Em tempos de 'fake news', pioneirismo de Chico Xavier deveria chocar a todos

EM FOTO DE JEAN MANZON PARA O CRUZEIRO, CHICO XAVIER APARECE LENDO E COPIANDO LIVROS EM 1944.

Fala-se muito na gravidade das fake news como forma de persuadir a opinião pública e provocar vitórias de causas que dificilmente se triunfariam em condições normais. A vitória eleitoral de Jair Bolsonaro, por exemplo, só foi possível porque um sistema articulado de fake news, coordenado pelo empresário estadunidense Steve Bannon, dono da Cambridge Analytica, permitiu propagar mentiras a favor do ex-capitão e contra qualquer um de seus opositores na corrida eleitoral de 2018.

Hoje temos inquéritos sobre fake news rolando no Legislativo e no Judiciário, seja por comissões parlamentares de inquéritos, as chamadas "CPIs", seja por atuações como a do ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, que determinou, dias atrás, à Policial Federal fazer uma operação de busca e apreensão de material de envolvidos na produção de notícias falsas, envolvendo desde a ativista de extrema-direita Sara Winter até o empresário Luciano Hang.

E o que a "bondosa" figura de Francisco Cândido Xavier tem a ver com tudo isso? Ele é o "pai" dos fakes. Ele foi um dos pioneiros no uso de "fakes do bem" para causar impressão nas pessoas ingênuas e fazê-las serem dominadas e intimidadas, provocando um medo da sociedade brasileira em questionar aquele que (supostamente) "fala com os mortos".

Pode ser desagradável para os brasileiros hoje, acostumados com uma narrativa, inspirada em Malcolm Muggeridge (praticamente um desconhecido no Brasil), de suposto "símbolo de caridade" atribuído a Chico Xavier, mas a realidade é que ele pode ser considerado um dos pioneiros da literatura fake que propiciaram uma "tradição" de aceitação de fake news no imaginário brasileiro.

Em primeiro lugar, não há lógica alguma que o Brasil tenha sido um terreno fértil para atividades paranormais. O Brasil de 1932, ano de Parnaso de Além-Túmulo, era predominantemente rural, sua industrialização era iniciante e precária, a urbanização se limitava a cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, e a consciência de nosso legado cultural, importante para a modernização do país, se deu a não mais do que dez anos antes.

Um Brasil ainda subdesenvolvido e predominantemente rural, provinciano em mentalidade, não tinha condições para desenvolver uma paranormalidade, pois se os brasileiros mal tinham consciência do que eles eram e mal estabeleciam contatos com o mundo, não se espera que eles estivessem prontos para ter contato com o além-túmulo, se já no mundo desenvolvido esse já era um tema problemático.

Os EUA, nessa época, mal conseguiram se recuperar dos escândalos fraudulentos do fotógrafo William H. Mumler, cujas montagens forjavam supostos espíritos aparecendo ao lado de pessoas vivas na época. As fraudes eram tais que mesmo pessoas então vivas também viravam "fantasmas" ao lado de indivíduos viventes.

O Brasil, que mal havia deixado a monarquia havia quatro décadas e foi o último país do mundo a abolir oficialmente a escravidão - que, no entanto, sempre continuou, oculta, nos rincões interioranos do país, como continua até hoje - , não tinha condição alguma para acolher a paranormalidade, e, ainda mais, com um apelo sensacionalista de um primeiro livro "psicográfico" atribuído a uma multidão de poetas e escritores já falecidos.

É como diz o ditado: "Isso é bom demais para ser verdade". Não são as paixões religiosas que possam dar crédito a um livro desses, com esse apelo muito estranho. Além disso, as pessoas fazem uma leitura de um mito de Chico Xavier montado nos anos 1970 para interpretar, com tal abordagem, um livro muito duvidoso dos anos 1930 e, com isso, demonizar a desconfiança natural e justa dos especialistas em literatura, tratados como supostos "Pôncio Pilatos".

"Quem tiver ouvidos, que ouça", recomendava Jesus de Nazaré. Seguindo essa máxima, sabemos que o Brasil não tinha "ouvidos" para "ouvir as vozes dos mortos", e os mortos não tinham quem lhes servisse de porta-voz. Deixemos de sentimentalismos, porque não há como não reconhecer que Parnaso de Além-Túmulo seja uma grande e vergonhosa fraude, que antecipou outras fraudes literárias similares, como a que atingiu o nome e a memória de Humberto de Campos.

O que surpreende a quem é informado é que as fraudes de Chico Xavier são constatadas pela lógica dos fatos, por métodos recomendados pela própria Codificação, que sempre aconselham que se questione severamente o que escapa da Lógica e da Razão.

Dois motivos, além do fato do Brasil ser "muito virgem ainda" para entender o assunto da paranormalidade, já controverso no chamado "mundo desenvolvido", revelam o quanto fraudulenta sempre foi a obra literária do "bondoso médium":

1) As obras atribuídas aos "autores espirituais", apesar de imitarem, na aparência, sua estrutura poética ou prosaica, estavam muito aquém da qualidade que tais nomes apresentaram na obra produzida em vida. Os estilos pessoais de nomes como Olavo Bilac e Auta de Souza "desapareciam", enquanto os de Castro Alves, Augusto dos Anjos e Cruz e Souza soam paródicos.

2) Segundo, acidentalmente, revelou a historiadora Ana Lorym Soares a partir das cartas publicadas em Testemunhos de Chico Xavier, de Suely Caldas Schubert, a "obra psicográfica" de Chico Xavier não só era uma fraude, como tinha a colaboração de dirigentes da "Federação Espírita Brasileira", desfazendo o mito de que o "médium" fazia tudo sozinho.

Esse mito da "psicografia solitária", ou seja, que só tinha a ajuda "coletiva" dos "amigos espirituais", serviu de "carteirada dupla" para a FEB espalhar uma falsa dicotomia: "Se Chico Xavier fazia fraudes, ele era sofisticado; se não fazia, ele era mensageiro dos mais brilhantes escritores da nossa língua", uma manobra que vai contra os ensinamentos kardecianos, que sempre alertou para o perigo de quem usa nomes de falecidos ilustres para impressionar e manipular a opinião pública.

BRASILEIROS LEEM PARA RELAXAR, NÃO PARA OBTER O SABER, DO QUAL FOGEM

Por sorte, as pessoas não têm um hábito adequado de leitura. A maioria das obras lidas é analgésica, os leitores fogem do verdadeiro Saber como o diabo foge da cruz. A leitura é apenas vista como um entretenimento superficial, meramente relaxante e que só pode transmitir ideias agradáveis, que mantenham as pessoas na zona de conforto cognitiva que não ofereça ameaça às suas convicções e crenças pessoais.

Por isso mesmo, a obra literária de Chico Xavier não só é deixada passar pelo mercado literário como fez a FEB liderar um poderoso e perigoso lobby de editoras, a ponto de observarmos que, em toda feira literária, sempre está lá o "Vaticano espírita" com sua prepotência. A realidade que arrume um jeito para aceitar os fakes literários que são lançados impunemente pela FEB.

Daí a manobra, muitíssimo estranha, de evitar que as obras originais de Humberto de Campos estivessem acessíveis ao grande público. Se estiverem, derruba a "psicografia" que circula usando o seu nome ou do pseudônimo, inventado pela FEB, de "Irmão X". Isso porque, se for ler a obra original do autor maranhense, as pessoas iriam conhecer as diferenças profundas com a obra "mediúnica".

É por isso que vemos que Chico Xavier nunca quis "psicografar" Machado de Assis, porque isso daria margem a desconfianças mais escancaradas. O caso Humberto de Campos já lhe jogou no banco dos réus, e, por pouco, Chico Xavier foi salvo pela impunidade. O prestígio religioso é um dos critérios de privilégio para determinadas pessoas não serem punidas pela Justiça.

E se as "psicografias" de Chico Xavier eram modificadas por terceiros, com os "diversos estilos literários" moldados pelos dirigentes da FEB e "confeiteiros" da palavra, como Manuel Quintão e Luís da Costa Porto Carreiro Neto, isso não quer dizer que o "médium" se situa em posição de vítima.

Muito pelo contrário. Chico Xavier, que era cúmplice de fraudes de materialização, era apoiador ferrenho da ditadura militar e ainda blindou o "médium" goiano João de Deus que, acusado de crimes, foi "acobertado" por uma oferta de "casa espírita" - a Casa Dom Inácio de Loyola é um "presente" do "médium" mineiro - , também apoiou essas modificações, que atingiam até mesmo obras já publicadas antes, e se ofereceu até para contribuir com a farsa.

Isso deveria ser chocante, se o nosso Brasil fosse menos ingênuo e não medisse o valor de uma única pessoa com base na fantasia e no pensamento desejoso. Fatos realistas e confirmados - como as "assinaturas" das "cartas mediúnicas" de mortos comuns que tinham a caligrafia de Chico Xavier e não a dos "espíritos" - ainda insistem em ser relativizados e minimizados, como se o "médium" fosse isento de culpa, o que não é verdade.

Chico Xavier cometeu erros gravíssimos e deve ser responsabilizado por isso. Mas aí chegam os "bolsomínions do bem" para fazer dramatização vitimista, dizendo, com discurso irônico e paranoico: "Culpem, criminalizem Chico Xavier, demonizem esse homem de bem que só sabe consolar as pessoas, dar o pão ao faminto, a roupa ao descamisado, a casa ao desabrigado", evocando a suposta caridade da qual nunca teve provas e, mesmo assim, é tida como "indiscutível", mesmo não sendo mais do que Assistencialismo barato nos padrões de Luciano Huck.

A obsessão em torno de Chico Xavier é bastante doentia, e ele é o único que é monitorado pelo "reino da Fantasia". É a "fada-madrinha" ou "princesa da Disney" de adultos e idosos, trazendo, para a compreensão adulta, a teimosia infantil de brigar permanentemente com os fatos, com a realidade e com a lógica, porque ninguém quer ver Chico Xavier revelado em aspectos negativos. Mesmo quem admite que o "médium" era "imperfeito" sofre dessas terríveis neuroses.

A adoração a Chico Xavier é uma perigosa obsessão que tenta resistir a tudo e a todos, fazendo com que Chico Xavier soe um "dono da verdade", sendo colocado, por seus seguidores de diversos níveis, como alguém que esteja acima da Realidade, da Lógica e da Razão. Para defender Chico Xavier, vale até romper com os ensinamentos kardecianos.