Aos que tentam relativizar a apologia ao sofrimento defendida por Chico Xavier

Ser "espírita", no Brasil é, antes de mais nada, arrumar desculpa para tudo. Desculpa para as decisões erradas, para os pontos de vista equivocados, para o fracasso de supostas profecias, para os problemas de estilo em "psicografias", para o caráter restrito na aparente caridade, para o moralismo retrógrado.
Neste caso, o moralismo retrógrado, temos a questão da Teologia do Sofrimento, corrente radical do Catolicismo da Idade Média. Para começo de conversa, os "espíritas" não assumem, nominalmente, essa corrente, cuja associação lhes soa dolorosa e vai contra a fachada "progressista" e "caridosa" que o "espiritismo à brasileira" apresenta para o grande público.
Pois bem, a Teologia do Sofrimento pode não estar, com nome e CNPJ, no cardápio que os "espíritas" apresentam no seu discurso. Mas está presente nas ideias trazidas por Francisco Cândido Xavier, de maneira explícita e surpreendentemente semelhante ao dos pregadores católicos que seguem essa corrente.
A apologia ao sofrimento humano, portanto, é defendida sob o pretexto de que suportar a própria desgraça, em silêncio e sem reclamar, encurtaria o "caminho para Deus". Sádico, Chico Xavier chegava a dizer que as pessoas teriam que aguentar o sofrimento em troca de "bênçãos futuras" que, pelas ideias do "médium", seriam "mais sofrimentos".
A "alegria em sofrer", esse masoquismo religioso que se torna um valor típico no moralismo punitivista religioso, é, no entanto, relativizada pelos "espíritas" através de uma frase que é muito comum: "Nós só estamos aqui de passagem".
Com isso, os "espíritas" tentam dar uma "lição de moral" para dizer que "é preciso" aguentar os piores sofrimentos - claro, não são eles que sofrem, é fácil pregar aos outros a resignação silenciosa da pior desgraça - , sob a desculpa de que "tudo passa" e "no além-túmulo a vida será melhor".
METÁFORA DA VIAGEM
Se "estamos aqui de passagem", então os "espíritas" demonstram, mais uma vez, estarem errados completamente com sua tese. Afinal, suponhamos que a encarnação, estimada em cerca de 80 anos, seja realmente como uma viagem de férias, quando uma pessoa conhece um novo lugar e nele permanece por um período provisório.
Ninguém vai querer que essa estadia seja a pior possível. Ninguém viaja para um lugar, ainda que seja para pesquisar, trabalhar ou fazer alguma tarefa difícil - mesmo em viagens de turismo e descanso há tarefas laboriosas como pesquisar centros históricos fazendo uma boa caminhada, ou escalar acessos difíceis para visitar certos edifícios e, ainda assim, ajudar outrem nessa dificuldade - , para ter uma pior experiência de vida.
Imagine alguém que, em viagem de férias, vai para um lugar passar uns dias e ser linchado, ver seu quarto de pousada pegar fogo, ser roubado por seu parceiro de viagem, ser assaltado e baleado à noite. Ninguém deseja isso, e seria melhor que tais infortúnios fossem evitados, não é mesmo?
Então, como exigir que a encarnação humana tenha que ser um rol de infortúnios e desgraças, surgidas, acumuladas e agravadas sem controle? E, ainda assim, os "espíritas" exigirem do sofredor em piores condições um sorriso de gratidão e uma alegria pelo prejuízo obtido?
Alegar que "estamos aqui de passagem" para justificar uma encarnação de sofrimentos pesados é um grave erro, até porque jogar fora uma encarnação inteira achando que a encarnação posterior oferecerá as mesmas condições de vida é uma imbecilidade.
Quando a encarnação é breve, a ideia é que dela se tirasse um melhor proveito, coisa que a overdose de desgraças não possibilita, pois estas até impedem que as pessoas pratiquem a caridade ou se evoluam de alguma forma.
Um prazo de 80 anos é um tempo precioso para ser perdido com infortúnios pesados. O moralismo "espírita" não percebe isso e seu moralismo punitivista acha que o melhor é "aguentar calado os piores sofrimentos", obtendo uma tripla crueldade:
1) Defender a desgraça alheia, desaconselhando o sofredor de reclamar da vida ruim;
2) Pedir que o sofredor fique em silêncio, até mesmo para rezar, e, de preferência, não gritar de dor;
3) Em certos casos, se aconselha ao sofredor que fique feliz com seu infortúnio e agradeça a Deus pela desgraça obtida.
A própria condição dos moralistas revela a hipocrisia desse moralismo que reproduz as ideias medievais da Teologia do Sofrimento, com surpreendente fidelidade, mas isso causa horror aos "espíritas" que não gostam de estar associados às correntes obscurantistas, por mais que os valores defendidos sejam rigorosamente os mesmos dessas teorias medievais.
Afinal, quem defende o sofrimento alheio não quer sofrer. São pessoas remediadas as que mais fazem apologia ao sofrimento alheio, o que revela uma falta de caridade e de humanismo ocultos, uma insensibilidade muito grande com a dor do outro, ao pedir para ele aceitar tudo em silêncio e, se possível, com alegria. É porque pimenta nos olhos dos outros lhes é refresco.