João de Deus paga pelos pecados do "movimento espírita"

O "movimento espírita" brasileiro estabeleceu um preço caríssimo pelas suas más escolhas. Da preferência original a Jean-Baptiste Roustaing à farra de supostas psicografias - já conhecidas como psicografakes - , das quais um morto da moda, algum tempo depois de falecido, "reaparece" em uma pretensa mensagem "mediúnica", publicada impunemente e disponível até de graça, as más escolhas trouxeram consequências drásticas que os "espíritas" tentam, a todo custo, abafar.
Por que eventualmente existem charlatães como João Teixeira de Faria, o João de Deus, e José Pedro de Freitas, o Zé Arigó? Por que surgem farsantes alegando que "receberam mensagens dos mortos"? Por que ideias do Catolicismo medieval, descartadas pela Igreja Católica propriamente dita, não só passaram a ocupar o ideário do "espiritismo" brasileiro, como substituíram até mesmo os postulados kardecianos originais?
Por que "nosso espiritismo" está tão catolicizado, desonesto e reacionário? São más escolhas que, no calor do momento, foram a obsessão das lideranças do "movimento espírita". Os desvios doutrinários da Codificação não podem ser dissimulados por desculpas aqui e ali, como a "religiosidade brasileira" ou supostas afinidades com o Cristianismo, porque eles trouxeram más consequências.
Por sorte, há outras personalidades e instituições que servem de "vidraça" para evitar o efeito bumerangue das más práticas do "movimento espírita". Quando um suposto médium é envolvido em escândalos não só graves, como também incontornáveis, ele passa a ser visto como um "não-espírita", de maneira bastante risível.
Afinal, não são os "não-espíritas" os maiores divulgadores do "nosso espiritismo"? Quando se produzem biografias ou teses acadêmicas sobre Francisco Cândido Xavier e Divaldo Pereira Franco, a primeira coisa que se fala é que os autores desses textos "não são espíritas". Tudo para forjar isenção, com direito a surgirem até autores supostamente ateus escrevendo a favor de Chico Xavier.
E aí temos os noticiários recentes, a respeito de João de Deus, acusado de crimes que vão além do charlatanismo e do exercício ilegal de Medicina: assédio sexual, estupro, porte ilegal de arma, suposto envolvimento em assassinato, e até mesmo cobrança indevida de dinheiro em consultas e na oferta de remédios terapêuticos.
Embora boa parte dessas acusações ainda dependa de investigação e não possuem provas, sabe-se que João de Deus, ao menos, praticou charlatanismo e dois episódios negativos, um de âmbito ideológico, mancharam sua figura internacionalmente celebrada: um foi quando fez cirurgia contra o câncer, no qual ele recorreu à medicina na Terra e não aos seus dons pessoais, e outro, quando manifestou apoio ao então juiz Sérgio Moro.
No primeiro caso, João de Deus usou uma pergunta irônica como desculpa: "Barbeiro corta o próprio cabelo?". No segundo, João de Deus desmentiu a fama, plantada pela imprensa de direita, de ter sido "amigo de Lula" (ele apenas o atendeu com certa formalidade), ao manifestar seu desejo de ver Sérgio Moro, líder da Operação Lava Jato (que havia prendido o ex-presidente Lula e aberto caminho para a vitória eleitoral de Jair Bolsonaro), como presidente da República.
BODE EXPIATÓRIO
A ideia do caso João de Deus é fazer com que existisse um "bode expiatório" para abafar as denúncias que surgem e crescem contra o "movimento espírita" e as comprovações de que as "psicografias" de Chico Xavier são fraudulentas, uma constatação ainda não oficialmente reconhecida, mas que está latente até mesmo em fontes consideradas simpáticas àquele que é considerado "o maior médium do Brasil".
João de Deus serve para ser explorado pela mídia, enquanto se abafam aspectos mais sombrios envolvendo o "movimento espírita". Afinal, a trajetória de Chico Xavier inclui até mesmo suspeitas de "queima de arquivo" (termo que define assassinato de informantes que ameaçam denunciar algum esquema criminoso) em relação ao sobrinho Amauri Xavier.
A condecoração da Escola Superior de Guerra a Chico Xavier, com direito à realização, no auditório da instituição militar, de palestra com o "médium" em 1972, deveria ser tratado como um fato gravíssimo, pois, naquela época, a ditadura militar vivia seu período de radicalismo repressivo, e a ESG nunca perderia tempo dando prêmios e oferecendo espaço a quem não colaborasse com o regime ditatorial.
Desse modo, dói para muitos definir Chico Xavier como um "colaborador da ditadura militar", apesar de ser um fato comprovável pela lógica e pela verdade histórica, lembrando também que religiões podem apoiar tiranias, até porque elas oferecem, ao assistencialismo religioso, a "matéria prima" de oprimidos e miseráveis, para garantir a "caridade de fachada" de religiosos em busca de protagonismo filantrópico, não muito diferente dos protagonismos de Luciano Huck, Bill Gates e Elon Musk.
São tantos escândalos que a imprensa, mesmo a alternativa - considerada de esquerda - reage em silêncio absoluto, preferindo a omissão do que admitir as fraudes de Chico Xavier. Só voltarão a falar dele talvez quando surgirem pessoas que, à maneira do lendário Karl Friedrich von Münchausen (1720-1797), o Barão de Münchausen, contarão estórias "fantásticas" de Chico Xavier, de caráter fantasioso mas bastante agradáveis.
Com uma imprensa tendenciosa, com uma sociedade que tem medo até de ver feminicidas falecendo, mesmo idosos, com uma cultura degradada na qual o "funk", que espetaculariza a miséria humana, é tido como "vanguarda cultural", a fantasia e o pensamento desejoso prevalecem até sobre o raciocínio lógico e as provas irrefutáveis, quando desagradam a muitos.
Quanto a Chico Xavier, ele é o único que a verdade dos fatos não pode tocar. A Verdade só recorre a ele na condição de escrava, para assinar embaixo nas fantasias em torno dele e nas supostas "estórias lindas" que se inventam de consultas pessoais que soam, não obstante, bastante fictícias, parecendo contos de fadas ou arremedos grosseiros de antigas estórias do misticismo oriental.
Isso significa que Chico Xavier é visto, por muitos, como o "dono da verdade", como se a Verdade fosse privatizada e, junto a ela, as demais virtudes humanas. É como se a Bondade fosse uma franquia de propriedade do "médium", um bem privado que se contrapõe ao ódio como um "bem público" propagado, principalmente, por bolsonaristas.
As pessoas, assim, são tomadas de profundo moralismo religioso, que as fazem prisioneiras de seus medos, de suas fantasias, de suas ilusões. Diante desse moralismo, mil preconceitos e superstições acontecem, que vão desde a demonização dos movimentos sociais de esquerda até o medo de assumir que feminicidas e outros assassinos também morrem, e nem por isso vão sair por aí assombrando qualquer um pelo Brasil.
E é isso que os faz recorrerem a Chico Xavier como um pretenso pacificador e evocando a saturada "profecia da data-limite" que não faz sentido algum. Afinal, a "data-limite" foi em 2019, revelou-se um fiasco que constrangeu até os próprios "espíritas" e não faz sentido o "gado das redes sociais" recorrer a essa suposta profecia quando os noticiários acumulam acontecimentos trágicos de um mesmo período de poucos dias.
E é isso que está em jogo quando João de Deus passa a ser "vidraça", não porque seus crimes sejam desprovidos de fundamento (ainda que continuem sob investigação), mas porque acaba se tornando um diversionismo para que se esqueçam dos escândalos de Chico Xavier ou das recentes revelações do reacionarismo de Divaldo Franco.
O silêncio da nossa imprensa - que mostra o quanto o mito da "imprensa livre" é duvidoso, quando as informações continuam sendo imprecisas, e até mesmo feminicidas "continuam vivos" no Wikipedia, enquanto seus corpos já foram cremados faz tempo - permite, assim, que um mistificador religioso seja blindado com muito mais favorecimentos que qualquer político do PSDB, até porque os chamados "tucanos" andam tendo suas denúncias veiculadas até na chamada "mídia amiga".
Afinal, João de Deus, assim como Zé Arigó no passado, podem ser descartados já pelo seu charlatanismo, por não oferecerem vantagens nem sutilezas que permitissem qualquer blindagem e por se tornarem pessoas sem um sólido apelo carismático diante do grande público.
Chico Xavier fez coisas muito piores, como sua apropriação tendenciosa e cruelmente oportunista do nome e do prestígio de Humberto de Campos, mas como um grande vendedor de livros e um dos pioneiros "lacradores" da mídia, repercutindo de forma sensacionalista mas se tornando um dos maiores ídolos religiosos, aumentando as riquezas da "Federação Espírita Brasileira" sob a desculpa do "pão dos pobres" e simbolizando um tipo de ativismo e suposta caridade que não ameaça os interesses das classes dominantes.