Os piores resmungões são os que não gostam de ver os outros reclamarem - I

NO FIM DA VIDA, CHICO XAVIER MAIS PARECIA UM SÓSIA DO PERSONAGEM EUSTÁCIO, DO SERIADO CORAGEM, O CÃO COVARDE, SEGUNDO LEMBRAM MUITOS. E O "MÉDIUM" ERA TÃO RANZINZA QUANTO.
A psicologia humana tem suas sutilezas. Ficamos achando que as pessoas que não gostam de ver os outros reclamando da vida são as mais compreensivas, pacientes e de bem com a vida. Isso é um grande engano, pior até do que se imagina. Quem não gosta de ver os outros reclamando é que é o pior resmungão, diz o anedotário popular que é alguém com medo da concorrência.
Na verdade, o pior resmungão é aquele que não quer saber de problemas. Prefere o anestesiamento social. Se o outro foi prejudicado em tudo, o pior resmungão, dissimulado num conselheiro tendencioso e hipócrita, tenta convencê-lo de que há vantagem nesse prejuízo, o que revela um caráter baixo de moralidade por parte do "bondoso" conselheiro.
O problema da religião é achar que problemas existem sem motivo, assim como certas atitudes negativas. O suicídio é visto pelo "espiritismo" brasileiro como um "passatempo", como se o suicida quisesse provar se um veneno, uma faca ou um revólver funcionam para tirar a vida de alguém.
Da mesma maneira, o "espiritismo" brasileiro considera que reclamar demais da vida é um "desaforo" e pessoas que agem dessa forma são amaldiçoadas por essa atitude de "achar que tudo está errado". Ah, mais argueiros imaginários no moralismo "espírita" tomado de traves em seus olhos!
Quem reclama demais na vida tem motivos de sobra para isso. As adversidades aparecem sem controle, a pessoa não consegue, mesmo com esforço, superar ou evitar infortúnios, e ela ainda tem que ficar feliz com isso e agradecer a Deus pela desgraça obtida? Pensar assim não faz o "espírita" mais nobre, antes o fizesse mais deplorável em tamanho juízo de valor.
Na próxima postagem, comentaremos mais o assunto, deixando aqui a reprodução do texto de Francisco Cândido Xavier e Antônio Wantuil de Freitas, atribuído (levianamente) ao "espírito Humberto de Campos", o capítulo A Queixosa, do livro Reportagens de Além-Túmulo, de 1943. Lembremos que o texto nem de longe lembra o estilo original de Humberto de Campos, até porque nem o tema nem o estilo de escrita guardam qualquer semelhança, por menor que seja, ao suposto autor espiritual.
O conto mostra uma resmungona estereotipada, Benvinda Fragoso, que teve supostas oportunidades "benditas" na vida, mas "não soube aproveitá-las". A figura da "queixosa" é claramente caricatural e serve para o moralismo punitivista do "espiritismo" brasileiro, em particular o de Chico Xavier, que diz "nunca condenar quem quer que seja" mas não mede escrúpulos para fazer justamente o contrário, como se acreditasse na figura punitiva de Deus e, pior, na criminalização da vítima.
O texto, que de forma bastante explícita se fundamenta nos princípios da Teologia do Sofrimento, deve ser lido com cuidado, evitando o envolvimento emotivo e a perigosa adesão a suas ideias medievais. No entanto, será fácil saber o caso de leitores que se identificarão com o texto, a respeito de suas posições morais.
Quem se identificar com o texto, certamente, se afirmará como uma pessoa conservadora e até reacionária, detentora de um moralismo cruel e severo, que se recusa a entender os sofrimentos dos outros e prefere que essas pessoas fiquem felizes com tamanho sofrimento. Não há como aceitar as ideias do texto e fingir-se progressista para agradar os outros, por mais que se use um gigantesco e persistente repertório de desculpas.
Leiam o texto, exerçam o senso crítico e, na próxima postagem, faremos mais comentários.
A QUEIXOSA
Por Francisco Cândido Xavier e Antônio Wantuil de Freitas (não creditado) - Reportagem de Além-Túmulo - FEB, 1942 - atribuído ao "espírito Humberto de Campos".
Benvinda Fragoso tornara-se amplamente conhecida pelas suas queixas constantes. Quem a ouvisse na relação dos fatos comuns afirmaria, sem hesitar, que a infeliz arrematara todos os desgostos do mundo.
Órfã de pai e mãe, vivia à custa de salário modesto, numa fábrica de toalhas, onde fora admitida por obséquio de amigos devotados. Todavia, se a existência era laboriosa, não faltavam recursos para torná-la melhor. Não se casara, mas dois sobrinhos inteligentes e generosos faziam-lhe companhia no ambiente doméstico. Os genitores não lhe deixaram haveres em espécie, mas sempre legaram à filha o patrimônio do lar, edificado ao preço de sublimes sacrifícios.
Benvinda rodeava-se de oportunidades benditas, mas não sabia aproveitá-las. Cristalizara-se nas queixas dolorosas, aniquilando as próprias energias. A mente enfermiça desfigurava as sugestões mais belas da vida diária.
– Sou profundamente infeliz – dizia a uma colega de trabalho –, vivo insulada, à maneira de animal sem dono, ao léu da sorte. Morrer seria para mim uma felicidade. Diz-se que o fim é sempre doloroso. Não será, porém, mais agradável alcançar o termo do caminho no seio de tantas sombras e surpresas angustiosas?
– Não digas isso, Benvinda – observava a companheira, com intimidade –, temos saúde, não nos falta trabalho, teus sobrinhos gostam de ti. Não nos sintamos desditosas, quando a oportunidade de serviço continua em nossas mãos.
Mal-humorada – explodia a queixosa, exasperada:
– Que dizes? a existência esmaga-me e desde a infância há sido para mim pesada carga de sofrimentos. Referes-te aos sobrinhos, e que significam eles em meu caminho senão agravo de preocupações? O mundo é cárcere tenebroso, inferno terrível, onde somos convocados a ranger dentes.
Calava-se a colega, ante o transbordamento de revolta insensata.
Na estação do frio, aferrava-se Benvinda em lamentações amargosas; no verão, acusava a Natureza, declarava-se incapaz de tolerar o calor ; e, se chovia, amaldiçoava as nuvens generosas.
Dispondo de muitas horas no ambiente doméstico, a infeliz nunca soube valorizar o santo aconchego das paredes acolhedoras, onde os pais carinhosos lhe haviam dado o beijo da vida.
Enquanto os sobrinhos, quase crianças, permaneciam no trabalho, Benvinda recorria às vizinhas e, mãos cruzadas em sinal de preguiça, continuava incorrigível:
– Ah! Dona Guilhermina, a vida vai-se tornando insuportável. Este mundo resume-se em miséria e desengano. Até quando serei humilhada e perseguida pela má sorte?
– Oh! minha filha! – respondia a interpelada, fixando gestos de mãe compadecida, por cultar a verdadeira expressão da personalidade habituada à maledicência – Deus é bom Pai. Não desanime. Tenhamos confiança na Providência. Tudo passa neste mundo. A fé pode transformar nossas dificuldades em motivos de vitória e alegria.
– Fé? – replicava Benvinda, exaltada – estou descrente das orações. Deus nunca me atende. Quando sonhava, há dez anos, a organização de um lar que fosse somente meu, rezei pedindo a proteção do Céu e meu noivo desapareceu para desposar outra jovem, mais tarde, longe de mim. Quando meu pai se decidiu à operação, supliquei à Providência lhe poupasse a vida, atendendo a que eu era órfã de mãe, desde os mais tenros anos, e sobreveio a infecção que o levou à sepultura. Quando minha única irmã adoeceu, recorri de novo à confiança no Poder Celestial e Priscila morreu, deixando-me os filhos por criar, através de obstáculos numerosos. Como vê a senhora, minha crença não poderia resistir a choques tamanhos. Estou sozinha, abandonada ; sou o cão anônimo, desprezado em desvãos do caminho.
Mas, como a assistência espiritual da Esfera Superior se vale de todos os meios para socorrer ignorantes e infelizes, a vizinha, não obstante a má-fé, constituía-se em instrumento de consolação ao bafejo de amigos desvelados do Plano Superior e replicava:
– Entretanto, quem sabe todas as desilusões não resultaram em beneficio? O noivo, que a enchia de esperança, talvez a envenenasse de desesperação, mais tarde; o genitor teria evitado a operação cirúrgica, mas possivelmente se tornaria dementado, percorrendo hospícios ou convertendo-se em palhaço da via pública; a irmã ter-se-ia curado da pneumonia, mas, viúva muito jovem, talvez lhe amargurasse o coração fraterno, cedendo a sugestões inferiores no caminho da vida.
Em vez de ponderar as observações amigas, Benvinda retrucava:
– Não me conformo: para mim a vida se resume no drama pungente que aniquila o espírito, ou na comédia que revolta o coração.
A palestra continuava, pontilhada de lamentos e acusações gratuitas ao mundo, até que os rapazelhos chamavam à porta. A tia, que perdera tempo em lamúria improdutiva, aproximava-se do fogão, apressada.
– Esta vida não me serve! – dizia em voz alta, amedrontando os jovens – até quando serei escrava dos outros, capacho do Destino? Maldita a hora em que nasci para ser tão desgraçada.
Os sobrinhos miravam-na entristecidos.
– Quando conseguirmos melhor remuneração, titia – exclamava um deles, bondosamente –, havemos de auxiliá-la, retirando-a da fábrica. Não é a senhora nossa verdadeira mãe pelo espírito?
Benvinda, no entanto, longe de comover-se com a observação carinhosa, multiplicava as impertinências.
– Não creio em ninguém – bradava de cenho carregado –, quando vocês puderem, deixar-me-ão na primeira esquina. Não pensam senão em diversões e más companhias. Crêem que resolverão meus problemas com promessas?
Observando-lhe a feição neurastênica, os rapazes esperavam a refeição, sisudamente calados. Terminada esta, regressavam naturalmente à rua. O ambiente doméstico pesava. A lamentação viciosa é força destrutiva.
Benvinda não reparava que as amizades mais íntimas a deixavam sozinha no circulo das queixas injustificadas. Ninguém estava disposto a ouvir-lhe as blasfêmias e críticas impiedosas. As colegas de serviço evitavam-lhe a palestra desanimadora. As vizinhas refugiavam-se em casa ao vê-la em disponibilidade no quintal invadido de ervas rústicas. Os sobrinhos toleravam-na, desenvolvendo imenso esforço. Nesse insulamento, a infeliz piorava sempre. Começou a queixar-se amargamente do serviço e a acusar a administração da fábrica. Enquanto sua atitude se limitava a circulo reduzido, nada aconteceu de extraordinário; todavia, quando resolveu dirigir-se ao gerente para reclamações descabidas, recebeu a ordem inflexível de demissão.
Enclausurada no desespero, não tinha percepção das oportunidades que se desdobram no caminho de todas as criaturas, nem compreendia que não era a única pessoa a lutar no mundo. Crendo-se mártir, agravou a ociosidade mental e foi relegada a plano de absoluto isolamento.
Nem amigos, nem trabalho, nem colegas, nem sobrinhos. Tudo fugiu, evitando-lhe a atmosfera de padecimento voluntário.
Depois de perder a casa, em venda desvantajosa, a fim de obter recurso à manutenção própria, passou ao terreno da mendicância sórdida.
Foi nessa situação escabrosa que a morte do corpo a compeliu a novos testemunhos. Desencantada e abatida, acordou na vida real em solidão mais dolorosa. Ninguém a esperava no pórtico de revelações do Além-túmulo. Estava só, sem mão amiga.
E os sofrimentos de que se julgara vítima na Terra? Não esperava convertê-los em títulos de ventura celestial? Descrera da Providência no mundo, entretanto, no íntimo, sempre acreditara que haveria glorioso lugar para os desventurados e famintos da experiência humana. Depois de longo tempo, em que se multiplicavam provas ásperas, rogou ao Espírito de sua mãe que a esclarecesse na paisagem nova. Tinha sede de explicações, ânsias de paz e fome de entendimento.
Depois da súplica formulada com lágrimas angustiosas, sentiu a aproximação da desvelada genitora.
– Benvinda – murmurou a terna mensageira, carinhosamente –, não te dirijas a Nosso Pai lamentando o aprendizado em que te encontras. Toda queixa viciosa, minha filha, converte-se em crítica injusta à Providência. Estás convicta de que sofreste na Terra; entretanto, a verdade é que envenenaste os poços da Divina Misericórdia. Fugiste às ocasiões de trabalho, desfiguraste o quadro sublime de realizações que te aguardavam a boa-vontade nas estradas da luta humana. Hoje aprendes que a lamentação é energia que dissolve o caráter e opera o insulamento da criatura. Não conseguiste afeições em ninguém, não soubeste conquistar a gratidão das criaturas, nem mesmo das coisas mais ínfimas do caminho. Sofre, minha filha! A dor de agora é tua criação exclusiva. Não imputes a Deus falhas que se verificaram por ti mesma.
– Oh! minha mãe! – suplicou a infeliz – não poderei, porém, voltar e aprender novamente no mundo?
– Mais tarde. Por agora, para que alcances alguma tranqüilidade, incorporar-te-ás à extensa falange espiritual que auxilia os rebeldes e inconformados da luta humana. Reduziste a existência a montão de queixas angustiosas, sem razão de ser. Trabalharás agora, em espírito, ao lado daqueles que se fecham na teimosia quase impenetrável, a fim de compreenderes o trabalho perdido...
E a queixosa trabalha até agora, para abrir consciências endurecidas à compreensão das bênçãos divinas.
É por isso que muitos homens, em momentos de repouso, são por vezes assaltados de idéias súbitas de trabalhos inesperados. Criaturas e coisas enchem-lhes a visão interna, requisitando atividade mais intensa. É que por aí, ao redor da mente em descanso, começam a operar os irmãos de Benvinda, a fim de que a preguiça não lhes aniquile a oportunidade, qual aconteceu a eles mesmos.