Brasileiros têm medo de largar seus paradigmas


O maior problema do Brasil é, mais do que qualquer coisa, o medo. É o medo de que um país confuso, caótico porém confortável do qual estamos acostumados a suportar há cerca de 45 anos, deixe de fazer sentido e desapareça.

Isso faz com que as pessoas adotem posturas surreais, preferindo mentiras agradáveis do que verdades contundentes. Criamos padrões contraditórios de libertinagem sexual e moralismo severo de tal forma que as pessoas ditas "normais", como veem seus valores conservadores serem considerados anacrônicos, surtam de vez e não são só os bolsonaristas que recorrem a isso, como até mesmo as chamadas "esquerdas petistas" também enfrentam seus surtos.

Os bolsonaristas apenas são o caso extremo desses surtos psicóticos da maioria dos brasileiros, surtos que, de maneira surpreendente, atingem até muita gente "correta", muito cidadão "de bem" e mesmo muita gente "esclarecida" e "progressista". 

Os bolsonaristas, ou "bolsomínions" no anedotário brasileiro, apenas levam isso às últimas consequências, acreditando em terraplanismo, na cura certeira da Covid-19 pela cloroquina e chamar de "comunistas" até mesmo os direitistas que fazem ou dizem algo desagradável aos apoiadores do presidente Jair Bolsonaro.

Mas mesmo as esquerdas têm suas loucuras. A complacência com a decadência da cultura popular, simbolizada principalmente pelo "funk", um estranho ritmo musical marcado por um processo criativo medíocre, sem melodias (exceto em derivados mais "pop" do funk melody) nem arranjos e com vocais desajeitados e sofríveis. 

De maneira bastante surreal, o "funk", cuja simbologia "devolve" ao povo pobre os padrões socialmente deteriorados do tempo da República Velha, é visto por setores das esquerdas como uma suposta vanguarda cultural, apoiado ao sabor de visões etnocêntricas "positivas" trazidas por acadêmicos e jornalistas que se aproveitam do prestígio que possuem para produzir tais falácias.

Os brasileiros não querem mudar seus padrões de percepção que, à esquerda ou à direita, são os mesmos e foram herdados da Era Geisel, quando, supostamente, o Brasil atingiu "níveis ideais" de sociedade, dentro daquele suposto equilíbrio de defeitos e qualidades que cria uma zona de conforto numa sociedade desigual e injusta, mas dissimulada o suficiente para achar que "está melhor assim".

Um artigo do blog Charlatães do Espiritismo fala da "pandemia do medo" que atinge os brasileiros mais do que o coronavírus. Isentões surgem como capins no campo para contestar os contestadores, agindo como patrulhas do estabelecido, para as quais é preferível que o Brasil permaneça nesse caos organizado de mais de 40 anos do que esboçar alguma transformação e mudança de valores.

Tudo o que se faz é abrir mão de melhorias. Somos o país que mais perdemos pessoas brilhantes pela morte prematura. Já derrubamos governos progressistas através de golpes políticos, em 1964 e 2016. Dissimulados, muitos brasileiros se recusam a definir esses golpes como tais: o de 1964 foi, durante muito tempo, visto como "revolução democrática", e o de 2016, como "combate à corrupção" ou até mesmo "redemocratização depois do fim da ditadura (sic) petista de quase 15 anos".

Aceitamos até mesmo mortes de grandes famosos no auge ou mesmo no alvorecer da carreira, em que pesem os sustos e tristezas que se sentem por tais tragédias. Mas quando o assunto é morrer assassinos no Brasil, as neuroses, pavores e irritações das pessoas se tornam absurdamente grandes. Por exemplo, pistoleiros e jagunços morrem aos montes, antes dos 60 anos de idade ou mesmo antes dos 50, e a população moralista ainda se revolta com isso.

No caso dos feminicidas, as suspeitas de que o famoso machista, membro de uma rica família, Raul Fernando do Amaral Street, o Doca Street - famoso por matar a namorada, Ângela Diniz, na véspera do Reveillon de 1976-1977, em Búzios - , já estaria falecido há, pelo menos, um ou dois anos, são alertadas pelo blog Charlatães do Espiritismo

As suspeitas envolvem o tempo de vida de Doca (nascido em 1934), avançado demais para um fumante inveterado que, até os 42 anos, também consumia cocaína, e continuou fumando cigarro comum até depois dos 70 anos, e a repentina autorização da Justiça para a produção de uma minissérie sobre o referido crime, Quem Ama Não Mata

Nos padrões de uma Justiça que protege os ricos no Brasil, a minissérie teve sua realização proibida por um inflexível Doca Street que queria zelar por sua imagem, oficialmente definida no livro Mea Culpa, escrito por ele e um ghost writer (que nos últimos anos representava o empresário nas redes sociais). Apesar do estranho silêncio da imprensa e de, oficialmente, Doca "ainda estar vivo", expressões como referir seu feminicídio como "crime do passado" e "fim da era dos playboys da alta sociedade" aparecem sutilmente na mídia, aumentando ainda mais as citadas suspeitas.

Esse é apenas um fator de muitos e muitos medos que os brasileiros sentem, e que chegam mesmo a atingir coisas aparentemente banais: o medo em doses traumáticas de coisas como um virtual fim da pintura padronizada nos ônibus (que fazem diferentes empresas de ônibus terem o mesmo visual) de cidades como São Paulo e Curitiba ou a possibilidade de uma suposta rádio de rock, a Rádio Cidade, no Rio de Janeiro, voltar a tocar pop eclético.

São coisas que nem trazem vantagens práticas à vida das pessoas, como a confusão que se costuma ter com os ônibus padronizados - pois as pessoas, com tantas tarefas a prestar atenção, como pagar contas, têm que tomar cuidado para não embarcar no ônibus errado - ou a superficialidade com que emissoras como a Cidade cobrem a cultura rock, mas mesmo assim há gente defendendo tudo isso com unhas e dentes, a ponto de reagir com ódio cego contra quem discorda de tudo isso.

Ver que só estas duas coisas fazem muita gente correr para o primeiro frasco de Rivotril que encontrar pela frente mostra o quanto o Brasil tornou-se prisioneiro de um sistema de valores que atinge da extrema-direita até setores do trotskismo, dos ateus aos religiosos mais fanáticos, do correto acadêmico de universidades ao mais histriônico adepto de Olavo de Carvalho.

É estarrecedor, portanto, que surjam isentões e moralistas religiosos aqui e ali, defendendo essas convicções com argumentos supostamente "racionais" e "moralmente saudáveis", com um falso racionalismo feito na tentativa de evitar qualquer comparação com os bolsonaristas, marcados pelas suas explosões de ódio e seu nível bizarro de compreender o mundo.

"ESPIRITISMO" É REFLEXO DESSE BRASIL CONFUSO

Muitas pessoas criticam os excessos das religiões conhecidas como "evangélicas neopentecostais", como a Igreja Universal do Reino de Deus. "Bispos" como Edir Macedo e Silas Malafaia são alvos de críticas bastante severas. 

Figuras como Marco Feliciano, deputado e pastor, e Damares Alves, ministra de Bolsonaro, estão associadas abertamente a pautas sociais reacionárias, que muitos consideram nocivas ao Brasil, como a homofobia e a restrição da Educação a ensinamentos meramente inócuos, como as tarefas formais de escrita, leitura e trabalho e a pregação do obscurantismo religioso.

No entanto, quem acha que o "espiritismo" brasileiro, se não o "paraíso de esclarecimento e perfeição moral", ao menos o "oásis de alguma sensatez e altruísmo", se engana porque os defeitos dos "neopentecostais" correspondem aos argueiros dos olhos, enquanto os "espíritas" são justamente os que estão em situação pior, com as traves presas em seus olhos.

O "espiritismo" reflete esse mesmo Brasil confuso que reivindica, para a política nacional, militares, policiais e pastores evangélicos e quer que diferentes empresas de ônibus devam ter a mesma pintura, dentro de um pragmatismo amalucado de um moralismo mofado, injustificável mas mesmo assim defendido radicalmente por muita gente "isenta" e "imparcial" que, quando se esgotam os argumentos falaciosos, partem para a ofensa gratuita e vingativa, que às vezes vai ao nível da violência física.

As condições psicológicas que permitiram a vitória eleitoral de Jair Bolsonaro garantiram a idolatria, hoje posta em "banho-maria", em outro silêncio da nossa imprensa, ao "médium" Francisco Cândido Xavier. Como que num aspecto surreal, uma considerável maioria de brasileiros sente um frio na espinha quando se associa Chico Xavier a Jair Bolsonaro. 

Dentro dessa superstição, jornaleiros evitam colocar revistas sobre Chico Xavier e Adolf Hitler lado a lado, nas bancas de jornais, apesar do projeto do Brasil como "coração do mundo e pátria do Evangelho", sendo uma teocracia, não diferir muito, como ameaça totalitária, à Alemanha nazista, pois esse projeto de "Brasil", seguindo a ótica de Jean-Baptiste Roustaing em Os Quatro Evangelhos, é, na prática, uma restauração conjunta do Catolicismo medieval e do Império Romano.

As carreiras de Chico Xavier e Jair Bolsonaro foram lançadas por escândalos, pelos quais o jogo de conveniências fez resultar em impunidade, mesmo diante de condenações simbólicas. Até mesmo a literatura fake beneficiou ambos: indícios de fraudes em "psicografias", confirmados por acidente até por gente simpática ao "médium", e as fake news que favoreceram o militar, se coincidem em muitos aspectos.

Além disso, para quem acha que Chico Xavier e Jair Bolsonaro não têm a ver um com outro, há a surpreendente inversão na qual Chico Xavier apresentou aspectos tipicamente bolsonaristas, como a sua defesa radical à ditadura militar (fato hoje subestimado, mas que colocar o "bondoso médium" em posição de "médium de direita" muito pior do que as de Divaldo Franco e Carlos Baccelli), enquanto o programa assistencialista Renda Brasil coloca Jair Bolsonaro em momento tipicamente xavieriano.

Em outras palavras, existem não só elementos afins, mas aspectos complementares que unem Chico Xavier e Jair Bolsonaro, crias de um mesmo inconsciente coletivo, dos quais fenômenos supostamente díspares como a Rede Globo, a Record TV, o "funk", o brega, o terraplanismo, a objetificação da mulher travestida de "feminismo" e o feminicídio repudiado mas consentido como um "mal necessário" são na verdade diferentes sabores de uma mesma gororoba.

A dissimulação que ocorre aqui e ali apenas arruma palavras para desmentir sempre aspectos negativos, aqui e ali. Mesmo os ônibus padronizados evocam paradigmas, ainda que confusos e vagos, de "moralidade no transporte público" e "mobilidade urbana" que não encontram respaldo na realidade, mas, mesmo assim, são defendidos como "verdades absolutas".

No "espiritismo", a deturpação é justificada pela "tradição religiosa popular" dos brasileiros, que passa pano na "catolicização do Espiritismo", a pretexto de supostas afinidades com o Cristianismo. Todo um verniz de palavras agradáveis e desculpas esfarrapadas docilmente transmitidas faz com que o "espiritismo à brasileira" se fundamente tanto desenvolvendo um roustanguismo mais suave, quanto, de maneira hipócrita, se fazem pretensos juramentos de "fidelidade absoluta" a Allan Kardec.

Assim como o silêncio capaz de dar, a velhos feminicidas, o efeito "Um Morto Muito Louco" (baseado na famosa comédia estadunidense de 1987), há também o outro silêncio, que evita botar oficialmente, na imprensa e em outros meios de divulgação oficial de informações, as dolorosas revelações que derrubam o mito de "fada-madrinha do mundo real" do qual goza Chico Xavier há mais de 45 anos e que vale até mesmo postumamente.

Retornar aos escândalos e incidentes dos anos 1940 e 1950 cujos desfechos envolvem suspeitas de queima-de-arquivo - como a estranha morte do sobrinho do "médium", Amauri Xavier, por suspeita de envenenamento, em 1961 - , causam dor àqueles que tratam Chico Xavier como se fosse um equivalente adulto das "princesas encantadas" que as crianças cultuam dos personagens da Disney.

E isso também é fruto do grande medo das pessoas, persuadidas a ver, desde os anos 1970, o "médium" Chico Xavier como se fosse um "Jesus Cristo brasileiro", no qual a desculpa da "liberdade da fé" faz com que a fantasia prevaleça sobre a Verdade, e comete-se absurdos como permitir que se acredite ou não nas supostas autorias espirituais.

Imagine "poder ou não" acreditar que supostas psicografias teriam sido escritas por um morto! Quer dizer que, não bastassem determinadas pessoas não estiverem entre nós, permite-se que um seleto número de viventes usem seus nomes ao bel prazer, só porque as "mensagens cristãs" não parecem ofensivas? Ou seja, é possível fazer o que se quer com os nomes dos mortos, bastando apenas fazer propaganda religiosa para abafar qualquer desconfiança?

Nota-se que, no exterior, as pessoas tinham medo de ver um Charles Manson morrer, uma Cientologia ser alvo de descrédito, o pop comercial ser denunciado por fraudes que envolvem falsos créditos de autoria, prepotência empresarial e uso de playback por supostos artistas e uma "filantropa" de projeção mundial como Madre Teresa de Calcutá ser desmascarada.

Compare isso com o Brasil, onde se tem um medo que chega ao ponto do silêncio mafioso de nossa imprensa, enquanto a "patrulha de isentões" surge aqui e ali para defender e proteger a mediocridade do caos organizado e tragicômico de nosso país, obrigado a conviver com os problemas e defeitos graves sob o pretexto de um forçado equilíbrio, um equilíbrio de aceitar os abusos dos opressores e as desgraças dos oprimidos.

As pessoas que pensam assim estão bem de vida, mas veem o "mundo" que acreditam ser o Brasil, instaurado na Era Geisel e consolidado nos anos 1990, ruir de vez, com seus valores sendo derrubados e postos em descrédito. Daí a inquietude de "isentões de centro", de esquerdistas festivos e de terraplanistas fascistas, que preferem que o Brasil mergulhe na areia movediça do atraso, desde que as convicções sejam sempre mantidas em pé.

E, assim, em relação a Chico Xavier, inverte-se a máxima de Allan Kardec, que dizia que "era melhor que caísse um homem do que muitos a serem iludidos por ele". No Brasil, muitos consideram que "melhor que caísse um país inteiro do que caísse Chico Xavier". O apego a velhos paradigmas continua.