Brasil não estava preparado para a paranormalidade. E ainda não está



"Dá-se ouvidos a quem quer ouvir", disse Jesus de Nazaré em seu tempo. Allan Kardec corrobora com essa visão, que tem muito a ver com o preparo para certos fenômenos, e viu o quanto os fenômenos espíritas eram uma novidade recente e ainda em estudos, mesmo depois de 1869.

Mas se tratava da França, um país europeu que sofreu as transformações de ideias a partir do Iluminismo, com o avanço da Ciência e da Tecnologia, além de mudanças no âmbito do urbanismo, da Cultura e de outras descobertas e novidades, sejam criações locais, sejam introduções de novidades estrangeiras, como a Revolução Industrial britânica.

Estamos falando da França de 1857 a 1869. Embora tivesse passado por fases como o despotismo de Napoleão Bonaparte, a França viu inúmeros progressos acontecerem, chegando, nesta fase histórica, a um auge que foi conhecido como Bélle-Époque, ou Bela Época francesa, entre 1871 e 1914.

Isso é muito diferente do Brasil do século XIX, da República Velha e do começo da Era Vargas. O país continuava predominantemente agrário. As transformações culturais eram tímidas e, praticamente, restritas ao Modernismo em São Paulo e na então capital federal, o Rio de Janeiro.

Em 1930, Rio de Janeiro havia impulsionado seu urbanismo havia poucas décadas. O Centro carioca ainda tinha feições suburbanas, no entorno que hoje é a Avenida Presidente Vargas. Na mesma época, o Modernismo estava para completar uma década de realização da Semana de Arte Moderna, evento em que se começou a preocupação com a identidade cultural brasileira.

A República brasileira foi uma medida recente, através de um golpe realizado em 15 de novembro de 1889, quando as elites escravistas, indignadas com a falta de indenização a elas devido à Abolição, resolveram derrubar o Império e colocar um militar, por sinal monarquista, o marechal Deodoro da Fonseca, para presidir o novo sistema político. Era um atraso de 113 anos em relação à República dos EUA, inaugurada com a Independência com a Inglaterra, em 04 de julho de 1776.

As transformações ocorridas no Brasil de 1808 a 1889 eram incipientes e, em muitos aspectos,

PARANORMALIDADE JÁ ERA PROBLEMA E MISTÉRIO NO MUNDO DESENVOLVIDO

Lembramos de tudo isso porque o Brasil, com uma sociedade predominantemente agrária, provinciana, com sua urbanização incipiente, com uma mentalidade medieval predominando em quase todo o país.

Se a "consciência nacional" ainda era iniciante, os níveis de alfabetização, precários e inexistentes na maioria dos brasileiros, os direitos sociais ainda não haviam sido regulados em lei e muitas pessoas não tinham ideia sequer do que elas eram, como o Brasil de 1932 se tornaria o "paraíso da paranormalidade", como os seguidores de Francisco Cândido Xavier tanto falam hoje em dia?

Não existe lógica nisso, e o mundo desenvolvido, não só o Velho Mundo europeu mas os ascendentes Estados Unidos da América, já enfrentavam problemas no âmbito da paranormalidade. Na terra do Tio Sam, três episódios de fraudes eram conhecidos: as irmãs Fox, o ilusionismo circense de Phineas Taylor Barnum (ou P. T. Barnum, a quem se atribui a frase "Nasce um idiota por minuto") e as fraudes fotográficas com falsos fantasmas de William H. Mumler.

Os próprios fenômenos espíritas estudados pelo pedagogo Hippolyte Leon Denizard Rivail, que adotou o pseudônimo de Allan Kardec, eram ainda um caso controverso. Boa parte deles era, na verdade, espetáculos fraudulentos de "mesas girantes", que viraram divertimento para as elites francesas, através de consultas feitas à "tábua Ouija", com perguntas que faziam a festa de espíritos mistificadores, que influenciavam o ilusionismo supostamente paranormal de seus operadores.

Tudo isso era muito duvidoso no Velho Mundo e nos EUA, e não é no Brasil, ainda mais através de um caipira de uma cidade rural mineira socialmente apegada ao século XIX, que serão oferecidas respostas plenas para os problemas da paranormalidade. Não há um argumento que se sustente para atribuir ao Brasil uma "paranormalidade pioneira", com base em fundamentações e análises lógicas.

Atribui-se, oficialmente, às desconfianças sobre as fraudes literárias de Chico Xavier a questões que, em tese, seriam "resolvidas" com "estudos mais complexos" sobre paranormalidade. A ideia de que a individualidade se "extingue" no além-túmulo e os escritores "mudam de estilo", de um pessoal para o "universal", podem tranquilizar multidões, mas não possuem o menor pingo de fundamentação lógica.

Não será o Contrassenso, considerado aqui uma violação da Lógica e do Bom Senso, algo viável no mundo espiritual, como se faltar com a lógica fosse o mesmo que ser sobrenatural. O além-túmulo não pode ser o túmulo da Razão, não podemos criar um terreno para o absurdo e o confirmadamente aberrante e ilógico ser considerado "lógico" acima das compreensões terrenas.

BOM DEMAIS PARA SER VERDADE

A obra Parnaso de Além-Túmulo é uma coleção de problemas sérios e preocupantes, de tal forma que podemos concluir que se trata de uma obra fraudulenta, e, para piorar, essa constatação não é exclusiva de opositores que variam desde um racional Padre Quevedo até delirantes pastores evangélicos de tendência "neopentecostal".

Esses problemas são trazidos, sem querer, como que num disparo acidental, justamente por aqueles que se consideram simpáticos, embora, alguns, não-sectários, a Chico Xavier. Há uma sectária, Suely Caldas Schubert, que, publicando o livro Testemunhos de Chico Xavier, em 1981, publicou cartas que confirmam que não só as supostas psicografias do "médium" sofriam modificações editoriais como o próprio "psicógrafo" apoiava as fraudes e até se oferecia a colaborar com elas.

A acidental revelação foi ainda reforçada por uma tese de Ana Lorym Soares, historiadora fluminense, intitulada O Livro Como Missão: a Publicação de Textos Psicografados no Brasil dos Anos 1940 a 1960, de 2018, que dá mais detalhes sobre as fraudes, das quais participavam não só os dirigentes da "Federação Espírita Brasileira", com apoio certeiro e inescrupuloso de Chico Xavier, mas também familiares dos próprios dirigentes.

É um preocupante "fogo amigo", um dado preocupante que somente a desinformação das pessoas deixa passar e não se sensibiliza. Há quem tente relativizar e a própria Ana Lorym ignorou que estava com uma bomba em suas mãos. Ela pensou ser um trabalho "natural" de "viabilizar" as "psicografias" tornando as mensagens "espirituais" mais "acessíveis ao público comum". Quanta ingenuidade, ainda que por boa-fé!

Só no caso de Parnaso de Além-Túmulo, há a primeira estranheza: como os grandes poetas e escritores, já mortos, se reuniriam em torno de um mero funcionário público, pitoresco e caipira, mero beato católico (e dos mais ortodoxos)? A lógica cria narrativas agradáveis que, no âmbito da Fé, produzem até consenso, mas não se sustentam pela Razão nem pela Lógica.

Não existe atrativo algum, não há contexto, para que isso ocorresse. E, ainda mais, quando as obras "mediúnicas" são aquém do que os alegados autores mortos fizeram em vida. A alegação de que o caipira Chico Xavier teve uma "força irresistível" para atrair espíritos de grandes literatos é falsa, por mais que pareça comovente a muitos. O ditado "é bom demais para ser verdade" vem à tona, pois é totalmente impossível que isso tenha ocorrido da forma que ocorreu.

Para desespero dos "espíritas" brasileiros que, quando querem, são tão ou mais terraplanistas do que muitos bolsonaristas histéricos, o próprio Allan Kardec já trazia subsídios para desconfiar desse sensacionalismo de um caipira supostamente paranormal trazer, de uma só tacada, uma antologia creditada a diversos supostos autores espirituais.

Em várias passagens da literatura kardeciana o apelo sensacionalista de lançar, logo de cara, uma coleção de nomes ilustres em uma obra, para surpreender e atemorizar o público - "falar com os mortos" é uma boa carteirada para intimidar a humanidade - , é tratado como uma atitude traiçoeira, própria de espíritos inferiores, que se valem de nomes venerados para causar impressão a muitos incautos.

Em O Livro dos Médiuns, Capítulo 31- Dissertações Espíritas, há o exemplo de Jesus de Nazaré, nome evitado por Kardec na publicação de mensagens espirituais, até pelo risco de sensacionalismo que pode esconder o caráter enganador de muitas mensagens. Vejamos a resposta do mestre lionês à dissertação espírita de número IX:

"Observação- Esta comunicação, obtida por um dos melhores médiuns da Sociedade Espírita de Paris, foi assinada por um nome que o respeito só nos permitiria reproduzir com absoluta reserva, tão grande seria a insigne graça de sua autenticidade, e porque já muito se abusou desse nome em comunicações evidentemente apócrifas. Esse nome é o de Jesus de Nazaré. Não duvidamos absolutamente que ele possa manifestar-se. Mas se os Espíritos verdadeiramente superiores só o fazem em circunstância excepcionais, a razão nos impede aceitar que o Espírito puro por excelência responda a qualquer apelo. Haveria pelo menos profanação em lhe atribuirmos uma linguagem indigna dele.

É por essas considerações que temos sempre evitado publicar tudo o que traz o seu nome. Acreditamos que nunca seríamos demasiado cuidadosos no tocante a publicações dessa espécie, que só têm autenticidade para o amor-próprio dos interessados e cujo menor inconveniente é o de fornecer armas aos adversários do Espiritismo.

Como temos dito, quanto mais elevados os Espíritos mais desconfiança se deve ter da assinatura dos seus nomes. Seria necessária uma grande dose de orgulho para alguém se vangloriar de ter o privilégio de suas comunicações, julgando-se digno de conversar com ele como se fosse com os seus iguais. Na comunicação acima constatamos apenas a incontestável superioridade da linguagem e dos pensamentos, deixando a cada um o cuidado de apreciar se aquele de quem ela traz o nome a rejeitaria ou não".

O mistificador Chico Xavier contradiz quando fala que "o telefone só toca do lado de lá". Além dessa ideia subentender que "os espíritos topam qualquer parada", há também a falta de vigilância quanto às mensagens espirituais que de repente chegam com a autoproclamação de um nome de grande reputação ou popularidade. Isso já é contrário a Kardec, que recomenda que os encarnados é que procurem solicitar, sem abusos, a mensagem de um espírito do além, para permitir a identificação do espírito que foi chamado.

Além do mais, é ilógico a empolgação de "espíritos literatos" do nível de Olavo Bilac, Augusto dos Anjos, Castro Alves, Antero de Quental e até Auta de Souza em recorrerem a um caipira anônimo e controverso, acusado de sofrer problemas mentais, e de aparência repulsiva e pitoresca, para transmitir mensagens. Admitir que eles agiram assim é dar-lhes atestado de idiotas.

Não há, portanto, o menor pingo de lógica em dar uma chance, por menor que seja, para legitimar a obra "psicográfica" de Chico Xavier que carrega os nomes de famosos e ilustres. Toda argumentação esbarra em algum questionamento bastante severo. Não somos nós que dissemos, é Allan Kardec, o qual sempre falou que "toda ideia que estiver em desacordo com a Razão e o Bom Senso, deve ser rejeitada corajosamente".

A constatação de invalidade das obras literárias de Chico Xavier pode ser feita sem precisar esperar as avaliações em torno da vida espiritual ou dos contatos entre médium e espíritos. A qualidade literária e a honestidade intelectual se tornam baixas, por divergirem de muitos aspectos pessoais associados aos autores creditados.

Além disso, até hoje as questões da paranormalidade não são estudadas. Quem as vê da maneira enviesada que favorece Chico Xavier, simplesmente corrompe as compreensões sobre os fenômenos paranormais, deixando-os sob o prisma da especulação e, até mesmo, da mentira. E isso complica quem realmente quer estudar o assunto da paranormalidade, porque este não tem apoio e tem que sofrer a concorrência acirrada e até predatória dos farsantes e dos oportunistas.

Não bastasse a qualidade das "psicografias", sempre aquém do que nos deixaram os autores creditados, há o caráter oportunista de criar sensacionalismo, confusão e intimidação da opinião pública, com os usos dos nomes ilustres e grandiosos nas supostas obras espirituais. Estudando Kardec, se criam condições, com argumentos lógicos, para rejeitar corajosamente a obra literária de Chico Xavier, que seria reprovada em qualquer tipo de avaliação mais criteriosa.