Em mais um "fogo amigo", antropólogo admite conservadorismo em Chico Xavier

IMAGEM DE "FUTURISTA" DE CHICO XAVIER É EXTREMAMENTE ENGANOSA. ATÉ PARA MENCIONAR EXTRA-TERRESTRES, ELE RECORRIA A ABORDAGENS ANTIQUADAS.

O antropólogo Bernardo Lewgoy, formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), no seu artigo no portal Scielo, "Chico Xavier e a cultura brasileira", publicado em maio de 2001, demonstra mais um "fogo amigo" que desmonta um dos paradigmas que blindam o "médium" brasileiro, o de que ele era "progressista", "moderno" e "futurista", aspectos que fazem seduzir setores das esquerdas em torno do "médium", apesar dele ter apoiado até a ditadura militar e o AI-5.

Sem querer afirmar que Chico Xavier apoiou abertamente a ditadura militar ou havia colaborado com ela, Bernardo mencionou aspectos de "santidade" correspondentes a valores tradicionais católicos, oferecendo, junto com as ideias da antropóloga da Universidade de São Paulo, Sandra Jacqueline Stoll, subsídios para a tese de Ronaldo Terra, de que o "médium", "não necessariamente", apoiou a ditadura militar, só defendendo os generais em virtude da "santidade" dele.

É evidente que o trabalho de Lewgoy mostra vários pontos discutíveis, porque segue a tendência da corroboração do conhecido mito do "bondoso médium", dentro de um cenário em que as monografias universitárias depreciam o senso crítico, preferindo a cosmética "científica" para abordagens assépticas e intelectualmente estéreis. Portanto, não é um trabalho de senso crítico, de contestação, mas meramente descritivo, como a maioria dos trabalhos acadêmicos.


GRÁFICO ESTABELECIDO POR BERNARDO LEWGOY SOBRE OS CONCEITOS DE "SANTO" E "CAXIAS" EM CHICO XAVIER.

Ainda assim, Lewgoy teve que admitir o conservadorismo da religiosidade de Chico Xavier, iniciando sua abordagem citando dois tipos de figuras personificados no "médium", o "santo" e o "caxias" (famosa gíria que se refere ao indivíduo "certinho" e "obediente em tudo"), através das seguintes palavras:

"O ideal espírita de homem público modelar, encarnado pelo exemplo de Chico Xavier, combina dois dos paradigmas culturais muito caros à sociedade brasileira, analisados por DaMatta: o “caxias”, o cidadão obediente e honesto, disciplinado, cumpridor de horários, seguidor de normas, inflexivelmente igualitário e legalista; com o “renunciante” ou santo, aquele que se pauta pelos princípios do “outro mundo”, combinando renúncia com caridade cristã".

Em seguida, ele mostra outros trechos, nos quais reforça as caraterísticas desses dois tipos, que, tanto em um quanto em outro, indicam o caráter conservador das ideias de Chico Xavier, confirmadas nesse texto publicado no blog "Charlatães do Espiritismo", onde o "médium" mostra seu conservadorismo a partir de suas ideias manifestas em livros e depoimentos.

Fiquemos com os trechos correspondentes ao conservadorismo de Chico Xavier, cuja religiosidade, segundo admite Lewgoy, segue valores datados e próprios das décadas de 1920 a 1940 no século XX, que, sabemos, continuaram insuperáveis até o fim da vida.

Afinal, como todo conservador, Chico Xavier reconhecia que suas ideias eram imutáveis na velhice, daí que sua linha de pensamento se tornou insuperável até o fim, contrariando o pensamento desejoso que tentava promover o "médium" como "progressista" e "libertário" depois da redemocratização. A tese de Lewgoy, neste sentido, vai contra o pensamento idealizado de "espíritas de esquerda" como Franklin Félix e Ana Cláudia Laurindo:

"As categorias empregadas, “serviço”, “trabalho”, “mandato mediúnico” (ou “mediunato”), decreto de desapropriação, remetem ao coração de uma linguagem burocrática,  dministrativa, impessoal e abstrata, que contrasta com a piedosa linguagem catolicizante de outras situações mas que se liga a uma concepção corporativista de sociedade, presente nas descrições do mundo espiritual em Brasil, coração do mundo, pátria do evangelho e em Nosso lar. A esse respeito, é bastante instrutivo um depoimento de Chico Xavier, relatado por (Elias) Barbosa:

Temos no Espiritismo o cumprimento da promessa do Cristo: “Conhecereis a Verdade e a Verdade vos fará livres”, ao que o nosso abnegado Emmanuel acrescenta: “e a Verdade vos fará livres para sermos servos felizes de nossas obrigações e para sermos mais responsáveis perante Deus”. (1992: 142)

Essa visão cívica, orgânica e corporativa de cidadania e de pessoa afina-se com certas tendências ideológicas dos segmentos militares ao modernismo racionalizante, que pregava a tutela da sociedade pelo Estado (Carvalho, 1998; Castro, 1995) e, mais tarde, com as  tendências conservadoras do pensamento social nos anos 20, 30 e 40 inclusive na doutrina social da Igreja21. Originalmente católica, essa visão é também encarnada na perspectiva que lançava o Estado e o exército como instrumentos modernizantes e laicos o suficiente para, de um lado, desidentificar-se com a religiosidade conservadora, mas não o bastante a ponto de prescindir da tradição cristã, como fez o positivismo, quando convertido à doutrina política. Ou seja, na moderna realização  de sínteses religiosas no espiritismo exposto na vida e obra de Chico Xavier, este situa: 1) o sincretismo da umbanda como “primitivo”, 2) a mistura da religião e política do positivismo, como “promíscua” e 3) a síntese espírita de religião, filosofia e ciência como desejável, “racional” e “evoluída”".

Págs. 80-81


"A composição entre determinismo e livre-arbítrio, base da noção de pessoa espírita (Cavalcanti, 1983), pouco espaço ensejou para a autonomia individual como princípio ético e valor religioso, restringida que estava pelos dispositivos doutrinários e rituais no espiritismo brasileiro de boa parte do século XX. Tratava-se, ali, de uma concepção minimalista de indivíduo, não apenas vinculado sincronicamente a espíritos e homens mas também a leis, regulamentos, estatutos e graus de evolução e, é claro, a uma noção cármica de justiça, no interior do que denominei de “sistema da dívida”. Havia certamente uma exacerbação da racionalidade no espiritismo, mas não a racionalidade individualista, liberal e psicologizante mas outra, ligada a uma vertente organizada da sociedade brasileira, mais conservadora, cujas bases sociais eram as camadas médias urbanas da população, de onde saíam os funcionários públicos, professores de escola, advogados, militares e médicos, profissões de tradicional expressão no espiritismo. Diferente de certas tendências psicologizantes e new age de parte das camadas médias urbanas da atualidade, uma das fontes do espiritismo de Chico Xavier, dos anos 40 aos anos 70, enraiza-se numa estrutura religiosa formalmente federativa e doutrinariamente ligada a uma visão corporativista de mundo social, próxima, portanto, do pensamento conservador que circulava na sociedade brasileira da primeira metade do século XX".