Malcolm Muggeridge e a "santidade" de Chico Xavier


A IMAGEM "GLORIFICADA" DE CHICO XAVIER FOI UMA INVENÇÃO INSPIRADA NO MÉTODO DE "FABRICAR SANTOS" DO INGLÊS MALCOLM MUGGERIDGE.

Se você admira o mito de Chico Xavier, agradeça ao inglês Malcolm Muggeridge. Antes de 1974, o mito de Francisco Cândido Xavier associado à ideia de "bondade", "amor ao próximo" e "paz e fraternidade", mal era uma estratégia de marketing de âmbito regional, tramada pela "União Espírita Mineira" em parceria com a "Federação Espírita Brasileira". Ela só garantiu contornos definitivos depois de 1974, quando as circunstâncias favoreceram a "santificação" do suposto médium.

Lembremos que todas as narrativas que hoje prevalecem em favor de Chico Xavier são meramente recentes. Mesmo episódios antigos, como o lançamento de Parnaso de Além-Túmulo, em 1932, e o processo dos herdeiros do escritor Humberto de Campos, em 1944, são "narrados" sob a ótica do ídolo religioso moldado pelo consórcio ditadura e mídia corporativa no final dos anos 1970.

Se vasculharmos as narrativas pré-1970, a coisa era outra. Chico Xavier nem de longe era a "pessoa iluminada" que hoje se conhece, uma imagem idealizada à-la manière de Madre Teresa de Calcutá, sob a ótica do jornalista britânico Malcolm Muggeridge, através do documentário Algo Bonito Para Deus (Something Beautiful For God), de 1969, fonte decisiva para a "reinvenção" da imagem do "médium" mineiro realizada no Brasil.

Antes dessa campanha, Chico Xavier era visto como um pitoresco paranormal e mesmo suas atividades de "caridade" não eram apreciadas fora da "bolha espírita", diferente do que ocorre hoje, quando a reputação do "médium" alcança até mesmo aqueles que se autoproclamam "ateus", mas que pelo jeito "divinizam" um homem que viveu na Terra.

Enquanto as ações de "caridade" nunca iam além do "universo" representado por periódicos como Reformador, da FEB, e tinham a credibilidade (e as caraterísticas) das "caridades" hoje praticadas por gente como Luciano Huck. Fora da "bolha espírita", Chico Xavier, até 1974, era tratado como "atração de circo", como "fenômeno bizarro", mesmo quando se esboçava, relativamente, uma imagem religiosa, mas sem metade da intensidade dos dias atuais. No Pinga Fogo da TV Tupi, Chico Xavier ainda era visto como atração pitoresca, naqueles idos de 1971.

Note que Chico Xavier era mais contestado antes de 1974, diferente das narrativas chapa-branca que até mesmo atividades associadas ao processo de contestação de mitos, como o jornalismo investigativo e as monografias universitárias,

Tudo o que se fala em favor de Chico Xavier, portanto, é recente, e a origem disso tudo está na ditadura militar, que precisava promover uma pessoa que simbolizasse um "ativismo ecumênico" e que, dentre vários objetivos, estava em criar uma "cortina de fumaça" para tentar salvar a ditadura militar de uma revolta popular, criando, em seu imaginário, um pretenso símbolo de "paz", "resignação ao sofrimento" e "paciência para esperar dias melhores".


EM 1971, A REVISTA O CRUZEIRO JÁ COMEÇAVA A USAR O "MÉTODO MUGGERIDGE" PARA REINVENTAR CHICO XAVIER, COMO O APELO DE CARREGAR CRIANÇAS POBRES NO COLO, UM APELO MARQUETEIRO JÁ FEITO POR MADRE TERESA DE CALCUTÁ.

COMO MALCOLM MUGGERIDGE AJUDOU A "REINVENTAR" CHICO XAVIER

Se o mito de Chico Xavier antes de 1974 foi moldado por Antônio Wantuil de Freitas, presidente da FEB falecido naquele ano e aposentado quatro anos antes, a partir de então ele foi "reinventado" por uma narrativa mais próxima da que o jornalista inglês e católico direitista, Malcolm Muggeridge (1907-1990), fez para Madre Teresa de Calcutá, que no Brasil é uma espécie de "santa adotiva" dos adeptos do "espiritismo" feito aqui.

É uma narrativa que se baseou na alegação de que, em ambientes de pouca luz, durante a gravação do famoso documentário de 1969, uma iluminação repentina clareou o recinto, fazendo com que Malcolm Muggeridge atribuísse isso ao "milagre de Deus", como pretexto para promover a "luminosidade" de Madre Teresa.

Só que, conforme explicou o também jornalista britânico Christopher Hitchens (1949-2011), o "milagre" se deu porque a equipe de Muggeridge, que trabalhava para a rede de televisão BBC - por ironia, dona da BBC Brasil que, escrevendo sobre o "espiritismo", blindou Chico Xavier - , estava usando equipamentos de última geração fabricados pela Kodak, então uma das gigantes de máquinas fotográficas e câmeras de filmagens.

O roteiro da "benfeitora" Madre Teresa de Calcutá segurando crianças pobres e cumprimentando mendigos e abrigando pessoas doentes é a mesma "dramaturgia" usada para promover Chico Xavier, que imitou Madre Teresa até nos depoimentos dados pelo "médium" a partir dos anos 1970. Tudo numa pantomima que tocasse fundo na emotividade frágil de muitos cidadãos, religiosamente fervorosos mesmo quando se recusam a admitir isso (como muitos "laicos" e "isentões").

Observando a seleção de frases de Chico Xavier difundidas nas redes sociais, que alimentam a fanática idolatria de muitos internautas beatos (mesmo alguns "laicos", "isentões" e, com estranho alarde, "sem vínculo com a Doutrina Espírita"), sabe-se que, das que foram datadas de antes de 1970, quase não há depoimentos de entrevistas, pois o material remetia a textos publicados em seus livros.

Já os depoimentos dados em entrevistas, palestras ou em fontes bibliográficas, incluindo biografias sobre o "médium", datam quase sempre dos anos 1970 até o fim da vida, uma vez que é nessa época que se desenvolve a narrativa que predomina até hoje, uma "compreensão real da figura humana do médium" que contém, explicitamente, os mesmos elementos publicitários de Malcolm Muggeridge.

"SANTIDADE"

A partir da tese de Ronaldo Terra de que Chico Xavier "não" colaborou com a ditadura militar - aqui contestada pelo argumento lógico de que a Escola Superior de Guerra, que homenageou o "médium", não perderia tempo nem dinheiro homenageando quem não colaborasse em prol do regime ditatorial, por causa dos objetivos estratégicos da instituição naquela fase de repressão radical - , se sustenta pela tese de "santidade" atribuída ao beato de Pedro Leopoldo e Uberaba.

A tese é sustentada por trabalhos diversos de Bernardo Lewgoy e Sandra Stoll, o primeiro ressaltando a personalidade religiosa, de formação católica, de Chico Xavier, a segunda, enfatizando a influência católica que deu um "caráter próprio" ao que no Brasil se entende como Espiritismo. Aqui destacamos uma declaração de Sandra, doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP), para a BBC Brasil, sobre a "catolicização do Espiritismo":

"Inspirado na noção de santidade católica, Chico Xavier adotou votos monásticos como modelo de conduta e espiritualidade. Assim, ele se tornou referência moral não só para médiuns, como também para os demais adeptos da doutrina. Essa construção do estilo brasileiro de ser espírita, marcadamente católico, é o que chamo de espiritismo à brasileira", disse Stoll ao portal de notícias.

Só que a "catolicização" do "espiritismo à brasileira" não é vista da forma pejorativa que rendeu conflitos entre "místicos" e "científicos" no seio do "movimento espírita", e nem há menção da influência de Jean-Baptiste Roustaing, o responsável desse processo, junto à herança do Catolicismo jesuíta do período colonial, que, inspirado na Idade Média, forneceu as bases das tradições religiosas "populares" marcadas através do trabalho catequista dos séculos XVI, XVII e primeira metade do século XVIII.

A tese de Terra renega que Chico Xavier colaborou com a ditadura militar, ignorando os aspectos lógicos que tornam essa colaboração algo comparável ao de outros exemplos do "meio religioso", como Madre Teresa de Calcutá condecorada em 1985 por Ronald Reagan, o mesmo presidente dos EUA que ordenou uma carnificina na América Central (onde até padres católicos, desde que comprometidos por causas progressistas), deixando os movimentos de esquerda praticamente vazios de lideranças e ativistas.

A "caridade" de Chico Xavier também se reforçava por atitudes que reproduzem o teatro "filantrópico" de Madre Teresa, ao "peregrinar" pela cidade de Uberaba "assistindo" populações pobres, que viviam sob as pontes - embora, contraditoriamente, o "médium" tenha esculhambado os movimentos do sem-teto no Pinga Fogo - e "visitando" pobres e também mandando "cartas" para os presidiários.

São ações tidas como "comoventes", mas que têm seu caráter demagógico pela Teologia do Sofrimento, onde as ações de "caridade" não ameaçam os privilégios das elites nem trazem uma ruptura real da inferioridade social do povo pobre, assistido apenas dentro desses limites meramente paliativos, onde o que mais importa é gerar, no pretenso benfeitor - no caso o próprio Chico Xavier - , um protagonismo em torno da "ajuda aos oprimidos".

Essas ações, que nem de longe superavam as desigualdades sociais e só serviam para fazer os pobres se resignarem com sua situação de miséria, apenas aliviada com medidas paliativas, são apenas meros arremedos, um tanto grotescos, da peregrinação cristã, sendo mais um artifício de propaganda religiosa e promoção pessoal do "benfeitor", no caso Chico Xavier, cujos "atos de caridade" não são diferentes do que Luciano Huck, que se assume admirador do "médium", realiza nos quadros do Caldeirão do Huck.

Aliás, é uma contradição muito grande, assistir os oprimidos e os opressores. Isso não é humanismo. A "santidade" envolve mitificação, ou seja, é um termo que já tem o sentido da "mitologia", e, portanto, não condiz a uma visão objetiva nem imparcial das coisas. Ela, mesmo abordada sob o aparato científico das teses acadêmicas, revela uma posição ainda mais parcial e subjetivista do que muitas teses que, com senso crítico, pusessem em xeque as famosas qualidades de Chico Xavier.

A atitude de acolher "com igual fraternidade" opressores e oprimidos é apenas uma atitude que mostra o caráter ultraconservador de Chico Xavier, que, apesar do "sentimento igualitário", ao acolher opressores (ditadura militar) e oprimidos (população pobre de Uberaba), na verdade estava colaborando com a manutenção, e não o combate, à desigualdade social.

É como se ele dissesse, dentro de sua perspectiva de aceitação do sofrimento e sua respectiva conformação (Teologia do Sofrimento), que os oprimidos tenham que se conformar com suas desgraças e os opressores que fossem perdoados pelos seus abusos, o que indica uma "fraternidade da galinha com a raposa", o que desmente o humanismo, dando a Chico Xavier um caráter desumano e bem mais cruel do que sugerem suas palavras suaves.

Mais perversa é essa falta de humanidade mascarada pelo Assistencialismo, pelo acolhimento paternalista dos oprimidos, pela complacência com os abusos dos opressores. É uma grande hipocrisia, vinda de Chico Xavier, e que só mesmo uma sociedade conservadora como a brasileira, onde até as esquerdas progressistas apresentam profundos resíduos direitistas dos mais conservadores, para aceitar, da parte de um ídolo religioso que nada teve de moderno nem de progressista, mas é atribuído, errônea e ingenuamente, a tais qualidades.