Em tempos de combate às fake news, o caso Chico Xavier deveria causar perplexidade


A cegueira emocional das paixões religiosas faz com que um dos mais preocupantes casos de literatura fake sejam tolerados. O caso de Francisco Cândido Xavier, popularmente conhecido como Chico Xavier, é um caso dos mais aberrantes, além de ter sido uma das mais longas carreiras de produção de textos fake, tendo durado cerca de 65 anos.

Iludidos com a reputação de Chico Xavier construída pelas conveniências, seja pelas manobras ambiciosas do presidente da "Federação Espírita Brasileira", Antônio Wantuil de Freitas, que atuava como um "empresário" e parceiro do "médium" nas fraudes psicográficas literárias, as pessoas ignoram que mesmo palavras como "fraternidade", "irmãos", "Jesus Cristo", "paz" e "perdão" estão muito longe de garantir alguma veracidade, se é que são capazes de garantir.

Ultimamente ações diversas, que variam desde as iniciativas jurídicas do Supremo Tribunal Federal e do Ministério Público Federal até mesmo medidas tomadas por plataformas digitais como o Facebook no combate às fake news, chamam a atenção de como usar obras falsas é preocupante no que diz respeito à transmissão de mentiras, calúnias e até mesmo a usurpação de nomes alheios.

A obra de Chico Xavier tem esse aspecto bastante macabro, tanto que ele mesmo acolheu duas obras fake alheias: uma a Epístola Lentuli, datada do Século XIII ou XIV, da qual se menciona um suposto senador romano chamado Públio Lentulus que não corresponde aos registros históricos do Império Romano.

Outra obra foi um texto atribuído ao filósofo Sócrates publicado nos livros A Course in Citizenship, de Ella Lyman Cabot, datado de 1914, e The Children's Story Garden, de 1920, publicado pelo Committee of the Philadelphia Yearly Meeting of Friends, um volume que foi organizado por Anna Petit Broomell e outras autoras.

Neste caso, é narrada uma parábola intitulada "Os três crivos", que Chico Xavier botou na conta de Irmão X (que o "meio espírita" continua considerando ter sido "o espírito Humberto de Campos", e que teria sido plagiado, provavelmente, de The Children's Story Garden, em possível tradução brasileira, hoje fora de catálogo. O capítulo original se intitulava "As três peneiras" e os dois textos são comparados nesta postagem do blog Intruso Espírita.

O plágio de Xavier se deu para o livro Aulas da Vida, supostamente de vários autores espirituais e lançado em 1981, o que mostra que, aos 71 anos, o "médium" não "aprendeu a lição", como seus partidários que admitem que ele teria feito plágios consideram. Sabemos que o gênio leviano de Chico Xavier se deu até o fim, pois, aos 83 anos, ele havia presenteado o "médium" goiano João de Deus com uma "casa espírita" para abafar as acusações de crimes hoje conhecidos.

O plágio de um texto "sobre Sócrates" teria sido uma "dívida paga" ao jornalista João de Scamtimburgo que, no programa Pinga Fogo da TV Tupi, em 1971, perguntou se Chico Xavier era incapaz de "psicografar" filósofos. Uma mensagem atribuída a Emmanuel tentou argumentar que esse não era o propósito do "médium".

No texto, nota-se que Chico Xavier, mencionando os "crivos" da "verdade, bondade e utilidade", levanta mais uma vez a bandeira da Teologia do Sofrimento, com o suposto Sócrates sendo alertado por um interlocutor de um problema grave, aparentemente um rumor de algo desagradável.

Nota-se que Chico Xavier não faz diferença entre senso crítico e maledicência, e sua rejeição ao ato de reclamar da vida e mencionar problemas é feito em causa própria. Acusado de fraudes literárias - confirmadas até por "fogos amigos" de simpatizantes como Suely Caldas Schubert e Nedyr Mendes da Rocha - , Chico Xavier sabia que era prejudicado pelo senso crítico e pelas acusações, daí que sempre rejeitou as queixas, os questionamentos e até mesmo o raciocínio lógico kardeciano.

Quanto à Epístola Lentuli, extraída de alguma das enciclopédias publicadas até 1939 e disponíveis na Biblioteca Nacional, há muitos equívocos e contradições a respeito do suposto Publius Lentulus, nome que existiu nos registros históricos, mas em condições e situações bem diferentes e longe de ser o "senador" que Chico Xavier alegou ser "antiga encarnação" do "mentor" Emmanuel.

O mais grave é que a Epístola Lentuli, um texto apócrifo, sem autoria identificada, não é reconhecido sequer pela Igreja Católica medieval, a mesma que, por via portuguesa, tornou-se a fonte primária para o "espiritismo" brasileiro, permitindo que, apesar das bajulações a Allan Kardec, seus postulados fossem substituídos, na prática, pelos dogmas medievais da Teologia do Sofrimento.

BASTA "FALAR EM CRISTO" QUE QUALQUER USURPAÇÃO VALE

Um suposto Sócrates falando ensinamentos medíocres e um falso Publius Lentulus já dão o tom de como Chico Xavier usou a literatura fake para se ascender e virar - tardiamente, com uma "pequena ajuda" de Malcolm Muggeridge - uma pretensa unanimidade religiosa, abrindo precedente para o "vale tudo" das apropriações dos nomes dos mortos.

Os mortos acabam sendo desrespeitados e desonrados em sua memória, enquanto pessoas encarnadas e "muito vivas" (no sentido da esperteza e do oportunismo) publicam mensagens "em nome dos falecidos", supostamente mediúnicas, bastando serem propagandas religiosas para anestesiar os céticos e evitar desconfianças.

A desculpa de que são mensagens que "não ofendem nem agridem" é sempre usada para que qualquer um na Terra, desde que use como escudo um projeto "filantrópico" considerado "maravilhoso", mas dentro de padrões medíocres que até mesmo gente como Luciano Huck faz, publicar textos ou outras linguagens atribuídas a uma personalidade morta.

Basta que os recados sejam "cristãos', ainda que viessem até mesmo de ateus, que tudo bem. Usa-se como desculpa o fato de que o "ateu da Terra" foi "apresentado a Deus" e se arrependido do ateísmo. É uma desculpa que lembra muito os cristãos-novos da Idade Média, hereges convertidos à "Santa Igreja", assim como os céticos de hoje convertidos para a "fé espírita".

Como se trata do "trabalho do bem", qualquer estranheza é permitida, e é feita uma farra em que os nomes dos mortos passam a desfilar, com frequência suspeita, nos créditos das "mensagens espirituais" que seguem sempre o mesmo padrão, seja sob o nome de Getúlio Vargas ou de Hebe Camargo, de Raul Seixas ou de Domingos Montagner, dos Mamonas Assassinas e de Jair Rodrigues.

A coisa chega ao ponto de se tornar até possível o humorista Mussum ser creditado a uma mensagem em que o suposto espírito agora "vive no verdadeiro forévis" e que "retornou para dizer ao povo se unir nas 'bênçãos do Cristis'". Parece ridículo, mas absurdos desse tipo ocorrem mesmo.

E a farra não pode inocentar Chico Xavier porque ele mesmo criou incidentes graves com o seu livro Parnaso de Além-Túmulo e o caso Humberto de Campos, só para citar alguns casos mais preocupantes.

Uma observação cuidadosa dessas "psicografias" é suficiente, para quem é bem informado em literatura, podendo ser um cidadão comum, para identificar falhas estilísticas não raro muito grosseiras, que no caso de Humberto de Campos se associa à perda da sua agilidade narrativa notada em sua obra original, dando lugar a uma narrativa mais pachorrenta nos textos "mediúnicos" que levam seu nome.

As pessoas são enfeitiçadas de paixões religiosas, e basta ver aquela aparência pitoresca do "médium" Chico Xavier com seus ternos brancos, sua peruca e óculos escuros, mais escondendo do que revelando, tornando-se o obscurantismo em pessoa, para que elas sintam sua capacidade de raciocinar e questionar perigosamente bloqueada.

Nossa consideração de que as "psicografias" atribuídas a Chico Xavier são obras fake se deve a análises objetivas, usando justamente o método analítico recomendado por Allan Kardec, que sempre aconselhou não nos deixarmos levar pelo caráter ilustre de um nome que enfeita uma "psicografia" nem pelo prestígio terreno gozado pelo suposto médium.

É só mesmo no Brasil que ocorre, oficialmente, o fenômeno dos "fakes do bem", os quais são socialmente aceitos e legitimados até por quem deveria contestá-los e rejeitá-los - como juristas, jornalistas investigativos e acadêmicos - , onde ninguém precisa ler, bastando identificar palavras como "solidariedade" e "fraternidade" para serem vistas como "autênticas".

Mensagens fraudulentas atribuídas a "espíritos do além" são produzidas em qualquer lugar. Mas é no Brasil que a coisa atinge níveis absurdos, nos quais a pessoa de Chico Xavier é a única que permanece intocável justamente pela ferramenta kardeciana do "crivo da Razão", o único "crivo" excluído dos três da suposta "psicografia" que cita o nome de Sócrates.

Daí que é muito preocupante que a Verdade não pode mexer em Chico Xavier. Quando muito, ela só lhe é escrava e só lhe deve dirigir para abençoar. Isso é terrível e mostra o quanto há um "dono da verdade" no imaginário religioso de muitos brasileiros, um Chico Xavier que, mesmo postumamente, usa como "carteirada" a suposta caridade (tão medíocre quanto a de Luciano Huck) e a alegação de "falar com os mortos", tão falsa quanto uma nota de três reais, mas suficiente para deixar os brasileiros atemorizados e intimidados diante do perigoso mito do "bondoso médium".

Combater fake news sem combater os "fakes do bem" faz com que apenas as mentiras sejam combatidas de maneira seletiva, enquanto se deixam passar as "mentiras de Cristo" que usam e abusam de nomes ilustres para difundir mistificação, disfarçada de "grandes lições de vida" e "mensagens de consolação". A seletividade do combate às mentiras textuais não busca a Verdade, mas apenas seleciona parte do que traz algum incômodo mais explícito, poupando, não obstante, outras partes tão incômodas e até mais perigosas.

Lembremos de Erasto, que disse que mensagens farsantes podem trazer "coisas boas", advertindo, no entanto, que é justamente aí, no aparato das "lindas mensagens de amor e esperança" que se deve tomar cuidado e aumentar o nível de desconfiança, porque as finalidades de mistificação se tornam ainda mais sutis e ameaçadoras. Não nos iludamos com o mel das palavras, do qual pode se esconder o veneno mais mortífero e cruel.