A caridade como trampolim para a promoção pessoal


CONDE PEREIRA MARINHO, CHICO XAVIER E LUCIANO HUCK - QUANDO A 'AJUDA AO PRÓXIMO" AJUDA MAIS O SUPOSTO BENFEITOR.

Precisamos falar a respeito de caridade. Não no sentido de produzir mais sopas para os pobres, construir mais creches e orfanatos ou aumentar as arrecadações de roupas, cobertores, remédios e utensílios de limpeza. Essas são coisas fáceis e essa "caridade" que muitos glorificam e das quais lágrimas são desperdiçadas como por uma masturbação dos olhos é bem menos eficiente do que se imagina.

Além disso, devemos parar de ver a "caridade" pelo ponto de vista do suposto benfeitor. Temos o vício de glorificar o "filantropo" da temporada, e os pobres e necessitados são apenas animaizinhos domésticos, as pessoas que exaltam um "caridoso" nem olham para os rostos dos pobres, evitam vê-los sentindo alguma repugnância elitista, disfarçada por alegações "bondosas", até porque dissimular é um dos esportes mais praticados no Brasil, talvez mais do que o próprio futebol.

Fala-se que Francisco Cândido Xavier "fez caridade", e esse discurso é repetido, como papagaio imitando sons, até mesmo por aqueles que duvidam de sua trajetória como "espírita" e "médium". Só que a "inegável bondade" de Chico Xavier foi um mito espalhado por muitos propagandistas, que, como quem conta estórias de fadas, produziram, em quantidade relativamente industrial, livros de "lindas estórias" de Chico Xavier.

Esses livros são em parte relatos verídicos, em parte relatos fantasiosos, e nem tudo que é narrado é realmente lindo. Aliás, quase nada. Estórias de sofredores aconselhados a suportar as próprias desgraças, porque "Deus um dia irá socorrer, porque o socorro divino é certo", mensagens com meros trocadilhos de palavras (como "silêncio" e "voz", "fraqueza" e "força", "submissão" e "liderança") e trivialidades com o público de "reuniões espíritas" dão o tom dessa campanha publicitária.

Poucos percebem, mas a "caridade" de Chico Xavier nunca foi além dos padrões meramente paliativos que hoje estão associados ao apresentador e empresário Luciano Huck. Os contextos diferem, mas a essência é a mesma, e o próprio Luciano Huck assume isso, tanto que foi ver, em 2010, Chico Xavier - O Filme, com sua esposa Angélica, e ele também fez edições do Lata Velha em Uberaba e Pedro Leopoldo.

Sobre Uberaba, isso seria um fato comum, por ser uma famosa cidade do Triângulo Mineiro. Mas o que faria um paulista radicado no Rio de Janeiro fazendo quadro assistencialista na cidade de Pedro Leopoldo, que não costuma ser lembrada sequer pelos próprios habitantes da Grande Belo Horizonte, região onde a cidade se inclui, pois, de tão interiorana, há quem acredite que a terra natal de Chico Xavier, que o expulsou após o escândalo de Amauri Xavier, também ficasse no Triângulo Mineiro.

MONOPÓLIO DA MÍDIA CORPORATIVA

Uma coisa que deve ser lembrada é que a imagem que hoje se cultua de Chico Xavier foi construída no momento de crise da ditadura militar, na qual regime e mídia corporativa precisavam promover um ídolo religioso "ecumênico" para servir de cortina de fumaça para a revolta popular e como meio de tentar salvar o regime ditatorial através de um paradigma de um ativista conservador.

É enganoso considerar que a imagem "iluminada" de Chico Xavier surgiu logo em 1932, quando a primeira cópia de Parnaso de Além-Túmulo ingressou no parque gráfico. Durante muito tempo, ele foi apenas um pitoresco dublê de paranormal, com atitudes e obras consideradas controversas. Atividades supostamente filantrópicas são conhecidas desde os anos 1940, mas sua projeção nacional era muito tímida, sua repercussão era prioritariamente regional e dentro da "bolha espírita".

O mito que hoje conhecemos de Chico Xavier, aliás, foi desenvolvido sob o mesmo método de "fabricação de santos" que o jornalista inglês Malcolm Muggeridge desenvolveu para Madre Teresa de Calcutá, no projeto Algo Bonito Para Deus (Something Beautiful For God), livro e documentário. É aquela "santidade de consumo" feita para a idolatria religiosa, e o caráter conservador de ambos vira alvo de discussões e até brigas, que favorecem a expansão da opressão capitalista.

Hoje se contesta a suposta caridade de Luciano Huck, mas quem pensa que a suposta caridade de Chico Xavier foi algo genuíno, transformador e até libertário, está completamente enganado. Essa crença, da qual basta um simples boato e dispensa-se a menor fundamentação, foi propagada porque, em favor do "médium", que no sentido filantrópico foi o Luciano Huck do seu tempo, havia uma narrativa unilateral, por razões mais do que óbvias.

Primeiro, porque era a época do AI-5 que, mesmo depois de extinto no final de 1978, deixou seu forte legado na imprensa. Segundo, não havia meios tecnológicos que permitissem que o cidadão comum pudesse se tornar um formador de opinião, tanto por critérios meritocráticos - como os chamados "profissionais da opinião" da mídia - , quanto pelo acesso difícil em relação a hoje, quando um anônimo pode alcançar a fama criando um canal no YouTube.

Não havia um contraponto e foi a "narrativa do vencedor" - se não os próprios militares, mas a chamada "sociedade civil" dotada de pessoas de perfil formalmente liberal e fundamentalmente conservador, autorizados pelo poder ditatorial de serem formadores de opinião, até para dar a impressão de "liberdade democrática" - que transformou Chico Xavier no suposto "espírito de luz" adorado por tanta gente.

"FILANTROPIA" É TRADIÇÃO DAS ELITES PARA "LIMPAR SUA BARRA"

Embora o portal BBC Brasil, filial brasileira do complexo midiático britânico BBC, tenha blindado Chico Xavier em matéria sobre o Espiritismo, de autoria do correspondente do Rio de Janeiro, André Bernardo, outra matéria do mesmo portal, de autoria de Camilla Costa, trabalhando na matriz em Londres, sugere um alerta sobre quem quiser idolatrar alguém pela aparente filantropia, mesmo que essa idolatria seja dissimulada numa "admiração simples, moderada e saudável de pessoas imperfeitas".

A matéria, sobre o traficante de escravos Joaquim Pereira Marinho, o Conde Pereira Marinho, era um escravocrata tão convicto que traficava escravos mesmo quando as leis do Império brasileiro proibiam tamanho transporte, chegando inclusive a intensificar as ações no momento em que o tráfico era considerado ilegal.

Entrevistando a professora Ana Lúcia Araújo, da Universidade Howard, nos EUA, especializada em história transnacional da escravidão, a reportagem da BBC descreve que o conde, na medida em que tornava a ser desmoralizado pelas acusações de agiotagem e pelo próprio repúdio que a sociedade passou a dar ao tráfico de escravos, passou a investir em "caridade". Diz a historiadora:

"O elemento em comum entre todos esses traficantes é que eles eram filantropos. Durante a vida eles se empenhavam em construir a imagem de pessoas caridosas. E conseguiram, porque vemos que, no decorrer dos anos, a participação deles no comércio de humanos foi sendo apagada justamente para ficar a memória das benfeitorias".

Independente dos eventuais méritos de uma ação aqui ou ali, esses méritos nem de longe contribuem para o capital social dos supostos benfeitores. Devemos ver as ações pelo ponto de vista dos prejudicados que foram salvos, que no entanto são meros detalhes diante da idolatria que as pessoas dão aos "caridosos", uma idolatria tão envergonhada que, em tempos de politicamente correto, virou "admiração saudável a pessoas que, sim, erraram muito na vida".

Ou seja, a "caridade" é vista mais como um meio de protagonismo e motivo para o culto à personalidade de quem supostamente "se dedicou ao próximo". É o que sugere o ditado popular, de origem lendária, "Quando a esmola é muita, o santo desconfia", que dialoga também com outro ditado, "Isso é bom demais para ser verdade".

Fala-se muito que Chico Xavier nunca exigiu coisa alguma de troca em suas ações supostamente filantrópicas. Mas lembremos da recomendação da Codificação, em O Livro dos Médiuns, Capítulo 20 - Identidade dos Médiuns, item 226, subitem 6º: "Conheces todos os segredos de sua alma? Além disso, sem ser vicioso, ele (o médium) pode ser frívolo e leviano". Até parece que a Doutrina dos Espíritos já estava prevendo um tipo perigoso como Chico Xavier e os estragos que este faria em multidões.

PROMOÇÃO PESSOAL E "RIQUEZAS DO CÉU"

Devemos lembrar de outro ditado para verificar a estranha ênfase, o estranho alarde e a estranha repetição das declarações de Chico Xavier de "nada querer em troca" de suas ações supostamente caridosas. Este ditado, "Quem muito diz ser, no fundo não é, porque quem é não precisa ficar dizendo", vêm à tona diante dessa tentativa de justificar o tempo todo sobre aquilo que, no fundo, Chico Xavier nunca fez.

A esperteza humana tem sutilezas que poucas pessoas percebem. Pode-se enriquecer por fora oferecendo serviços gratuitos em algumas atividades e arrecadar fortunas por meio de outras. Temos o caso das redes sociais, que oferecem inscrições gratuitas para participação ilimitada em diversas atividades fornecidas por seus provedores. No entanto, é justamente o membro que se inscreve em algum desses portais que serve de "moeda" para o dono de um provedor tipo Facebook ou WhatsApp se enriquecer com comissões e outros benefícios.

No caso de Chico Xavier, a "gratuidade espírita" dos atendimentos, da suposta caridade, a aparente renúncia de vencimentos das vendas dos livros, tudo isso é compensado por outros capitais. O "espiritismo" brasileiro realiza palestras caríssimas para plateias ricas. Produtos como livros, filmes e documentários "espíritas" não são liberados para a gratuidade no momento de lançamento e só depois que eles deixam de serem novidades que eles são liberados para o acesso gratuito.

No caso dos livros de Chico Xavier, há o processo facultativo da comercialização de livros - desde os sebos até as grandes livrarias - e do acesso gratuito na Internet. E quem imagina que Chico Xavier fez voto de pobreza, passou a se alimentar só de luz e dava o que não tinha para alimentar os pobres, pode ter certeza de estar completamente iludido e ignorante das coisas.

Primeiro, porque Chico Xavier, em sua ambição de se tornar ídolo religioso, à maneira de Madre Teresa de Calcutá - outro ídolo religioso de valor bastante duvidoso - , usava uma retórica que sugeria "voto de pobreza" dentro dos clichês que mais parecem paródias da vida de Jesus.

Daí a falsa impressão de que Chico Xavier manteve a pobreza, quando na verdade ele não tocava em dinheiro. Mas era sustentado pela "Federação Espírita Brasileira" e pela "União Espírita Mineira", como se fosse um nobre da coroa britânica, descontados os contextos de suposta simplicidade que o "médium" deveria expressar em sua habilidosa encenação.

A suposta renúncia ao lucro também não o prescinde de ambições, porque Chico Xavier imaginava que, no além-túmulo, alcançaria as "fortunas permanentes no céu", mais "dignas" e "imperecíveis". Além disso, sua suposta humildade era um artifício para obter promoção pessoal, protagonismo social e, com isso, alimentar sua idolatria e tornar-se influente na sociedade.

Há quem diga que, desde os anos 1960, Chico Xavier tenha lido o famoso livro Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas (How to Win Friends and Influence People), de Dale Carnegie, até pelas "orientações" trazidas pelo livro, que coincidem com a conduta que o "médium" passou a ter e que contribuiu, nos anos 1970, para sua imagem supostamente luminosa. Conforme o Wikipedia, alguns desses itens foram assim identificados:

Técnicas Fundamentais em Lidar com as Pessoas

- Não critique, Não condene, não se queixe.
- Dê apreciação honesta e sincera.
- Desperte na outra pessoa um desejo ardente

Seis Formas de Fazer com que Gostem de Si

- Torne-se genuinamente interessado em outras pessoas
- Sorria
- Lembre-se que o nome de uma pessoa é, para essa pessoa, o som mais doce e importante em qualquer língua.
- Seja um bom ouvinte. Encoraje os outros a falarem deles próprios.
- Fale sobre assuntos de interesse da outra pessoa.
- Faça a outra pessoa sentir-se importante − e faça-o sinceramente.

Doze Formas de Atrair Pessoas à Sua Forma de Pensar

- A única forma de receber o melhor de um argumento é evita-lo.
- Mostre respeito pelas opiniões da outra pessoa. Nunca diga "Está Incorreto."
- Se está incorreto, admita-o rapidamente e com empatia.
- Comece de uma forma amigável.
- Inicie com perguntas a que a outra pessoa irá responder sim.
- Deixe a outra pessoa fazer uma grande parte do falar.
- Deixe a outra pessoa sentir que a ideia é dele ou dela.
- Tente honestamente ver as coisas do ponto de vista da outra pessoa.
- Seja compreensivo com as ideias e desejos da outra pessoa.
- Apele aos motivos mais nobres.
- Dramatize as suas ideias.
- Coloque um desafio.

Exemplos disso são vários em Chico Xavier, que trabalhou tais recomendações com base no livro de Dale Carnegie, que é um roteiro no qual pessoas consideradas desonestas, enganadoras e oportunistas seguiram para se tornarem muito populares e até mesmo blindados de qualquer encrenca ou problema na Justiça.

Vide, por exemplo, uma palestra na qual Chico Xavier comparou a desgraça humana a uma prova escolar, na qual a pessoa que mais suportar o sofrimento extremo tem condições, segundo o "médium", de obter notas altas na avaliação de Deus. É um típico apelo de auto-ajuda fundamentado na Teologia do Sofrimento, corrente medieval do Catolicismo que substituiu os postulados kardecianos no receituário moral do "nosso espiritismo".

A própria frase de Chico Xavier sobre os ateus, fingindo um respeito profundo ao ateísmo, o que ilude muitas pessoas dessa não-crença em Deus em se deixar levar pelo traiçoeiro "médium", é bastante ilustrativa, diante do episódio em que um indivíduo dizia não acreditar em Deus, e o "médium" reage, com astuta simpatia: "Não faz mal. Deus acredita em você".

Através desse livro, o oportunista pode influenciar as pessoas sem parecer autoritário, convencer os outros sem parecer impositivo, e pode até mesmo reagir com vitimismo diante de denúncias e escândalos. Cria-se uma indústria da "auto-ajuda", de livros produzidos às custas da infelicidade alheia, da qual muitos autores se enriquecem pedindo para sofredores terem paciência ante a pior desgraça e prefiram que seus inimigos sejam mais beneficiados do que eles.

Nesse mercado covarde de apologia da desgraça humana, na qual se pede uma estranha "paz" entre opressores perdoados em seus abusos e oprimidos resignados com sua ruína, Chico Xavier entra de fininho, "comendo quieto" como mineiro que foi, mas se recusando a se vincular aos exploradores literários da desgraça alheia.

Mas é justamente o roteiro de Dale Carnegie, espécie de "linha de montagem" para o autor de auto-ajuda, que "educou" Chico Xavier a personificar o falso sábio previsto, com antecedência de décadas, pela Codificação.

A partir de Dale Carnegie - cujo famoso livro teria sido indicado por Antônio Wantuil de Freitas, o "mentor terreno" do "médium" - , Chico Xavier passou a forjar frases com trocadilhos de ideias como "silêncio e voz", "fraqueza e força", seguindo também o método Muggeridge de forjar uma combinação de "santidade" e "sabedoria".

Daí a retórica engenhosa, que diz o tempo todo que "nada quer em troca", porque já recebe as recompensas por isso. A visibilidade, a popularidade cega e fanática, a blindagem dos homens da Lei e do Conhecimento, o silêncio da imprensa ante a episódios bastante negativos, e a reação, com vitimismo, quando eventualmente algum escândalo contra o "médium" ameaçar sua reputação.

E tudo isso foi muito habilidoso, e foi favorecido pelo monopólio da mídia corpoativa, da falta de visões que desmentissem muitas contradições. Chico Xavier era um oportunista à maneira de Luciano Huck hoje, e um seguidor da tendência da sociedade conservadora e dos privilegiados do dinheiro e da Fé em se promoverem com suposta caridade, feita mais para promover os "benfeitores" às custas do sofrimento do outro.

A confusão de considerar que essa "caridade" paliativa, ao mesmo tempo que "transforma vidas", "alivia a dor do sofrimento", se esquece da contradição dessas duas ideias, essencialmente opostas. As vidas só se transformam quando rompem radicalmente com os fatores de sofrimento. Isso Chico Xavier nunca realizou nem quis realizar. Por outro lado, pode-se "aliviar a dor" da pobreza sem deixar de ser pobre, mantendo as relações de dependência com o assistencialismo elitista representado pelas instituições religiosas, inclusive as "espíritas".

Portanto, devemos repensar a questão da "caridade", que parece muito simples porque as pessoas que defendem seus padrões dominantes são privilegiadas e vivem com significativo conforto. É fácil, sob tais condições, medir o valor da "caridade" pelo prestígio do suposto benfeitor. Os pobres e necessitados são só um detalhe e as almas que, ao mesmo tempo, glorificam Chico Xavier são as mesmas que costumam não olhar para os pobres, tomados de horror elitista.

Daí que inventam um ídolo "humanitário" para disfarçar suas neuroses antissociais. Até porque, no fundo, elegem um "símbolo de caridade" para evitar que os pobres se emancipem de verdade, em manifestações populares que causam horror e repugnância até a muitos "esquerdistas" que precisam ver em Chico Xavier um "símbolo de progressismo", para evitar que os verdadeiros progressistas ameacem as vidas confortáveis dessas elites paternalistas.