A suspeita de que ditadura financiou "espíritas" e neopentecostais


ATIVISTAS COMO O BISPO CATÓLICO DOM PEDRO CASALDÁLIGA TERIAM FORÇADO A DITADURA MILITAR A FAVORECER OUTRAS RELIGIÕES PARA NEUTRALIZAR A IGREJA CATÓLICA, QUE ATUAVA CONTRA A OPRESSÃO DITATORIAL.


Note-se o protagonismo, iniciado nos anos 1970 e intensificado nos anos 1990, de religiões não-católicas que cresceram, em aparente acaso, pondo em xeque a tradição de que o Brasil era um país católico. Desde os anos 1970 e, com maior intensidade nos últimos anos, vemos o protagonismo de instituições como a Igreja Universal do Reino de Deus, Assembleia de Deus, Igreja Internacional da Graça de Deus e outras neopentecostais, além da "Federação Espírita Brasileira".


Embora haja o aparente contraste entre neopentecostais, associados a pautas abertamente obscurantistas, e os "espíritas", que se dizem ter pautas "mais humanistas", ambos são igualmente conservadores e seus conceitos doutrinários, embora diferentes em métodos e algumas ideias específicas, se afinam em pautas como a condenação radical ao aborto, além de terem atuado juntos em eventos como o golpe político de 2016, através das passeatas do "Fora Dilma" e da exaltação ao mito de Sérgio Moro.


O "maniqueísmo" simbólico que os próprios "espíritas" se colocam contra os neopentecostais, estes associados ao "ódio" e aqueles, ao "amor", é bastante falso, se percebermos que, no "meio espírita", episódios como as ameaças de morte a Amauri Xavier, relatadas pela revista Manchete, e os comentários de seu tio Chico Xavier contra a desconfiança dos amigos de Jair Presente, definida como "bobagem da grossa", mostram que, quando quer, o "movimento espírita" é, sim, bastante rancoroso.


O que as pessoas ignoram é que tanto "espíritas" quanto neopentecostais teriam crescido com uma ajudinha da ditadura militar. A possibilidade de arrendamento de horários em rádios e TVs para os cultos neopentecostais e a colaboração de Francisco Cândido Xavier com a ditadura militar, a ponto de ser homenageado pela Escola Superior de Guerra, indicam que essas religiões teriam sido financiadas, a pretexto de serem entidades "sem fins lucrativos", pela ditadura militar.


O caso depende ainda de divulgação de documentação, mas a tese faz sentido e tem um forte motivo: a ditadura militar estava preocupada com a atuação da Igreja Católica, então uma religião hegemônica no Brasil, na oposição política e no empenho em denunciar os abusos da repressão ditatorial, que assassinou vários presos políticos, e a violência do campo, com grandes fazendeiros solidários ao poder militar federal, até mesmo para a imprensa e grupos humanitários no exterior.


Ativistas como Dom Paulo Evaristo Arns e Dom Pedro Casaldáliga, este recentemente falecido, chamavam a atenção até para a violência que atingia camponeses e povos indígenas. Por outro lado, católicos atuavam ao lado de populações indígenas e camponesas e, através das Comunidades Eclesiais de Base, contribuíram para a adoção do método Paulo Freire na educação dos índios e do povo pobre em geral, sobretudo em áreas rurais.


Mesmo figuras antes conservadoras, como Alceu Amoroso Lima e Dom Hélder Câmara, passaram a se opor à ditadura militar, o que agravava a situação, a ponto de haver, também, padres católicos mortos pela ditadura, como o pernambucano Antônio Henrique Pereira Neto, o Padre Henrique, auxiliar de Dom Hélder, pela repressão em 1969. Houve também padres e missionários que foram mortos ou ameaçados de morte por grandes fazendeiros, que financiavam pistoleiros para executar quem opunha aos seus interesses dominantes.


Por isso é que a ditadura militar teria recorrido a financiar outras religiões para enfraquecer o Catolicismo e, assim, desqualificar os católicos no seu trabalho de oposição à ditadura militar. Era um meio de abafar as vozes oposicionistas, principalmente numa época em que a Teologia da Libertação, corrente progressista do Catolicismo, intensificava suas atividades.


"CATÓLICO" SEM BATINA


Chico Xavier sempre foi católico, mas sua tendência era o Catolicismo medieval, de acordo com as raízes conservadoras do suposto médium. E ele, como um "católico sem batina", foi uma peça estratégica da ditadura militar, fazendo propaganda de seus governos para uma audiência enorme, com muitas testemunhas, no programa Pinga Fogo, da TV Tupi, em 1971. 


Mas seu caráter "ecumênico" poderia muito bem atrair gente de qualquer religião, ou mesmo sem religião, assim como atrair a adesão de católicos, e a propaganda em torno de Chico Xavier (que se revela enganosa em muitos aspectos, como o suposto acolhimento aos ateus, homossexuais e comunistas) foi tão sutil que, mesmo tendo ideias ultraconservadoras, o "médium" carregou, durante anos, uma falsa imagem de "progressista".


A propaganda foi tão engenhosa e convincente que, se vemos, entre os católicos progressistas, a definição do bispo Dom Pedro Casaldáliga como o "bispo dos pés descalços", os "espíritas", querendo imitar, de forma grotesca, o discurso de humanismo, também definiu Chico Xavier como "médium dos pés descalços", mesmo que este nem tenha realmente atuado em prol dos oprimidos, porque seu princípio doutrinário maior é a Teologia do Sofrimento, definida como "AI-5 do bem".


Chico Xavier nunca agiu contra os opressores. Até colaborou com eles. O"médium" recebeu homenagens da Escola Superior de Guerra, em 1972, com direito a fazer palestra no auditório da instituição militar. Era um período de radicalização da repressão ditatorial e a ESG, "cérebro" da ditadura militar, não daria um doce para aqueles que não colaborassem com a ditadura militar, quanto mais oferecer espaço para palestras e recebimento de condecorações.


A estratégia da ditadura militar em usar Chico Xavier como se fosse uma "anestesia humana" para o povo brasileiro encontra respaldo nos fatos. E, além disso, a atuação de Malcolm Muggeridge, jornalista inglês, em "santificar" Madre Teresa de Calcutá, tida como reacionária e desumana, inspirou a adoção deste mesmo método no Brasil, e ele não seria utilizado para promover um católico propriamente dito, padre e usando batina.


MONTAGEM FAZ ALEGORIA SOBRE AS RELIGIÕES FAVORECIDAS PELA DITADURA: IGREJA UNIVERSAL, IGREJA INTERNACIONAL, ASSEMBLEIA DE DEUS E "MOVIMENTO ESPÍRITA".


A escolha de Chico Xavier pelo "sistema" - um conjunto de procedimentos tomados pelas classes dominantes para manter os padrões sociais vigentes, com a desigualdade apenas "amenizada" por ações paliativas, mas mantendo ou até fortalecendo os ricos na sua riqueza - foi certeira por ele representar uma figura supostamente ecumênica que pode também ser entendida como "além dos limites formalmente religiosos". Note-se que a figura de Chico Xavier tenta aliciar até mesmo os ateus, como raposas dizendo que "amam as galinhas".


Chico Xavier era aliado do coronelismo do Triângulo Mineiro, tendo atuado como um inspetor sanitário do gado zebu. Ele sempre militou em favor dos patrões, dos proprietários de terras, usando como desculpa de que "os ricos e poderosos são os que mais merecem o nosso apoio e a nossa compaixão". Suas pautas doutrinárias são o que há de mais conservador em termos de valores e ideias defendidos. Seu apoio à ditadura militar foi explícito e escancarado demais para ser visto como "estratégia de proteção pessoal".


O "movimento espírita" expurgava membros que manifestassem alguma posição esquerdista ou, ao menos, contrária à ditadura militar. Não há um único indício de que Chico Xavier tenha sofrido ameaça ou risco neste sentido, muito pelo contrário. Foi durante a ditadura militar que se desenvolveu a imagem "santificada" que conhecemos do suposto médium, trabalhada justamente por uma mídia, seja a imprensa marrom, seja os Diários Associados e as Organizações Globo, solidária à ditadura militar.


A imagem "santificada" estava latente e era até de certa forma trabalhada pela "Federação Espírita Brasileira", até porque o uso da "caridade" seria um artifício para abafar os escândalos e as fraudes de Chico Xavier e dos dirigentes da FEB que nem fontes solidárias (Suely Caldas Schubert) e simpatizantes "leigas" (Ana Lorym Soares) não só tiveram coragem de desmentir, como acabaram revelando provas das mesmas, por acidente.


No entanto, a imagem de Chico Xavier, através de uma propaganda habilidosa, sobreviveu até mesmo ao fim da ditadura militar e chegou até mesmo a períodos de governos progressistas. Iludidas com a reputação "acima das religiões e das ideologias", as esquerdas enganosamente creditaram Chico Xavier a uma "alma-gêmea" do então presidente Luís Inácio Lula da Silva apenas por causa de uma simbologia artificial envolvendo "paz, caridade e amor ao próximo".


Esquecem que a "caridade" de Chico Xavier tem mais a ver com o Assistencialismo meramente paliativo e seletivo de Luciano Huck. É uma "caridade" que inspira a mais intensa emotividade coletiva, mas não traz resultados significativos para a população, apenas garantindo o protagonismo do suposto caridoso, alvo de adoração cega e intransigente.


Não que o Catolicismo deva ser a única religião brasileira. Defende-se a diversidade religiosa dentro de um direito de liberdade de crença. Mas, pela atuação dos católicos contra a ditadura militar e os poderes civis vinculados, nota-se o caráter tendencioso que poderia ter favorecido o crescimento repentino das religiões neopentecostais e "espírita", através de interesses estratégicos para enfraquecer a religião que havia desafiado o poder dos generais.


Cabe ao jornalismo investigativo se aprofundar em pesquisas e entrevistas para verificar o apoio que a ditadura militar deu às religiões evangélicas neopentecostais e ao "movimento espírita", com o objetivo de enfraquecer o Catolicismo, que atuava na oposição ao regime ditatorial, atuando ao lado dos oprimidos e denunciando a opressão até mesmo para a comunidade internacional.


Cabe, portanto, deixar de lado as paixões religiosas em torno de Chico Xavier, e partir para uma investigação que não tema pôr em xeque o mito do "bondoso médium", pois a verdade dos fatos obriga a sofrer riscos como este, mesmo que seja para desfazer, em segundos, sentimentos agradáveis que duravam décadas.


Lembremos de Allan Kardec em dois conselhos: um, de rejeitar corajosamente o que a Lógica e o Bom Senso reprovam, e, outro, que é melhor que caia um homem do que as multidões que venham a ser iludidas com ele. Se há algo errado em torno de Chico Xavier, seria melhor descartá-lo severamente e ficarmo com a Lógica e o Bom Senso.