Vitimismo e triunfalismo no "meio espírita"



É muito comum o "movimento espírita", tomado de vitimismo, dizer, com aparente otimismo, que "os ataques ao Espiritismo são muito bons para a doutrina", sob a desculpa de "provocarem, de uma forma ou de outra, o interesse pela Doutrina". A ideia é usar a seu favor as críticas ao "movimento espírita", criar um vitimismo em cima e, depois, um triunfalismo.

"Chovam-se pedras em cima do nosso amado Chico Xavier, imponha-se a derrota para o nosso prestigiado Espiritismo, que, um dia, o trabalho do bem prevalecerá, depois de soterrado pelas pedradas de nossos opositores", complementam os "espíritas", com um dramático discurso vitimista e triunfalista ao mesmo tempo.

Num Brasil altamente desinformado das coisas, que deixou-se abrir o caminho para os bolsonaristas e para a apreciação de fake news, esquecemos do precedente de Francisco Cândido Xavier e seus "fakes do bem", forjando pretensa psicografia num país cujo povo nem estava preparado para acolher tais fenômenos. E, sabemos, nem Chico Xavier foi 1% do psicógrafo que muitos acreditam ter sido, porque, no fundo, ele só "conversava" com a falecida mãe e, quando muito, com um padre jesuíta falecido há séculos.

Se o bolsonarismo e a turma dos factoides se ascendeu, é porque resíduos de bolsonarismo existem em quase todos os brasileiros, mesmo aqueles que, autoproclamados "de esquerda", dizem sentir todo horror a Jair Bolsonaro e tudo que ele representa.

As pessoas gostam de ouvir fofocas na televisão, que contam notícias falsas sobre famosos. Acolhem mentiras da vizinhança, antes de verificá-las. Se inclinam a ver programas policialescos vespertinos na TV, onde o povo pobre é trabalhado como sórdido e bandido. E, no entanto, elas ficam falando mal de fake news que se espalham nas redes sociais, se bem que vários vídeos dessa tendência foram acolhidos, vistos e apoiados com likes por essas mesmas pessoas.

E acolhemos como "verdadeira" a literatura fake que diz ter sido "escrita" ou "ditada" (dentro daquela confusão dos "espíritas" indecisos em supor se um "médium" escreveu pelos espíritos ou eles escreviam usando o físico do "médium") pelos mortos, só porque elas apresentam "lindas mensagens", supostamente associadas a "lições de vida" e "ensinamentos cristãos".

Sabem aquelas passeatas de bolsonaristas que ocorrem todo domingo? Elas são o inconsciente coletivo de muitos brasileiros "de bem", que dizem odiar o bolsonarismo mas deixam o bolsonarismo se levar. E, sendo muitos desses "bolsonaristas ocultos", que se dizem "de esquerda", "progressistas", "humanistas" e "avessos ao ódio", guardam dentro de si neuroses que, num momento mais dramático, fazem muitos anti-bolsonaristas reagirem e sentirem de forma similar aos bolsonaristas.

Não adianta repudiar o outro se adota seu modus operandi. No Brasil, condena-se os argueiros nos olhos dos outros, mas não as traves dos próprios olhos? Em quantos momentos os "espíritas" simplesmente não estavam ao lado dos neopentecostais, pedindo a queda de governos de esquerda, manifestando-se contra o aborto, passando pano em feminicidas que deixam a prisão, fazendo juízo de valor contra amigos de um jovem morto ou contra vítimas de incêndios em circos.

Os movimentos de esquerda são os que mais possuem direitistas ocultos, disfarçados. O vício maior dos brasileiros está em dissimulações diversas, em pretensões e ambições desmedidas, que sempre fazem com que tendências novas sejam corrompidas por conceitos velhos e obsoletos, mas que ganham um novo verniz através dessas novidades, que aqui perdem a essência original, porque o "novo" sempre tem que fazer acordo com o "velho" e o "obsoleto" a que se apega o establishment social brasileiro, sob os mais diversos âmbitos da vida humana.

É por isso que o Espiritismo de Allan Kardec só chegou aqui pela deturpação de Jean-Baptiste Roustaing, e a "doutrina espírita" brasileira se moldou através de conceitos reciclados do Catolicismo jesuíta português, de essência ainda medieval, fazendo do rótulo "espiritismo" um abrigo para dissidentes da Igreja Católica que não aceitaram as mudanças que esta começou a realizar do século XIX para cá.

COM TEOLOGIA DO SOFRIMENTO, CHICO XAVIER RENEGA CARIDADE DE KARDEC

O "espiritismo" brasileiro, através das ideias de Chico Xavier, abraçou a Teologia do Sofrimento, que foi o que havia de mais radical do Catolicismo da Idade Média. Nenhum "espírita" confessou assumir tal corrente, mas é surpreendente a coincidência extrema das ideias entre o "espiritismo" e a Teologia do Sofrimento católica, uma identificação completamente gêmea, que não dá para ignorar a tendência medieval existente no "meio espírita".

Recomendamos que as pessoas com capacidade de avaliar criticamente as coisas a lerem o livro Sofrer e Amar, de João Mohana, considerada uma das obras mais representativas da Teologia do Sofrimento católica no Brasil, e comparem as ideias apresentadas com as dos livros de Chico Xavier e de muitos dos depoimentos do "médium espírita". Vão observar que é surpreendente a semelhança e a analogia das ideias e da forma dócil de argumentar a aceitação do pior sofrimento.

Trata-se de conteúdo de ideias. As pessoas se revoltam com essa comparação porque creem demais nas "embalagens" que o "espiritismo" brasileiro apresenta, falsamente promovido como se não se tivesse desviado dos caminhos originais da Codificação. Infelizmente, a deturpação doutrinária é desconhecida de muitos e nossos jornalistas investigativos, lamentavelmente, andam ainda subjugados pela mística de Chico Xavier.

E sabemos o quanto o "espiritismo" brasileiro usa a Teologia do Sofrimento, nunca chamada pelo nome, para atender seus interesses. Em primeiro lugar, se estabece a ruptura com aquilo que os "espíritas" brasileiros, bajulando Kardec, afirmam ser o "maior princípio": a caridade.

Afinal, quando Chico Xavier afirma que os sofredores deveriam aguentar calados e sem reclamar as piores desgraças, e, se possível, até gostar delas, ele está indo em contramão da caridade. É como se dissesse para outras pessoas: "Se virem. Se sofrem prejuízos, tragédias e desastres, fiquem na sua, não reclamem, e para superar tudo isso vocês têm que se virar!". É isso mesmo que Chico Xavier diz, mas traduzido em palavrinhas adocicadas.

Sim, porque essa apologia ao sofrimento humano, seguindo o ditado popular "pimenta nos olhos dos outros é refresco", é uma negação da caridade para uma parcela maior de pessoas. É como se o próprio Chico Xavier dissesse: "Fique sofrendo. Não vou lhe ajudar. Espere em silêncio, quieto e obediente, que Deus vai ajudar você não se sabe quando".

Isso contraria a máxima espírita original: "Fora da caridade não há salvação". Quando se fala para um sofredor extremo, que enfrenta adversidades sem controle, tomando susto o tempo todo diante de todo incidente maléfico, para ele não reclamar, ficar quieto, e até ficar feliz com sua situação, achando que "dia de desgraça é véspera de bênçãos", uma falácia que resume bem a Teologia do Sofrimento.

FERRAMENTA DA MERITOCRACIA

A Teologia do Sofrimento é uma ferramenta da meritocracia. É uma forma de usar palavras dóceis para defender o sofrimento alheio, como um "holocausto do bem", como uma maneira de justificar a desgraça do outro através de suposições de que "é sofrendo que a pessoa viverá algo melhor".

Como um sistema de moralismo rigoroso, a Teologia do Sofrimento apenas arruma uma retórica para tornar o sofrimento "mais agradável", como se quisesse pôr açúcar na pimenta que arde nos olhos dos outros. As pessoas já se iludem com a retórica "bondosa" da Teologia do Sofrimento católica, se iludem ainda mais quando ela se veste do disfarce "espírita" e é transmitido por pessoas como Chico Xavier.

Ainda há a confusão ideológica entre "sofrimento" e "aprendizado", "desgraça" e "desafio", e os ideólogos da Teologia do Sofrimento, sejam católicos e "espíritas", ainda tratam com estranheza a angústia do outro, e, no caso do "espiritismo", ainda há a demonização do suicídio, embora, contraditoriamente, os "espíritas" defendam o "combate ao inimigo de si mesmo" que, na visão de quem está no desespero extremo, é uma autorização oculta para se tirar a própria vida.

A alegação de que "sem sofrimento, ninguém vence na vida", com base no termo em inglês "no pain, no gain" ("sem dor, sem ganho"), simboliza a austeridade da Teologia do Sofrimento, aliada ao moralismo secular, mas também reacionário, da meritocracia, que só permite o "prêmio" da bonança para quem aceitar que alguma coisa importante lhe seja destruída na vida. Quanto mais destruição, mais tragédia, maior o prejuízo, mais "abençoada" se torna a pessoa.

Não se imagina que a reação humana ao sofrimento excessivo é instintiva, similar à de um animal acuado. Mesmo animais domésticos de espécies dóceis, como filhotes de gatos e cães de raças como poodle e maltez, podem reagir como animais ferozes quando acuados. Um camundongo que parece fofo pode ser perigoso quando acuado, ainda mais se ele estiver contaminado.

O moralismo dessa teologia é hipócrita porque é reservado apenas aos oprimidos. Em contrapartida, a Teologia do Sofrimento pede aos oprimidos que "perdoem" os abusos dos opressores, sob a desculpa de que "Deus, um dia, irá cuidar dos algozes".

Notem que as promessas de "melhorias de vida" e sobre a "justiça divina" sempre são dadas sem prazo definido, com um discurso ambíguo que supõe que "as coisas já estão acontecendo", quando elas nunca acontecem e as promessas são sempre adiadas.

"ESPÍRITAS" DIZEM NEGAR QUE SEGUEM TEOLOGIA DO SOFRIMENTO, MAS A USAM EM CAUSA PRÓPRIA

O "espiritismo" brasileiro tem uma estratégia bastante esperta: adotam posições obscurantistas de maneira taxativa, para depois desmentir tais posições e alegar que nunca defenderam aquilo que haviam defendido na véspera.

Daí que é comum os "espíritas" despejarem um moralismo rígido no primeiro momento e, depois, desmentirem o que eles mesmos disseram ou escreveram. É muito fácil ser um moralista impiedoso em um dia, e, no dia seguinte, se passar por um bondoso de ares paternais, criando desculpas do tipo "desculpe se eu falei demais", desculpas estas que, evidentemente, não seriam dadas na véspera.

Essa é uma hipocrisia dos "espíritas" que se contradizem o tempo inteiro. E, no caso da Teologia do Sofrimento, nenhuma alma encarnada dentro do "meio espírita" se encorajou a admitir essa tendência, mas não raro surgem os que se sentem "muito entristecidos" com tamanha classificação, apesar das evidências expressas nas próprias ideias doutrinárias e pessoais de Chico Xavier.

Só que a Teologia do Sofrimento, além de defender que os oprimidos se conformem com a sua própria desgraça ou, para superá-las, teriam que obter sacrifícios acima de suas capacidades e limites, ela serve também para promover o teatro vitimista dos "espíritas" brasileiros.

VITIMISMO E TRIUNFALISMO, SOMADOS, DÃO EM ARROGÂNCIA E NÃO EM HUMILDADE

É uma grande ilusão que a combinação de vitimismo e triunfalismo do "movimento espírita" brasileiro seja uma demonstração de humildade e simplicidade. Antes ela é uma demonstração de profunda arrogância e de não aceitação da derrota, que antes é falsamente admitida como um trampolim para a vitória e a conquista do poder.

"Ataques ao Espiritismo são muito bons para a doutrina, porque ajudam a divulgá-la" é uma manobra discursiva para os "espíritas" se promoverem às custas das críticas que recebem, o que não significa humildade nem aceitação das críticas nem consideração fraterna aos opositores, mas antes uma reação psicológica, disfarçada por palavras "amigas", de fúria e indignação.

É como se, em linguagem oculta, os "espíritas" quisessem dizer "Vamos passar por cima das críticas alheias, porque o que nos interessa é nosso poder e nosso modo de ver o mundo". Não podemos nos iludir com os balés das palavras, porque muitas das mensagens mais perniciosas são trazidas pelo açúcar das "belas palavras", dadas com vozes suaves e sorrisos abertos.

Mas aí vem o discurso vitimista que usa a derrota como um pretenso trampolim para a vitória. "Que venham as pedras para nos atingirem, nós que só vivemos para dar o pão dos pobres! Que tempestades nos destruam conforme o sabor dos opositores! Sejamos então derrotados, até que a luz de Deus mostrará os verdadeiros vencedores".

É fácil um arrogante que não queira ser derrotado partir para essa encenação, ainda mais usando, em causa própria, a frase de Jesus de Nazaré, "os últimos serão os primeiros". No entanto, sabemos que os "espíritas" é que são sempre os "primeiros", eles se acham "na frente de tudo", embora usem um discurso que tente, falsamente, afirmar o contrário.

É fácil estar no poder e fingir que é vítima desse poder. É fácil ser supremacista e se achar um "excluído", como ocorreu numa manifestação fascista no Estado da Virgínia, EUA (justamente local onde vive Olavo de Carvalho, guru de Jair Bolsonaro) contra a retirada de uma estátua do general Robert Lee, um dos ídolos da extrema-direita estadunidense. Os supremacistas alegavam terem sido vítimas de bullying.

Adolf Hitler era um pintor fracassado, Charles Manson um roqueiro fracassado, Guilherme de Pádua um ator canastrão, Jair Bolsonaro um militar medíocre, considerado "bunda suja" (incompetente) pelos altos comandos militares. Mas também Chico Xavier foi um poeta mediano, que, assim como Caio Coppolla tentou imitar bandas de brit pop, imitou, no seu tempo, os poetas românticos. Muitos hoje exaltam Chico Xavier, mas imaginem como seria se Caio Coppolla, com sua banda medíocre
Mirandous, alegasse ter incorporado Ian Curtis, falecido músico britânico do Joy Division?

A Teologia do Sofrimento, aliás, cai em muita contradição. Acha que o sofrimento excessivo só produz pessoas geniais e humanistas, mas o excesso de adversidades pode provocar tiranos, homicidas, ladrões, corruptos, gente casmurra e traiçoeira, pessoas ignorantes e em conflito com a realidade.

E olha que as adversidades foram poucas para um Manson, Hitler ou De Pádua, ou mesmo para Chico Xavier e Jair Bolsonaro, descontando as surras da infância. Mas não é aumentando as adversidades que os faria melhores, antes os piorassem mais ainda. Se eles sempre foram medíocres por natureza, o excesso de adversidades só lhes faria mais mesquinhos, na incapacidade de reagirem de maneira digna e equilibrada.

Quanto ao "espiritismo" brasileiro, a combinação de vitimismo com triunfalismo, com o uso da Teologia do Sofrimento em causa própria, como as falácias de que "os ataques ao espiritismo enobrecem e fazem crescer a doutrina" ou "as pedras jogadas contra Chico Xavier serão compensadas com a verdade de Deus" só servem a interesses materiais dos "iluminados da Terra", que usam as paixões religiosas e as fraquezas emotivas dos brasileiros para se julgarem "vencedores, mesmo diante da derrota violenta".

Isso é arrogância, não é humildade. É uma forma de não aceitar derrota, porque se trata de uma reação psicológica marcada pela histeria, pela neurose e pelo uso da falácia para levar vantagem. Se julgar "vencedor na derrota" é uma falta de dignidade, um discurso chantagista pelo avesso, pelo qual o orgulho se fantasia de simplicidade e recorre ao vitimismo para se promover, evitando assim cair em descrédito quando passa a usar sua derrota como um trampolim para a trapaça.

Ninguém se torna vencedor pela derrota nem próspero pelo sofrimento. Isso vem em função das reações humanas. Assim como o sofrimento excessivo, em si, nunca consegue melhorar a vida de pessoa alguma, por outro lado, se achar vencedor pela derrota pode ser, em muitos casos, sinal de muita arrogância, representando, assim, uma revolta em alguém não aceitar perder na vida. É fácil os "espíritas" defenderem a desgraça alheia, mas a derrota deles mesmos, eles nunca admitem.