A indigesta decepção do "espiritismo" brasileiro


A IGREJA UNIVERSAL - DE EDIR MACEDO (D) - CHEGOU A DAR APOIO CRÍTICO ÀS FORÇAS PROGRESSISTAS, REPRESENTADAS PELO ENTÃO PRESIDENTE LUÍS INÁCIO LULA DA SILVA.

O "espiritismo" brasileiro chegou a aproveitar a pandemia para se vender como "salvação do Brasil" através da associação com a "data-limite" de Francisco Cândido Xavier - difundida, curiosamente, pelo mesmo artifício dos "robôs" de Jair Bolsonaro - , uma suposta profecia que já vem com prazo de validade vencido, que foi em 20 de julho de 2019.

No entanto, vemos que o "nosso espiritismo" está fazendo o papel, hoje, que as seitas evangélicas consideradas "neopentecostais", derivadas da veterana Igreja Nova Vida, fizeram nos anos 1990, quando ser "evangélico" combinava posturas de vitimismo e triunfalismo, se promovendo como "alternativa viável" para a espiritualização dos brasileiros.

A Igreja Universal do Reino de Deus, de Edir Macedo, mal havia adquirido o espólio da antiga Record, ancorada pela mais antiga emissora de televisão em atividade no Brasil, a TV Record de São Paulo. Ela e outras seitas, como a Igreja Internacional da Graça de Deus, de Romildo Ribeiro Soares (R. R. Soares), e a Assembleia de Deus, de Silas Malafaia, estavam em ascensão nos anos 1990 de forma a conquistar parcelas expressivas da juventude brasileira.

Embora com ideias bastante conservadoras, as seitas neopentecostais - que o anedotário popular já começa a apelidar de "neopenteques" - conseguiram uma aliança, provisória e crítica, com as forças progressistas representadas pelo Partido dos Trabalhadores (PT), quando Luís Inácio Lula da Silva buscou o apoio do chamado "baixo clero" da direita brasileira, aparentemente marginalizado pela direita mainstream representada pelos políticos do PSDB, denominados "tucanos".

Hoje os "espíritas" seguem o mesmo comportamento dos neopentecostais dos anos 1990 e o grande temor é aprofundar a decepção que se antecipa da doutrina de raiz roustanguista que finge fidelidade absoluta a Allan Kardec.

Do contrário que os neopentecostais, que ao menos deram apoio crítico às esquerdas, o "movimento espírita" nunca apoiou as forças progressistas. A suposta consideração dos "espíritas" às esquerdas engana os esquerdistas, mas consideração não é apoio.

Consideração é um ato de diplomacia, no qual pessoas divergentes podem, aparentemente, se dialogar em um presumido acordo. Mas isso não significa apoio. O "espiritismo" fala em "fraternidade", mas seu discurso de "acolher os divergentes como irmãos" soa tão falso e tendencioso quanto o PSDB chamar os petistas, hoje em dia, para integrar o movimento Estamos Juntos / Direitos Já, que nem de longe quer romper com Jair Bolsonaro, apenas pedindo que ele "respeite a Constituição de 1988".

ESPIRITISMO PROFUNDO

Temos na verdade dois "espiritismos" brasileiros. Um é a fachada, supostamente fiel ao ideário kardeciano, de verniz progressista, racional e altruísta, baseado mais em imagens e discursos superficiais - como se fossem releases publicitários - do que no conteúdo mais aprofundado. É uma imagem propagada para os mais leigos, que não percebem o lado sombrio dessa religião.

Conforme as análises em torno do moralismo conservador e punitivista do "espiritismo" brasileiro, voltados à aceitação do sofrimento humano e a tese dos reajustes morais, e pelo fato de Chico Xavier ter escolhido o padre jesuíta Manuel da Nóbrega, rebatizado Emmanuel, constata-se que o "espiritismo" brasileiro desviou-se do caminho que Allan Kardec traçou, preferindo ser uma repaginação do Catolicismo jesuíta, que prevaleceu no período colonial.

Sendo oriundo do Catolicismo português, trazido para o Brasil pelos missionários da Companhia de Jesus, intitulados jesuítas - das quais Nóbrega e José de Anchieta, radicalmente medievais, eram os maiores expoentes - , sua essência também era medieval, ainda aplicando, em pleno Século XVIII, práticas como a inquisição e as queimas em praça pública.

Um exemplo famoso foi o do escritor, ator e dramaturgo Antônio José da Silva, conhecido como "O Judeu", que viveu entre 1705 e 1739. Curiosamente, ele nasceu no Brasil, na atual cidade de São João de Meriti, na Baixada Fluminense, então distrito de Vila Iguaçu (Nova Iguaçu), e se radicou em Portugal. Ele foi queimado em praça pública, por ter sido herege e feito críticas, em sua arte, à Igreja Católica. Oficialmente, era a época considerada por historiadores como a Idade Moderna, supostamente superando o período trevoso da Idade Média.

As próprias origens do "espiritismo" brasileiro, cujas raízes remetem à preferência pelo misticismo igrejista e neocatólico de Jean-Baptiste Roustaing, o que influiu na formatação doutrinária que se reflete até hoje, estão muito mais próximos de uma repaginação do Catolicismo jesuíta, na contramão do cientificismo de Kardec, guiado pelo caminho aberto pelo Iluminismo francês.

Isso se deve porque as mudanças sofridas na Igreja Católica, na segunda metade do Século XIX, incomodaram os ortodoxos, que, por sua vez, se favoreceram da "novidade" do Espiritismo para embarcarem nessa tendência e regredi-la para padrões mais conservadores.

Segundo o sociólogo Jessé Souza, em vários de seus livros, é uma tendência, no Brasil, que novidades sempre sejam acolhidas parcialmente e ajustadas conforme padrões pré-modernos. Ou seja, tudo que é novo que surge no Brasil sempre tem que se condicionar com valores velhos. Deste modo, o Espiritismo só foi introduzido no Brasil sob as condições de, usando o pretexto das "tradições da religiosidade popular", se moldar conforme o Catolicismo medieval português.

CONFUSÕES DE CONCEITOS

Por sorte, o "jeitinho brasileiro" do "movimento espírita", que em primeiro momento tentou transformar Kardec num "discípulo (?!) de Roustaing", criou mecanismos para que o roustanguismo sobrevivesse até depois do autor de Os Quatro Evangelhos passar a ser malvisto como um deturpador doutrinário.

Com isso, a função de Chico Xavier em adaptar o roustanguismo à realidade brasileira foi um golpe de mestre. Embora Chico Xavier tivesse medo de assumir a influência de Roustaing em sua obra, essa influência foi muito forte, e suficiente para que, com o tempo, Roustaing possa ser "escondido" pela cúpula "espírita" e se fingisse uma "fidelidade maior" às bases espíritas originais.

Isso criou uma série de dissimulações que resultaram na "fase dúbia" do "movimento espírita" que, com o agravamento dos conflitos internos depois da aposentadoria e, anos depois, da morte do presidente da "Federação Espírita Brasileira", Antônio Wantuil de Freitas, prometeu recuperar as bases kardecianas sem, no entanto, romper com a deturpação roustanguista.

Nessa fase, José Herculano Pires, mais identificado com a teoria original kardeciana, denunciava os abusos dos dirigentes da FEB. Chico Xavier e Divaldo Franco tentaram se desvincular da cúpula da FEB, já que foi um dirigente da instituição, Luciano dos Anjos, denunciou que Divaldo plagiou Chico, o que fez estremecer a amizade entre os dois.

Ao se reconciliarem, Chico Xavier e Divaldo Franco, vendo também que as federações regionais tinham divergências com a FEB durante o mandato de Wantuil, se aproveitaram para adotar um distanciamento formal, não uma ruptura, com a instituição nacional.

Por outro lado, fingindo solidariedade aos "científicos", como Herculano Pires, os dois "médiuns" prometeram "recuperar as bases espíritas originais" e militar pelo "respeito rigoroso aos postulados espíritas". A promessa foi em vão: tanto Xavier quanto Franco permaneceram tão igrejistas quanto antes.

A dissimulação e a desinformação favoreceram o "espiritismo" brasileiro, que pôde assim fingir que "sempre foi fiel" a Kardec, com um não raro número de deturpadores exigindo "fidelidade doutrinária". Com muita teatralidade, os traidores da causa espírita e de crenças roustanguistas apelavam, dramaticamente, que "não devemos só entender Allan Kardec, mas vivê-lo, no dia a dia, não só na casa espírita, mas principalmente fora dela".

As pessoas não têm a menor noção dessa deturpação. Acham que o Espiritismo brasileiro é um terreno, se não de perfeccionismo, mas de simplicidade e despretensão. Só que a religião brasileira se dispõe de tantos conceitos nebulosos, vagos, entre a falsidade e a desinformação, que só podem causar confusão mental em seus seguidores e simpatizantes.

IDEALIZAÇÃO E PENSAMENTOS DESEJOSOS

As confusões podem ser obtidas sobretudo no âmbito da psicografia e da filantropia. As pessoas têm dificuldade em discernir se os espíritos usam o corpo do médium para escreverem ou ditam para o médium escrever. Tomam as duas ideias diferentes como se fossem a mesma coisa.

Na caridade, a confusão reside na ideia do "alívio do sofrimento" e da "transformação de vidas". Pode-se aliviar o sofrimento de um miserável e ele continuar na mesma. Na maioria das instituições "espíritas", são as mesmas famílias e os mesmos indivíduos que recebem, invariavelmente, donativos e até presentes, sem que no entanto rompessem com a sua situação de pobreza, que é apenas atenuada. Transformar vidas seria romper radicalmente com tudo isso, coisa que os "espíritas" simplesmente não fazem.

Mas a confusão segue quando se atribui a Chico Xavier mensagens trazidas pelos espíritos. Além de sabermos das irregularidades da obra "mediúnica", com tantos problemas relacionados a aspectos pessoais dos autores mortos alegados - como, no caso dos grandes escritores, a estranha e suspeita mediocridade das obras "espirituais" - , é também impossível de esconder a unicidade do pensamento de "André Luiz" e "Emmanuel" e a de Chico Xavier, ou a de "Joana de Angelis" e Divaldo Franco.

Se existem confusões aberrantes nesse sentido, imagine então a confusão e a falta de discernimento que ocorrem adiante, como acreditar que Chico Xavier seria "progressista" expressando as mesmas ideias que, na boca de um Jair Bolsonaro ou Paulo Guedes, soariam "vergonhosamente reacionárias".

Há desde atribuições falseadoras como atribuir que o que é ilógico na Terra possui sentido lógico no mundo espiritual. Pior, atribui-se "veracidade" ou "possível autenticidade" nas obras "mediúnicas" sem considerar a mediocridade das mesmas, o que resulta numa aberrante tese: a de que os grandes intelectuais da Terra se tornariam "confusos" e "sem personalidade" no além-túmulo.

Isso traz uma grande ilógica. Afinal, entende-se que, quando o espírito morre, suas faculdades mentais se tornam ampliadas, desfazendo o véu da vida material. No caso de considerarmos "autêntica" a obra "psicográfica" de Chico Xavier, teríamos que considerar o oposto, que seria o "acobertamento" do espírito desencarnado por um estranho e inexplicável véu.

Para piorar, a figura do médium já é deturpada, deixando de ser o intermediário para ser o "centro das atenções". Corrompendo o processo da Comunicação, que, neste caso, se dividiria em emissor (espírito), receptor (público) e canal (médium), o que vemos, a partir de Chico Xavier, é que o "médium" se tornou emissor da mensagem e o "espírito", um canal simbólico, quase um garoto-propaganda da suposta luminosidade do "psicógrafo" (ou "psicófono", "psicopictógrafo" etc).

Os "médiuns" acabam tornando-se os "sacerdotes" enquanto os palestrantes "espíritas" comuns - do nível de um Orson Peter Carrara ou mesmo de eventuais "médiuns" como João Carlos de Lucca - são considerados os "padres", dentro de uma missão igrejista de transmitir a "boa nova", como num arremedo grosseiro e antiquado de Catolicismo.

Alvo de idolatria, os "médiuns" são beneficiados pela idealização e pelo pensamento desejoso, do qual se permite relativizar seus piores erros, contrariando a recomendação kardeciana "Conheces todos os segredos de sua alma?".

Foi isto, por exemplo, que fez com que o gravíssimo ato de apoio de Chico Xavier à ditadura militar - ostensivo e convicto demais para ser "só uma estratégia" de "salvar a própria pele" - , reforçado pela condecoração da Escola Superior de Guerra (que só premiaria, naquele tempo de radicalismo repressivo, quem colaborasse com a ditadura), fosse risivelmente creditado à "santidade do médium", com base na ilusão de ver humanismo em quem igualmente acolhe oprimidos e opressores.

E tudo isso se dá diante da ilusão de "religião moderna" que o "espiritismo" brasileiro se apresenta ao grande público, apesar de tantos disparates. É assustador que tanta gente veja o "espiritismo" brasileiro como salvação para o país, dentro desse período de convulsões sociais, crises políticas graves e a tragédia da Covid-19.

Vendo o exemplo das seitas neopentecostais, devemos nos prevenir das armadilhas do "espiritismo" brasileiro. Há 25 anos, os neopentecostais também se venderam como "salvação" e prometiam equilíbrio espiritual e moral. Hoje, é sob a marquise "evangélica" que brasileiros cometem crimes e outros abusos, além do fato de que foi essa religião que propiciou o golpe político realizado em 2016 e a ascensão do bolsonarismo.

E o que dizer do "espiritismo" brasileiro, cujo projeto "Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho", que já lembra um lema bolsonarista, prenuncia uma fusão definitiva entre Estado e Religião, sugerindo uma reciclagem do Catolicismo medieval sob um suporte político do tipo Império Romano? Ninguém vai abrir o jogo e muitas tiranias se anunciam como fórmulas de salvação e até mesmo como supostos projetos humanitários. O problema é quando isso for posto em prática.

Daí que as pessoas não conseguem ainda se decepcionar com o "espiritismo" brasileiro, e, apesar das advertências - que vêm desde os tempos de Afonso Angeli Torteroli, no fim do século XIX, e segue até hoje com os alertas de Sérgio Aleixo e Dora Incontri, soldados solitários da defesa da Codificação - , torna-se indigesto considerar que Espiritismo, aqui no Brasil, é criminosamente deturpado.

O "espiritismo à brasileira" é anunciado quase que por narrativas fabulosas, trabalhadas até mesmo pela idealização e pelo pensamento desejoso, apesar da suposta condição de "racionalidade" que os "espíritas" carregam, em tese, da doutrina original, no entanto sempre amaldiçoando o cientificismo kardeciano e preferindo colocar a Fé acima da Razão. Mas surpresas terríveis podem aparecer por trás da bela fachada "espírita". Convém não se empolgar com a linda embalagem.