Texto de Allan Kardec sobre ortografia e psicografia requer observação cautelosa



Um texto da fundamental obra O Livro dos Médiuns, de Allan Kardec, na Introdução ao Estudo da Doutrina Espírita, o item XIV - As Questões da Ortografia, lido sem pressa e entendido fora do seu contexto, animaria os "espíritas" brasileiros, vendo nisso a permissividade para as pessoas saírem por aí escrevendo textos atribuídos a supostas mensagens espirituais. Seria, desta maneira errônea, um texto a corroborar com a "psicografia" cheia de irregularidades de Francisco Cândido Xavier.

Neste texto, Kardec fala da impossibilidade da ortografia ser um critério determinante para verificar a possível veracidade das psicografias, uma vez que a escrita humana seria um processo mais lento para a agilidade de espíritos desencarnados. Aparentemente, Kardec deixou passar aspectos que no Século XX, no Brasil, se viu na obra de Chico Xavier, o que, entendido apressadamente, faz a festa dos chiquistas, eufóricos com a suposta aprovação do pedagogo lionês à obra xavieriana.

Só que não é assim. Kardec, que disse que tudo que a Lógica e o Bom Senso reprovam deve ser rejeitado corajosamente, corroborando mensagens de espíritos como São Luís e Erasto, não iria permitir que as psicografias fossem "qualquer nota". Ele não disse que as caligrafias podem ser feitas a bel prazer, a não ser que se deixe clara a diferença de um médium que incorpora a escrita de um espírito do além e um médium que apenas, como um "secretário", anota o que é ditado pelo espírito.

Mas essa diferença não é clara e mesmo os adeptos de Chico Xavier que se gabam em ter um faro "científico" e uma "objetividade" exemplar, não conseguem expressar esse discernimento, tomando uma coisa por outra, sem estabelecer fundamentos nem critérios mais específicos e muito menos adotando alguma argumentação consistente.

O entendimento precipitado do texto abaixo fez com que fraudes caligráficas fossem observadas, como na ilustração acima, onde assinaturas "mediúnicas" têm a caligrafia pessoal do "médium", ao passo que essas assinaturas entram em conflito com as assinaturas deixadas em vida pelos alegados mortos.

Lembremos que, no contexto de Allan Kardec, a escrita era feita a pena, bem menos cômoda para escrever do que as modernas canetas esferográficas. Da mesma forma, também é necessário saber que os meios de Comunicação modernos de hoje em dia praticamente não existiam, a não ser a incipiente Fotografia e a tipografia da imprensa.

Portanto, não havia tecnologia para analisar as caligrafias e a grafoscopia, apesar de sua origem remeter ao ano 88 da nossa era, só se desenvolveu da forma moderna e mais precisa que conhecemos a partir da segunda metade do século XIX, depois da morte de Kardec.

Também devemos observar que Allan Kardec estava começando os estudos sobre fenômenos espíritas, e muito do que ele concebeu está no contexto do seu tempo. As evoluções intelectuais e científicas ainda trariam novidades após Kardec, e é por isso que suas ideias, coerentes e necessárias para o entendimento da Doutrina Espírita, devem ser apreciadas com cautela.

Em muitos momentos, as ideias de Allan Kardec podem soar datadas, o que também não quer dizer que se saia por aí deturpando sua doutrina. A questão das ideias datadas se dá conforme os progressos sociais que Kardec não pôde acompanhar, o que não deve ser confundido com a desculpa dos brasileiros de usar as "tradições religiosas populares" para desfigurar a Codificação.

É por isso que é necessário o senso crítico na apreciação dos ensinamentos da Codificação, até com leves discordâncias, mas sem oferecer oportunidade para apoiar a deturpação doutrinária, representada pelo medieval Chico Xavier. Vamos ao texto:

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XIV – As Questões de Ortografia

Por Allan Kardec - O Livro dos Médiuns - Introdução ao Estudo da Doutrina Espírita

Passaríamos ligeiramente sobre a objeção de alguns céticos quanto às falhas ortográficas de alguns Espíritos, se ela não nos desse oportunidade a uma observação essencial. Essa ortografia, deve dizer-se, nem sempre é impecável; mas somente a falta de argumentos pode torná-la objeto de uma crítica séria, com a alegação de que, se os Espíritos tudo sabem, devem saber ortografia. Poderíamos opor-lhes numerosos pecados desse gênero cometidos por sábios da Terra, sem que lhes tenha diminuído o mérito. Mas há neste fato uma questão mais grave.

Para os Espíritos, principalmente para os Espíritos superiores, a idéia é tudo, a forma não é nada. Livres da matéria, sua linguagem é rápida como o pensamento, pois é o próprio pensamento que entre eles se comunica sem intermediários. Devem, portanto, sentir-se mal quando são obrigados, ao se comunicarem conosco, a se servirem das formas demoradas e embaraçosas da linguagem humana e sobretudo de sua insuficiência e imperfeição, para exprimirem todas as suas idéias. É o que eles mesmos dizem, sendo curioso observar os meios que empregam para atenuar esse inconveniente. O mesmo aconteceria conosco se tivéssemos de nos exprimir numa língua de palavras e fraseados mais longos, e mais pobre de expressões do que a nossa. É a dificuldade que experimenta o homem de gênio impaciente com a lentidão da pena, sempre atrasada em relação ao pensamento.

Compreende-se, pois, que os Espíritos liguem pouca importância às puerilidades ortográficas, principalmente quando tratam de um ensinamento profundo e sério. Não é, aliás, maravilhoso que se exprimam indiferentemente em todas as línguas, a todas compreendendo? Disso não se deve concluir, entretanto, que a correção convencional da linguagem lhes seja desconhecida, pois a observam quando necessário. Por exemplo, a poesia por eles ditada quase sempre desafia a crítica do mais exigente purista, e isso apesar da ignorância do médium.