"Liberdade" de crença "espírita" contraria os ensinamentos de Allan Kardec



A liberdade de fé é, até certo ponto, saudável, para quem faz questão de ter uma crença religiosa. Culturalmente, isso pode trazer grandes contribuições, como mostra o grande acervo arquitetônico, cultural e artístico dos tempos dos jesuítas, principalmente as milhares de igrejas construídas no Brasil colonial, e que hoje são patrimônios históricos tombados por instituições como o IPHAN. Lendas como as de Nossa Senhora de Aparecida, considerada padroeira do Brasil, também revelam o grande valor cultural que a religião traz para as pessoas, somando-se ao folclore popular.

No entanto, a liberdade de fé não pode representar o monopólio da Fé sobre a Razão, da crença religiosa sobre a realidade nem a supremacia dos dogmas sobre os fatos. Investir nessas atitudes torna-se bastante nocivo, ainda mais quando, no "espiritismo" brasileiro, uma religião cheia de contradições, se há denúncias de fraudes psicográficas, com provas demonstradas.

Neste caso, a "liberdade" para acreditar ou interpretar se determinada "psicografia" veio realmente de um espírito ou não, como se tivéssemos "direito" de aceitar ou não a suposta veracidade de tal obra "mediúnica", vai em desacordo com a Lógica e o Bom Senso recomendados por Allan Kardec. Diz ele, com propriedade: "O que a Lógica e o Bom Senso reprovam, rejeitai-a corajosamente", corroborando com os conselhos do espírito de São Luís neste contexto.

Aliás, o fato de "acreditar ou não" numa suposta psicografia não a torna verídica nem passível de veracidade. O que se expressa é a neutralidade, o que dá um tom de dúvida, não de certeza. No caso das "psicografias", o fato de nomes como Apparicio Torelly (Barão de Itararé), Raimundo de Magalhães Júnior e Monteiro Lobato se recusarem a reconhecer fraude na obra "mediúnica" de Francisco Cândido Xavier não significa que eles definissem tal obra como autêntica.

Os escritores dessa tendência apenas se abstiveram. Há uma diferença enorme entre não dizer "não" e dizer "sim". A "Federação Espírita Brasileira", aliás, aposta na neutralidade para manter as vendas dos livros "mediúnicos" - cujos lucros NÃO foram para a caridade, seja hoje, seja nos tempos de Chico Xavier, mas para seus dirigentes e para o sustento pessoal do "médium" (que não gostava de tocar em dinheiro) - , deixando sempre as questões psicográficas "em aberto".

Mais de uma situação mostra o quanto a abstinência crítica é um artifício usado pelo "espiritismo" brasileiro, que prefere manter as "psicografias" como um mistério "em aberto" - facilmente resolúvel, mas apontando para a fraude, o que ameaçaria os interesses comerciais da FEB - , como um arremedo dos "mistérios da fé" do Catolicismo brasileiro.

Em 1944, por ocasião do andamento do processo dos herdeiros de Humberto de Campos contra Chico Xavier e a FEB, uma mensagem forjada por Chico e o presidente da instituição, Antônio Wantuil de Freitas, mas atribuída ao autor maranhense - embora se identifique, em vários trechos, o estilo de linguagem de Chico Xavier, tão conhecido nos memes das redes sociais - , há uma estranha postura quanto à patente literária, que, em verdade, não seria defendida por Humberto:

"Exigem meus filhos a minha patente literária e, para isso, recorrem à petição judicial. Não precisavam, todavia, movimentar o exército dos parágrafos e atormentar o cérebro dos juízes. Que é semelhante reclamação para quem já lhes deu a vida da sua vida? Que é um nome, simples ajuntamento de sílabas, sem maior significação? Ninguém conhece, na Terra, os nomes dos elevados cooperadores de Deus, que sustentam as leis universais; entretanto são elas executadas sem esquecimento de um til".

Nesse estranho recado, o suposto Humberto - na verdade, o trecho lembra muito o estilo de mensagem pessoal de Chico Xavier - se contenta em não ter seu nome reconhecido, como se a "psicografia" pudesse se tornar apócrifa.

Uma dupla carteirada tenta ser usada para o suposto Humberto renegar sua própria patente literária, algo muitíssimo estranho para um escritor do seu nível. Uma é a posição familiar: "Que é semelhante reclamação para quem já lhes deu a vida da sua vida?". Outra, a ideia de caridade: "Ninguém conhece, na Terra, os nomes dos elevados colaboradores de Deus".

Isso revela o caráter de irresponsabilidade que o "espiritismo" permite, lamentavelmente, exercer em relação às identidades dos mortos. Chega-se ao ponto de se permitir que acreditemos na atribuição a eles ou não, o que é uma ofensa à sua memória, não bastasse o fato de que os "médiuns", no Brasil, agem como se fossem os donos dos mortos cujos nomes lhes são usados.

Vejamos um outro exemplo, mais recente, da irresponsabilidade dessa "liberdade", que causa uma desonestidade intelectual que já levou o acadêmico paulista Alexandre Caroli Rocha a uma vergonhosa contradição.

Disse Alexandre Caroli Rocha sobre o caso Humberto de Campos:

"Concluímos, pois, que os veredictos taxativos para a identificação do autor são possíveis somente com a assunção de uma determinada teoria sobre o postmortem ou sobre o fenômeno mediúnico. Quando, no debate autoral, ignora-se a relação entre teoria e texto, percebemos que a apreensão deste é bastante escorregadia, mesmo entre leitores especialistas".

Mas Alexandre Caroli foi vítima de seu próprio julgamento de valor, sendo ao mesmo tempo "taxativo" e "escorregadio" no caso da suposta psicografia atribuída a Jair Presente:

"O levantamento realizado no lote de cartas apontou 99 informações objetivas e passíveis de verificação. E todos os dados colhidos eram precisos e verídicos. Nenhuma informação extraída das cartas atribuídas a Jair Presente estava incorreta ou era falsa, segundo familiares e amigos entrevistados pelos pesquisadores.

(...)

É reiterado, porém, que o estudo não comprova que as cartas tenham realmente sido escritas por alguém morto, mas sustenta que os relatos apresentados nelas são verídicos".

Essa contradição coloca Alexandre Caroli Rocha em uma posição incômoda e o desqualifica como um aspirante a intelectual. Preso numa cosmética de "objetividade" que a burocracia dos cursos de pós-graduação impõe, criminalizando o senso crítico, que é confundido com "opinião", Caroli Rocha acaba cometendo desonestidade intelectual, e indo contra a verdadeira objetividade da qual o senso crítico teria contribuído com mais competência e êxito.

Vejamos ainda outros casos de "liberdade de crença", um relacionado ao suposto milagre da estátua de Chico Xavier, em Uberaba, das técnicas de deep learning - tecnologia ligada ao deep fake e à produção das mais habilidosas fake news - analisando obras "psicográficas" atribuídas a Emmanuel, André Luiz e Humberto de Campos e o comunicado de um "centro espírita" de Belo Horizonte sobre a mensagem de Natal do suposto André Luiz em 1952, que já foi atribuída a vários personagens políticos. Os grifos são nossos.

"Segue a mensagem guardada de um recorte de jornal, à época em que foi lida em Sessão Plenária, na Assembleia Legislativa de Minas Gerais. É uma mensagem mediúnica de André Luiz psicografada por Francisco Cândido Xavier em 1952, em que não se coloca nome de nenhum político ou candidato. As interpretações ficam por conta de cada um. Apenas apresentamos uma relíquia do acervo de Chico Xavier que para nós, espíritas é muito caro."

(Comunicado da "Fundação Caminho Verdade e Vida", "casa espírita" de Belo Horizonte, sobre a famosa mensagem de Natal publicada em 1952 por Chico Xavier)

"Cada um tem o direito de ter sua interpretação, de ter sua fé individual, mas não confio que se trate de uma verdade. De qualquer forma, a fé transporta montanhas e, se essas pessoas encontram a fé nesse água, que elas busquem sua fé da melhor maneira".

(Marta Antunes Moura, então diretora da "Federação Espírita Brasileira", sobre o boato de que a estátua de Chico Xavier, em Uberaba, "chorava" e "fazia milagres", em entrevista ao G1, na ocasião do centenário do "médium", em 02 de abril de 2010)

"A psicografia segue como uma questão de fé. Mas se o estudo atesta algo, é a genialidade do médium. Escrever o volume de texto que ele escreveu, com personas comprovadamente distintas, mas uniformes entre si, não precisa nem ser sobrenatural para ser absolutamente impressionante. Ou, como colocou Monteiro Lobato, 'Se Chico Xavier produziu tudo aquilo por conta própria, então ele merece ocupar quantas cadeiras quiser na Academia Brasileira de Letras'”.

(Ana Carolina Leonardi, "Inteligência artificial pôs à prova psicografia de Chico Xavier", revista Superinteressante, 30 de junho de 2017, com base na tese, já desmentida, que o "médium" fazia as supostas psicografias sem a ajuda de terceiros na Terra)

Ter liberdade de crença não é necessariamente o mesmo de liberdade de pensamento, conforme os deturpadores do Espiritismo que se autoproclamam "fiéis a Kardec" - infelizmente, eles são a quase totalidade do "movimento espírita" brasileiro - tentam afirmar.

A liberdade de crença não pode entrar em conflito com a honestidade intelectual. Lamentavelmente, o "espiritismo" brasileiro investe nesse conflito, gerando contradições aqui e ali. Além do mais, acreditar no "milagre" de Chico Xavier, não bastasse o próprio "médium" ser anti-kardeciano no conjunto de sua obra, vai contra os ensinamentos da Codificação, até por ser uma intromissão de um rito católico na causa espírita.

Com esse conflito, a análise de cada fenômeno torna-se desigual. A desonestidade intelectual torna-se um grave defeito dos "espíritas", que os evangélicos neopentecostais não possuem. Por piores e retrógrados que possam ser Edir Macedo, Silas Malafaia e suas respectivas seitas, eles pelo menos possuem honestidade intelectual, são sinceros em suas ideias, seus retrocessos sociais são assumidos como tais, ninguém vai ficar inventando futurismo com ideias medievais.

No caso das "psicografias", então, a "liberdade de crença" se torna mais deplorável. A ideia de "poder ou não" achar que um espírito enviou dada mensagem é terrivelmente ofensivo à memória de um falecido. É como naqueles lapsos em que o filho atende um telefone e não consegue saber o nome de alguém, e leva uma dura bronca do pai por causa de tamanha omissão.

No entanto, é permitido "admitir ou não" que teria sido "Humberto de Campos" que escreveu Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho? Isso é de uma irresponsabilidade terrível! Há provas de que houve fraude literária, seja porque o estilo do "espírito" está aquém e abaixo do que ele havia feito em vida e, além disso, já se revelou que dirigentes da FEB faziam, junto a Chico Xavier, as modificações editoriais dos livros "mediúnicos".

Portanto, são coisas que mostram não só indícios nem vestígios fortes, mas provas de que elas contrariam a Lógica e o Bom Senso. A trajetória de Chico Xavier é uma coleção dessas afrontas, que, num país menos imperfeito, seriam consideradas altamente vergonhosas e desmerecedoras de qualquer idolatria ao "médium", mesmo aquela dissimulada, que supostamente "reconhece" as imperfeições e erros do referido religioso.

Sendo contrárias à Lógica e o Bom Senso, elas devem, portanto, serem rejeitadas com muita coragem e firmeza, e isso não é intolerância religiosa. É intolerância à fraude e a aspectos duvidosos apontados na obra e trajetória de Chico Xavier, que em muitíssimos aspectos contraria a Codificação em princípios, fundamentos e procedimentos. Só as paixões religiosas dos incautos é que veem em Chico Xavier um correto cumpridor dos ensinamentos espíritas, coisa que nunca houve da parte do "médium".