criança começa a ter uma mínima compreensão do mundo em sua volta.
Só para conquistar os direitos civis e educacionais que permitirão o trabalho como professora, a jovem reencarnada leva muito tempo. Não dá para considerar que, só por ela apresentar uma inteligência peculiar na infância, ela será uma professora nessa etapa etária.
Abrimos parênteses para dizer que, quando crianças apresentam uma inteligência fora do comum para sua idade, elas não adotam uma missão especial nem expressam um dom excepcional. É porque são espíritos reencarnados que não querem perder tempo, e manifestam sua inteligência desde cedo porque precisam adiantar sua trajetória pessoal, que em outras encarnações haviam sido bruscamente interrompidas.
No caso da jovem professora, que entre seu falecimento e a "volta" aos 22 anos levam, na verdade, 27 anos de hiato, não há garantias de que haverá as mesmas condições sociais, políticas e acadêmicas que permitirá a execução de seus planos. E os avanços tecnológicos? Muitos imaginam que só serão favoráveis, mas não é bem assim. Em certos casos, a tecnologia só atrapalha, como a "queda do sistema" que interrompe muitas atividades em bancos e estabelecimentos comerciais, que não havia quando se usava o modo rudimentar de outros tempos.
E se essa jovem professorinha morreu, digamos, aos 22 anos em 1963, ano no qual o projeto progressista do presidente João Goulart estava em ascensão? E se, neste caso, a garota tenha reencarnado em 1998, depois de um grande preparo no mundo espiritual, e, talvez, alguma tarefa de proteger, no além-túmulo, algum espírito mais sofrido e, depois disso, ter decidido voltar à missão interrompida?
A moça alcançou 22 anos no corrente ano de 2020. As condições são extremamente diversas de 57 anos atrás. Ela não pode realizar os antigos planos, os obstáculos são muitos. O educador Paulo Freire, que tinha um prestígio crescente na época, é hoje ridicularizado por uma parcela de brasileiros que quer revogar as homenagens dadas ao pedagogo.
Além disso, existe a pandemia da Covid-19, que impede o convívio presencial dos alunos. Com certeza, a euforia dos "espíritas" que, de maneira até mesmo idiota, acham que a pessoa pode morrer cedo que fará tudo de novo na próxima encarnação, é simplesmente posta em xeque-mate.
Tudo é imprevisível e quem reencarna não terá os mesmos indivíduos que lhe foram seus pais, amigos, parceiros amorosos, colegas de escola da encarnação anterior. Reza-se para que as condições sociais sejam equiparadas, e nem se fala disso com fidelidade, em relação à vida anterior. Mas as mudanças são sempre inevitáveis. Se na letra de Nelson Motta, na música de Lulu Santos, fala em "mudanças de um segundo", imagine de anos ou de décadas!
Daí que não é preciso pensar muito para ver o quanto uma considerável parcela de pessoas reencarnadas se torna conservadora. Elas reagem às mudanças do tempo e, com o inconsciente guardando a lembrança das encarnações perdidas, a preocupação é tentar recuperar a essência dessas vidas passadas, do que havia de bom e ficou perdido, daí que situações diferentes são encaradas geralmente com estranheza e repúdio.
Esses são impasses que mostram o quanto é egoísta a pessoa ficar feliz porque alguém que é cheio de planos de vida morre prematuramente. Enquanto se observa um prazer mal disfarçado ao julgar que o falecido "está feliz no outro lado", este encontrará dificuldades para exercer o plano interrompido, tendo que abrir mão de seus objetivos e sofrer frustrações com isso. Em muitos casos, a religião "espírita" mascara os piores egoísmos sob o verniz da falsa generosidade.