Por acidente, vaza escândalo que aponta fraudes de Chico Xavier

LIVROS DE CHICO XAVIER CONFIRMAM SER VERGONHOSAS FARSAS LITERÁRIAS.

A sorte que as elites têm em geral é que o meio acadêmico no Brasil discrimina o senso crítico, que é confundido com opinião pessoal. A ideia predominante nos colegiados de pós-graduação é que devem ser produzidas monografias dotadas de "cosmética científica", com um aparato de objetividade até na linguagem, embora o conteúdo possa ser recheado de bobagens e levar a conclusões bastante estéreis e meramente descritivas.

Mesmo acadêmicos considerados "progressistas" impõem essa norma burocrática, visando o mercado estável de verbas estatais ou doações financeiras de fora, seja de empresas privadas brasileiras, seja de instituições como a Fundação Ford. E isso faz com que nossas teses prefiram legitimar absurdos problemáticos do que, através do senso crítico, desconstruir, corajosamente, um problema, por pior do que seja.

O trecho que reproduziremos a seguir é do livro da historiadora Ana Lorym Soares, O livro como missão: A publicação de textos psicografados no Brasil dos anos 1940 a 1960, que sem exercer o senso crítico, apenas traz, de maneira meramente descritiva, ações de bastidores da produção de "psicografias" da "Federação Espírita Brasileira".

Com títulos de pós-graduação em História na UFRJ (doutorado) e PUC-Rio (mestrado) e como professora adjunta da mesma área na Universidade Federal de Goiás (UFG), Ana Lorym teve a tarefa de "analisar" as atividades que estavam por trás da "psicografia" de Francisco Cândido Xavier, tendo como ênfase a série A vida no mundo espiritual, atribuída ao suposto espírito André Luiz.

A autora, seguindo o receituário acrítico das monografias acadêmicas, apenas acolheu as informações, trazidas por fontes bibliográficas e por entrevistados como a ex-secretária da FEB, Rúbia da Costa Guimarães. Apesar da falta de questionamentos, a autora não deixou esconder que as obras de Chico Xavier sofriam a interferência de editores da federação, o que traz uma grande estranheza, muito mal disfarçada num argumento bastante discutível:

"Embora se propague no meio espírita que a coleção fosse um desdobramento de um projeto de "despertamento" cuja origem remetia ao "Além", seria necessária, para sua concretização na Terra, a intervenção humana, através da transformação de um ideal doutrinário em um conjunto de livros dispostos em coleção".

Isso põe em segundo plano as "mensagens espirituais", que, na prática, precisam ser "filtradas" pelos "editores terrenos", como se os "recados do além" não tivessem valor ou, se têm, é sempre inferior à dos membros da FEB, sejam dirigentes como Antônio Wantuil de Freitas, Manuel Quintão e Luís da Costa Porto Carreiro Neto (claramente consultor do livro-pastiche Volta, Bocage, creditado ao poeta português Manuel Du Bocage), seja o "iluminado" Chico Xavier.

Essa atitude vai contra os postulados espíritas originais. Afinal, isso difere muito de dois procedimentos de Allan Kardec, que selecionava as mensagens transmitidas por médiuns (o professor lionês não exercia tal dom), mas mantinha inalterados os textos atribuídos ao além-túmulo. Quanto à alteração de livros, Kardec só alterou O Livro dos Espíritos, que teve edição ampliada em 1860, porque surgiram novas questões após a primeira edição.

Kardec iria reprovar, com sua notável austeridade, as práticas de Chico Xavier e dos dirigentes da FEB. O pedagogo francês entenderia que isso seria desqualificar as mensagens dos espíritos, demonstrando a desonestidade intelectual do "médium", no caso Chico Xavier.

E não estamos falando, nessa avaliação, da hipótese de dúvida das autenticidades das "psicografias", até porque não se discute, aqui, as disparidades de estilo que, vergonhosamente, fazem "desaparecer" os estilos marcantes de nomes como Humberto de Campos, Auta de Souza e Olavo Bilac, pois não é o foco maior desta monografia discutir os conteúdos dos livros.

No entanto, Ana Lorym Soares, mesmo evitando o senso crítico, deixa vazar duas ideias problemáticas, trazidas pela sua narrativa: a sua classificação das "psicografias" pelos termos "presumidamente", "supostamente" e "supostas", constantes em seu trabalho, e a ênfase de que as revisões dos "editores terrenos" foram sempre muito comuns na obra xavieriana.

Esses dois problemas poderiam indicar uma denúncia formal, se Ana Lorym tivesse exercido o senso crítico, pois, conforme observamos, a historiadora, evitando "atirar", "acertou" no que não viu. O que está latente, neste trabalho, é um dos mais graves escândalos do "movimento espírita" e da trajetória de Chico Xavier (que hoje "sobrevive" através de uma imagem adocicada, como "fada-madrinha do mundo real", difundida pela mídia corporativa e pelas redes sociais).

Isso pode também ter relações com a morte de Amauri Xavier, que, com base no que reportou Manchete na sua edição de 09 de agosto de 1958, sofreu ameaças de morte do "meio espírita", por envenenamento, o que também fortalece as suspeitas de como o sobrinho de Chico Xavier morreu, também se suspeitando que ele havia sofrido agressões num sanatório e teria sido envenenado por um falso amigo que lhe fez companhia num bar, tendo-lhe convidado para "beber umas" juntos.

Verificamos portanto o texto (reproduzido a partir do site Intruso Espírita), que, na prática, é conhecido como um grande "fogo amigo" a complementar atitude semelhante feita por Suely Caldas Schubert, no livro Testemunhos de Chico Xavier, de 1981, lançado dois anos depois das fotos de Nedyr Mendes da Rocha, que, durante o caso de Otília Diogo, confirmou que Chico Xavier era cúmplice da farsante que se fantasiou de supostos espíritos materializados, como a "Irmã Josefa".

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Trecho do Capítulo II - "O que faz A vida no mundo espiritual uma coleção?"

Ana Lorym Soares - Extraído de O livro como missão: A publicação de textos psicografados no Brasil dos anos 1940 a 1960 - Rio de Janeiro, Gramma, 2018.

Embora se propague no meio espírita que a coleção fosse um desdobramento de um projeto de "despertamento" cuja origem remetia ao "Além", seria necessária, para sua concretização na Terra, a intervenção humana, através da transformação de um ideal doutrinário em um conjunto de livros dispostos em coleção.

Conforme foi possível acompanhar por meio da correspondência ativa de Chico Xavier, havia um grupo mais ou menos fixo e centralizado, a partir da administração geral da FEB, que se encarregava de materializar as projeções intelectuais que diziam emanar do "mundo espiritual", traduzindo-as em material impresso. Havia um circuito de produção, edição e reedição de textos, que agrupou aproximadamente cinco pessoas ao longo das três décadas, quando as mensagens contidas em A vida no mundo espiritual foram dadas a ler em livros, nas suas primeiras edições.

O processo de elaboração da coleção, da maneira como os seus produtores apresentam, pode ser entendido como uma cadeia de atividades formada por agentes responsáveis por desempenhar diferentes papéis voltados para o objetivo comum: a produção e a difusão do livro psicografado. Esse projeto era composto supostamente por três ou quatro estágios, cada qual contando com sujeitos e funções mais ou menos definidas. Assim, no primeiro estágio seria construído o conteúdo intelectual das obras por um grupo de "espíritos superiores", representados pelas figuras do "autor", André Luiz, e de Emmanuel, que fazia amediação entre o presumido criador das ideias e os médiuns psicógrafos (função que, segundo Xavier, fazia de Emmanuel "simples pregador de cartazes do Reino").

No segundo estágio, o médium entrava em ação, responsável por transcrever no papel as mensagens presumidamente ditadas por espíritos para, em seguida, encaminhá-las à editora. Essa função teria sido exercida por Chico Xavier, secundado, a partir de 1958, pelo jovem médico Waldo Vieira. Depois de realizado o registro a lápis das mensagens tidas como psicografadas, seria papel do médium reescrevê-las à máquina, tarefa para a qual contaria, algumas vezes, com ajuda externa.

É importante notar que, mesmo mostrando-se como um "receptor de mensagens", que se presuma advir de "espíritos superiores", Xavier não deixava de admitir a seleção dos seus textos para fins de publicação. É o que se percebe na carta que enviara a Wantuil de Freitas, em dezembro de 1943: "Façamos de conta que sou um pescador, no dizer de um Espírito amigo. Hei de enviar-te sempre o resultado da pescaria, e examinarás o material, antes de ir ao mercado, não é? Essa atitude explicita que, mesmo se tratando supostamente da missão transcendente à vontade dos homens, a atuação deles era decisiva, inclusive na definição do que iria ou não chegar às mãos dos leitores.

O terceiro estágio da cadeia de produção dos livros da coleção era desenvolvido pelos chefes maiores do quarte-lgeneral do espiritismo brasileiro: o presidente da FEB e alguns dos membros de sua diretoria. Cabia a eles toda a responsabilidade material pela confecção dos livros, inclusive a parte administrativa e comercial do negócio. Era da alçada desse grupo o tratamento editorial dos textos a fim de torná-los livros aptos à manipulação e à leitura pelos consumidores. Wantuil de Freitas, que era o principal responsável pela obra do livro na FEB, contava, algumas vezes, com o auxílio doméstico da esposa e do filho que, segundo informa a sua ex-secretária, Rúbia da Costa Guimarães, chegavam a varar noites no trabalho de revisão dos textos. Junto com o presidente, Wantuil, atuavam também o ex-presidente da FEB, Manuel Quintão, que editara o livro inaugural de Xavier, em 1932; o jornalista Ismael Gomes Braga, que a partir da segunda metade dos anos 1940 assumiu a chefia dos "escritórios da Livraria" e dividia com Wantuil a incumbência de editar a revista Reformador; e o professor Porto Carreiro Neto, que era médium e divulgador do esperanto. Segundo relata Chico Xavier, outros companheiros de fé poderiam, por algumas circunstâncias específicas, participar desse processo.

Muitas vezes, a cadeia de produção da coleção era alterada, fazendo com que se introduzisse novamente o trabalho do médium ou mesmo voltasse a ter a interferência dos espíritos. Um quarto estágio poderia ser incluído no circuito, possibilitando que as posições dos agentes fossem relativizadas, o que permitia que o médium participasse tanto da revisão dos textos (sugerindo ou fazendo alterações ele mesmo) ou mediando a "anuência espiritual" às correções realizadas pelos "editores terrenos". Podemos acompanhar um caso semelhante por meio do registro que Xavier fez ao amigo em abril de 1945, ocasião em que se expôs o quão comum era essa prática.

"Muito obrigado pela remessa de 'O Psicógrafo' e 'Materialização' com as instruções. Ótima lembrança! Ao recebê-la, recordei o nosso Dr. Guillon (antigo editor e presidente da FEB, agora já falecido), em 1942, quando se organizou 'Reportagens de Além-Túmulo'. Ele e eu, embora distantes um do outro, combinamos o esforo para o mesmo fim".

Xavier se referia a dois capítulos do terceiro livro da coleção, Missionários da Luz. O livro em questão fôra publicado em 1945, logo após Os Mensageiros, e ao que se pode perceber, houve necessidade de revisão nos dois capítulos mencionados. Assim, antes de a obra ser encaminhada definitivamente para a publicação, em segunda edição, o médium teria que chancelar as mudanças efetuadas. Na mesma carta, Chico Xavier relembrou o processo similar que ocorrera entre ele e o antigo presidente da FEB, o já falecido Guillon Ribeiro, no momento em que se organizava a segunda edição de Reportagens de Além-Túmulo, primeiro livro (sic) atribuído ao escritor escritor, Humberto de Campos (*). Na missiva subsequente, datada de julho de 1946, o médium parabenizou Wantuil por ter feito alteração no texto do quarto livro da coleção, de modo que ficasse em sintonia com informações iconográficas trazidas na capa.

Esse regime de colaboração na edição dos livros psicografados era comum e se observava nas demais obras que supostamente emergiam dessa complexa gênese. Chico Xavier nos permite saber do caso da revisão de Parnaso de Além-Túmulo, do qual se ocuparam eles e os "editores da FEB", em presumida colaboração com Emmanuel, guia espiritual de Xavier e "editor" do "Além". Tal revisão levou alguns anos para se efetivar por causa da indecisão entre eliminar ou apenas corrigir termos de poemas tidos por eles como problemáticos. Quando se conjecturou o lançamento de uma sexta edição de Parnaso, Xavier escreveu a Wantuil de Freitas, em resposta sobre a questão desta revisão, e acrescentou:

"Grato pelos teus apontamentos alusivos ao 'Parnaso' para a próxima edição. Faltam-me competência e possibilidade para cooperar numa revisão mais meticulosa, motivo pelo qual o teu propósito de fazer esse trabalho com a colaboração do nosso estimado Dr. Porto Carreiro Neto é uma iniciativa feliz. Na ocasião em que o serviço estiver pronto, se puderes me proporcionar a 'vista ligeira' de um volume corrigido, ficarei muito contente, pois isso dará oportunidade de ouvir os Amigos Espirituais, em algum ponto de maior ou menor dúvida. Há uma poesia, sobre a qual sempre pedi socorro, mas continua imperfeita desde a primeira edição. É aquela 'Aves e Anjos' (**), da pág. 325, na 5ª edição. Ela termina assim: 'Sorrindo... Cantando...' e não 'Sorrindo... Sorrindo...', como vem sendo impresso. Conto com a tua colaboração, em favor do reajustamento definitivo".

Também Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, segundo livro (sic) atribuído a Humberto de Campos, precisou desses ajustes para sair em segunda edição. Já em se tratando dos livros pertencentes à coleção A vida no mundo espiritual, o caso mais expressivo relativo a mudanças operadas nos textos ocorreu no sexto livor da série, Libertação, no qual a utilização da expressão "perder o perispírito", na primeira edição, causou estranhamento entre os leitores que viam nela uma espécie de contrassenso em relação à doutrina espírita kardecista.

"Tomei atenção no caso a que te reportas e, conforme a carta anterior, penso que a aplicação dos verbos 'sublimar' e 'rarefazer' atenderá às nossas necessidades, no momento. Creio que se persistíssemos em empregar a expressão 'perder o perispírito' usando notas explicativas por parte da Editora não ficaria muito bem. As notas poderiam traduzir fraqueza ou insegurança. Assim, opinaria pelos verbos ultimamente sugeridos, para não ferirmos bruscamente os pontos de vista estabelecidos, embora tenhamos muita coisa a reconsiderar na conceituação doutrinária, na jornada evolutiva que vamos realizando. Nossos Amigos do Alto, contudo, são de parecer que tudo se faça com tempo, paciência e medida. Façamos a nossa parte, não achas? Outros prosseguirão e sentir-nos-emos feliz (sic) se eles encontrarem menos aflições e menos sarcasmos".

Como foi possível observar, a cadeia de produção das obras da coleção Nosso Lar (mas também de outras obras psicografadas) estava geralmente compreendida em três ou quatro etapas que englobavam a suposta matriz espiritual geradora das mensagens veiculadas ("autor" e "editor" espirituais) e o médium psicógrafo que registrava as mensagens por meio da escrita e as fazia chegar até o grupo de pessoas que, na FEB, era responsável pelo trabalho editorial. É interessante pontuar que, embora as mensagens fossem aceitas no meio espírita como de autorias transcendentes, as revisões e reajustes nos textos eram realizados, usualmente, pelo concurso de "editores terrenos", muitas vezes com a participação do médium. Isso porque, segundo Chico Xavier, não poderiam "deixar um livro mediúnico prosseguir a solta, sem o nosso cuidado...". No caso narrado acerca da expressão "perder o perispírito", a opção foi a de manter o texto e inserir uma nota: não da editora, como se aventou na conversa entre Xavier e Wantuil, mas do "próprio autor espiritual", em que se lê: "O perispírito, mais tarde, será objeto de mais amplos estudos das escolas espiritistas cristãs".

(*) Nota do nosso blog: O primeiro livro de Chico Xavier que leva o crédito de "Humberto de Campos" é Palavras ao Infinito, de 1936.
(**) Poema atribuído ao escritor português Júlio Dinis.