O que dizer do apoio de Chico Xavier à ditadura militar? É que isso é mais grave do que se pensa

Não devemos menosprezar aspectos sombrios de quem quer que seja, se os atos neste sentido forem comprovados. Pode ser o maior ídolo, como o cantor Roberto Carlos ou o apresentador Sílvio Santos, ou o jogador de futebol Pelé. Devemos lembrar de quantos ídolos populares são ou foram figuras bastante conservadoras.
Se já temos a revelação de que o escritor Monteiro Lobato era simpatizante da seita nazista estadunidense Klu Klux Klan, por que as pessoas têm que ficar assustadas com Francisco Cândido Xavier, o Chico Xavier, defendendo a ditadura militar e o AI-5?
Seu conservadorismo é explícito. Sua aparência cafona já sugeria isso, mas as raízes sociais e sua formação pessoal confirmam seu conservadorismo. O interior de Minas Gerais, entre 1910 e 1932 (nascimento de Chico Xavier e início da suposta psicografia), ainda mantinha valores sociais do século XIX, que já eram heranças da Idade Média.
Não havia como dizer que Chico Xavier era moderno. Até seu apreço pela Ufologia seguia padrões anacrônicos dos anos 1930-1940. Como é que ele foi blindado de tal forma que é considerado por muitos como "dono de nosso futuro"? Ele era tão antiquado que seu primeiro livro "psicográfico" tinha como título "Parnaso", relacionado a um movimento literário já ultrapassado, embora o "grosso' de seu conteúdo inclua em maioria supostos autores românticos e simbolistas.
Devemos abandonar o pensamento desejoso. De repente tivemos nossas mentes manipuladas durante anos e um "médium" que, na verdade, era um reacionário e realizou obras de literatura fake - que claramente fugiam de aspectos pessoais associados a supostos autores espirituais - é relembrado ao sabor das fantasias de qualquer um, que podem variar, desde que sejam sempre agradáveis.
Não se pode pensar assim. A visão realista mostra um Chico Xavier mais deplorável do que os lindos sonhos dourados de seus seguidores insistem em abordar. Não podemos abrir mão da Razão e do Bom Senso e usar a Fé acima da Razão só para proteger um ídolo religioso e justificar a idolatria, agora cada vez mais envergonhada, rebaixada para uma "admiração simples", que não passa de um fanatismo muito mal disfarçado, como um objeto estranho guardado no armário.
Allan Kardec reprovava que se colocasse a Fé acima da Razão. As retóricas em torno da falácia "temos que ouvir a voz do coração" são hipócritas, embora agradáveis. "Vozes" e "olhares" de um "coração" que é sobrecarregado, porque a ele se atribuem, simbolicamente, funções de fala, de visão e de raciocínio, deixando os olhos cegos, o cérebro inativo e a laringe, de onde saem os sons vocais, inoperante, ainda mais em momentos de sofrimento extremo, quando Chico Xavier recomenda o silêncio e a aceitação sem queixumes.
Uma Fé que se acha com mais razão do que a Razão é leviana, prepotente e arrogante. A sobrecarga simbólica do coração como um órgão que "vê", "raciocina" e "fala" só tem sentido na imaginação dos poetas, não pode ser entendido em compreensões onde se exige um mínimo de racionalidade. Isso dá o tom do caráter leviano dos chiquistas, não muito diferentes dos histéricos bolsonaristas.
DITADURA MILITAR FOI MARCADA POR VIOLAÇÕES DOS DIREITOS HUMANOS
Não faz sentido relativizar o apoio que Chico Xavier deu à ditadura militar. Foi um ato gravíssimo e que o coloca em situação mais grave até diante de "espíritas de direita", como Divaldo Franco e Carlos Vereza, que hoje são depreciados por setores do "movimento espírita". Perto do reacionarismo de Chico Xavier, o de Carlos Vereza parece um libertário bolivarianismo popular.
Primeiro, Chico Xavier sabia do risco de expor seus comentários negativos contra os movimentos de camponeses, operários e sem-teto, dirigindo-se a uma audiência gigantesca, já naquele 1971, e que depois se refletiria com a tecnologia da Internet. Milhões de pessoas viram esse depoimento, que, se fosse hoje, daria no chamado "cancelamento" das redes sociais, ou seja, "fuga" de seguidores, redução de "curtidas" ("likes") e aumento de "não-curtidas" ("dislikes").
Relativizar só faz bem, momentaneamente, para o pensamento desejoso das pessoas que querem evitar, no primeiro instante, a decepção com algum ídolo. Mas a realidade sempre prega peças e a decepção, que é afastada por desculpas imaginárias, volta depois com mais força, quando as circunstâncias se tornam ainda mais rígidas.
Em primeiro lugar, Chico Xavier apoiou com gosto a ditadura militar. Dizia para orarmos pelos militares, que estavam fazendo do Brasil um "reino de amor" (!). Entre os militares, se inclui o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos mais sanguinários e impiedosos torturadores e ídolo de Jair Bolsonaro. Pelo pacote, Chico Xavier incluiu Brilhante Ustra entre os "missionários" que estavam construindo a "Pátria do Evangelho".
Essas são coisas que o raciocínio lógico, combinado com a verdade histórica, trazem e realmente isso pode ser desagradável para muitos, mas a realidade é inviolável. Fica até vergonhoso enchermos de argumentos para brigar com os fatos, como muitos internautas considerados "isentões" e que se tornaram grandes vergonhas nas redes sociais, pela mania de argumentação para defender coisas sem lógica.
APOIO CONVICTO E OSTENSIVO
Vamos parar para pensar sobre o apoio de Chico Xavier à ditadura militar. Examinemos os seguintes itens:
1) Seu apoio foi ostensivo demais para ser uma "estratégia" de obter alguma vantagem ou proteção, ou alguma garantia de sobrevivência. Isso quer dizer que essa ostensiva campanha revela que Chico Xavier se identificava com o projeto político dos militares, a ponto de definir o AI-5 como um "mal necessário";
2) Chico Xavier, além de expor para milhões de brasileiros que apoiava a ditadura militar - fato subestimado hoje em dia, mas bastante explícito em seu tempo - , foi homenageado pela Escola Superior de Guerra, o "cérebro" da ditadura militar, o que diz muito sobre a postura reacionária do "bondoso médium".
Lembremos o seguinte:
1) A ditadura militar foi um regime reivindicado por forças civis e militares, a partir de um movimento religioso, a Marcha da Família Unida com Deus pela Liberdade, de 1964, que forçou a opinião pública a exigir a derrubada de João Goulart;
2) Segundo o biógrafo de Jango, historiador Jorge Ferreira, participavam da manifestação várias religiões, incluindo "kardecistas", o que indica o apoio tanto da "Federação Espírita Brasileira" e de Chico Xavier;
3) Os motivos da ditadura militar envolvem a defesa de valores moralistas, calcados na meritocracia e no moralismo religioso e hierárquico, além dos interesses empresariais que são sempre prejudicados por projetos esquerdistas como o governo João Goulart;
4) No programa Pinga Fogo, da TV Tupi, em 1971, Chico Xavier manteve a sua aversão por Jango como se ainda estivesse em 1964. Uma visão golpista, diga-se de passagem. A título de comparação, em 1971 o ex-governador da Guanabara, Carlos Lacerda, e o ativista católico Alceu Amoroso Lima, que também pediram o golpe militar, já estavam na oposição à ditadura;
5) Enquanto Chico Xavier dizia que os militares "construíam um reino de amor" para o Brasil, note-se que, nos bastidores da ditadura, pessoas eram presas, torturadas e mortas, não só por atividades consideradas "subversivas", mas até mesmo por acusações infundadas. Um vizinho poderia entregar um desafeto ao DOI-CODI, apenas por pequenas animosidades.
6) Pois esse "reino de amor" também era construído às custas de técnicas de torturas das mais perversas, que envolviam de enforcamento a choque elétrico ou mesmo estupros de presas políticas e torturas em seus órgãos genitais, que eram sadicamente apresentados em seminários patrocinados pelos EUA e pela Escola Superior de Guerra, visando o combate rigoroso à "subversão esquerdista".
Além disso, lembremos. Os anos de 1971 e 1972 eram épocas de radicalismo na repressão ditatorial. Em 1971, Carlos Lamarca, líder guerrilheiro, e Rubens Paiva, deputado federal, estavam entre os mortos da repressão ditatorial. Cabo Anselmo havia deixado de fingir esquerdismo, se revelando delator de colegas de militância. Em 1972, as Forças Armadas começavam a perseguir e dizimar os guerrilheiros do Araguaia, no Centro-Oeste brasileiro.
A Censura Federal agia com todo vapor. Pressionado, o periódico O Pasquim começava a suavizar seu conteúdo ousado que, frequentemente, fazia críticas jocosas à ditadura militar. A juventude que não queria ser presa pela ditadura se refugiou nas drogas e nos alucinógenos, aproveitando a influência do movimento hippie, e iniciando a fase do "desbunde".
Notemos um período de polarização e radicalização da ditadura militar. Encaixando a cerimônia da Escola Superior de Guerra em homenagem a Chico Xavier, devemos entender que o "médium" foi, sim, um colaborador da ditadura militar porque só sob essa condição a referida instituição militar concederia qualquer tipo de homenagem, pelo próprio contexto de radicalização da ditadura.
Não há como escapar disso, embora as pessoas hoje, com visões comparáveis ao terraplanismo mais obsessivo dos bolsonaristas - esquecemos que, décadas antes das fake news de Jair Bolsonaro, tivemos os "fakes do bem" de Chico Xavier - , tentem argumentar de maneira fantasiosa e relativista, como se o "médium" fosse uma "fada-madrinha" de gente grande, que, por isso, acredita que "fadas-madrinhas" não se aliam a "bruxas más".
Essas pessoas, os chiquistas - não diferentes dos bolsonaristas quanto ao seu desprezo à Lógica e o Bom Senso, apesar de serem mais dissimulados que os ditos "bolsomínions" - defendem Chico Xavier usando como desculpa a "caridade".
Em outras palavras, usa-se uma "caridade" com padrões fajutos de Luciano Huck para blindar Chico Xavier e as pessoas repetem como papagaios essa desculpa, até sem perceber. Mesmo muitos dos críticos de Chico Xavier falam de sua "indiscutível caridade" sem ter a menor noção do que estão falando, e sem qualquer fundamentação que possa sustentar suas teses.
Até mesmo um "exército" de "testemunhas", que "conviveram intimamente" com Chico Xavier, escrevem livros nos quais há muita lorota, muita mentira, além de verdadeiras tolices que são narradas como "fatos sublimes", verdadeiras "estórias de pescador" das quais não se tem certeza que realmente aconteceu.
Como filantropo, Chico Xavier foi o Luciano Huck do seu tempo, e isso é preciso ser alertado. A "caridade" de Chico Xavier se limitou a meros atos assistencialistas nas quais o protagonismo do "médium" e sua promoção pessoal se colocam acima até mesmo do atendimento aos mais necessitados. Afinal, se a "caridade" de Chico Xavier tivesse realmente funcionado, o Brasil teria evitado sofrer as crises violentas dos últimos tempos.
O apoio de Chico Xavier à ditadura militar derruba sua imagem de "caridoso", não bastasse suas ideias que fazem apologia à desgraça alheia. São dois pontos negativos que pesam mais do que a filantropia huckiana antecipada pelo "médium", uma pseudo-caridade espetacularizada, que promove adoração sem realizar progressos de verdade, se limitando a "aliviar a dor" sem "oferecer a cura" para a pobreza humana.
Devemos parar de paixões religiosas. Nos decepcionamos com tanta gente que recebia nosso apreço mais apaixonado. Desde a escola primária, quando se aprendia a cultuar falsos heróis, somos induzidos a idolatrar quem não merecia um milésimo de nossa admiração.
Ver que os brasileiros têm dificuldade de romper com Chico Xavier é uma coisa assustadora, preocupante, demonstrando sentimentos de apego extremo e fascinação obsessiva das mais perigosas. E isso é ruim, mas justifica o fato de que os chiquistas, sejam os mais abertamente beatos ou os mais distanciados "isentões", sempre reagem com ódio quando são contrariados.
E não adianta dizer que Chico Xavier era "imperfeito" ou "endividado", seus erros foram muito piores para tal classificação.