Desonestidade religiosa: a lama que se aproxima do mito de Chico Xavier
PADRE ROBSON, FLORDELIS, JOÃO DE DEUS E DELTAN DALLAGNOL - A fé religiosa acobertando abusos.
Muita gente está acostumada com a narrativa fantasiosa e adocicada que promove o mito de Francisco Cândido Xavier, o Chico Xavier, como uma personalidade "fofa", quase como um herói de contos de fadas. Esquecem os brasileiros dos escândalos arrepiantes que o suposto médium causou na sua ascensão, dos quais incluem até suspeita de assassinato, a mando de dirigentes "espíritas", do sobrinho Amauri Xavier.
Quanta sujeira foi jogada debaixo do tapete para promover o mito do "homem chamado Amor". E quantas revelações vêm à tona, como o fato de Chico Xavier ter colaborado com a ditadura militar - se não fosse isso, a Escola Superior de Guerra não teria lhe homenageado em 1972, no ápice da repressão - e que ele fez fraudes literárias com suas supostas "psicografias", que não só foi impossível de ser desmentida - pois os desmentimentos eram frágeis e vagos em argumentação - como fontes favoráveis a ele revelaram, sem querer, que essas fraudes ocorriam mesmo, sob o apoio aberto do "médium".
Até agora ninguém, entre aqueles que, com visibilidade e prestígio, se encorajou a reinvestigar o mito, e o máximo que tivemos foi uma Superinteressante fingindo acolher pontos controversos do "médium" para depois deixar tudo como está, com a imagem mitológica preservada apenas sob o verniz da "polêmica".
Jornalistas investigativos aceitam a falácia da "caridade" de Chico Xavier (que nunca foi além do mesmo processo fajuto que hoje Luciano Huck faz) sem verificar, juristas aceitam fraudes "mediúnicas" e "lavam suas mãos" e a comunidade acadêmica finge que questiona, mas passa pano por cima. E isso quando partidários de Chico Xavier criam fake news que, de tão ridículas, chegaram a atribuir que ele "descobriu" vida em Marte e "previu" visitas de extraterrestres que já teriam ocorrido antes de tal "profecia".
No entanto, o mito começa a ser desidratado e o recente aumento de títulos relacionados a Chico Xavier nas bancas de revistas e jornais, nos sebos físicos de livros e nas páginas de vendas na Internet mostra que já começam a surgir pessoas querendo se livrar das obras do "médium", decepcionadas com as revelações que, embora não tenham sido, ainda, oficializadas, elas surpreendem pela contundência e veracidade. Afinal, essas revelações se baseiam na mesma ferramenta da Lógica que havia sido recomendada pelo próprio Allan Kardec.
Foi Kardec que havia dito: "O que a Lógica e o Bom Senso reprovam, rejeitai corajosamente". E ele falou de muitas armadilhas que haveriam de surgir sob o rótulo de "Espiritismo". O mito de Chico Xavier, com uma trajetória arrivista de fazer inveja a Aécio Neves - que, aliás, manifestou uma forte sintonia espiritual com o "médium", visitando-o no final da vida - , foi um teste para saber a que ponto estava o senso de vigilância dos brasileiros, o que se constatou ser bastante nulo.
DESONESTIDADE DA FÉ
Nos últimos tempos, vários episódios envolvendo, direta ou indiretamente, a religião, surgiram para preparar as pessoas do momento em que jornalistas, juristas e acadêmicos questionarão o lado sombrio da trajetória de Chico Xavier e os movimentos progressistas de esquerda passarão a reconhecê-lo como cúmplice da ditadura militar, algo considerado "impossível" hoje em dia, mas se tornará inevitável nos próximos instantes.
Afinal, muita gente foi escorraçada, como quem chuta um cachorro vira-lata, e posta para fora do caminho para garantir a ascensão de Chico Xavier, feita por meios bastante desonestos, o que garante defini-lo como arrivismo. A desqualificação gratuita dos críticos literários, que apontavam, com razão, fraudes literárias nas supostas psicografias, o assédio moral a Humberto de Campos Filho (um cético constrangido a até preparar sopinhas a pedido de Chico Xavier) e a morte suspeita de Amauri Xavier foram os meios de arrombar as portas fechadas para o mito do "bondoso médium" passar.
Nomes como Osório Borba e Attila Paes Barreto, críticos literários, o jovem Amauri, o "deturpador sem rosto" Jean-Baptiste Roustaing (que Chico Xavier tinha medo de assumir-se discípulo, mas cumpriu a função de adaptar suas ideias rigorosamente para a realidade brasileira) e outros, agora, "reaparecerão" para um acerto de contas para o mito do "bondoso médium", provando que esse mito não foi uma "dádiva de Deus", mas uma invenção das conveniências e de jogos de interesses do "movimento espírita".
São muitos os fatos que envolvem desonestidade e fé religiosa. E cinco episódios demonstram o quanto o moralismo religioso se torna não somente retrógrado e reacionário, mas também um meio de acobertar e permitir abusos de toda espécie.
Em primeiro lugar, tivemos, há poucos dias, o caso do aborto de uma menina estuprada e grávida de São Mateus (ES), autorizado pela Justiça capixaba mas recusado a ser cumprido por um hospital local. A menina teve que fazer o aborto num hospital em Recife, mas a militante fascista Sara Giromini, a Sara Winter, divulgou os dados pessoais e fez ofensas à família dela nas redes sociais, fazendo com que fundamentalistas neopentecostais tentassem invadir o hospital para impedir o procedimento.
A menina corria o risco de morrer, porque tinha apenas 10 anos e não aguentaria, pela formação precoce do seu corpo, o avanço da gravidez. Mesmo assim, não só neopentecostais, mas católicos de direita e o "movimento espírita" rejeitaram o aborto e defenderam que a menina deveria ter mantido a gravidez, ainda que ela morresse depois do parto. O agravante do "espiritismo" brasileiro é que ele preferia que alguém com um projeto de vida em andamento ceifasse sua existência, em prol da vida de um feto já sufocado num organismo de criança.
Tempos também o caso de Robson de Oliveira Pereira, o Padre Robson, sacerdote católico acusado de desviar dinheiro doado por fiéis, um valor acumulado em, pelo menos, R$ 120 milhões, depoistados em nome de sua instituição Associação Filhos do Pai Eterno (AFIPE). O escândalo tornou-se conhecido até no Vaticano e um rapaz que integrava uma dupla de hackers teria tido um romance com o padre e teria extorquido dinheiro para evitar que o sacerdote fosse denunciado.
Há, também, o escândalo criminal da deputada e pastora neopentecostal Flordelis dos Santos e Souza, ou apenas Flordelis. Apesar do nome gracioso, ela, que como cantora gospel exaltava valores como o casamento e a Família, responde processo como mandante de assassinato, além de crimes de falsidade ideológica, uso de documento falso e organização criminosa majorada.
Flordelis teria alugado um pistoleiro para matar a tiros, em 16 de junho de 2019, o também pastor Anderson do Carmo. O crime teria sido premeditado com a cumplicidade de alguns familiares da pastora. Flordelis era cortejada pela grande mídia, chegou a ser admirada por um sem-número de celebridades e fazia projetos assistencialistas, além de ter vários filhos adotivos. Houve até filme produzido sobre ela. Nestes atributos, parecia um Chico Xavier do evangelismo neopentecostal.
Depois do crime, famosos manifestaram sua decepção com Flordelis, que no filme produzido sobre sua vida contou com a participação de atores do nível de Deborah Secco, Cauã Raymond, Alinne Moraes, Thiago Martins, Reynaldo Giannechini e Letícia Sabatella. Esta última também participou de Chico Xavier - O Filme, no papel de Maria João de Deus, mãe do "médium".
Nas redes sociais, o anedotário digital também aproveitou o encontro de Flordelis com a primeira-dama Michelle Bolsonaro, acusada de receber depósitos de R$ 89 mil do amigo do marido Jair Bolsonaro, o miliciano Fabrício Queiroz - episódio que rendeu a famosa pergunta que enfureceu o presidente da República, "Presidente, por que sua mulher recebeu 89 mil reais do Queiroz?", que rendeu do chefe do Executivo a ameaça de "encher a boca (do jornalista) de porrada" - , para criar a piada de uma "nova dupla sertaneja" chamada "Cheque & Mate".
Outro caso, embora não envolvesse diretamente uma religião, teve como beneficiário um evangélico, Deltan Dallagnol, líder do grupo jovem da Igreja Batista de Curitiba. Procurador da República, envolvido numa promíscua missão junto ao então juiz Sérgio Moro na Operação Lava Jato para derrubar o governo de Dilma Rousseff e incriminar o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, através da tática do lawfare (perseguição política sob o aparato do processo jurídico), Dallagnol foi beneficiado pela Justiça após 42 adiamentos de um julgamento do caso do Power Point.
Acusado pelo advogado de Lula, Cristiano Zanin Martins, de ter usado informações falsas para compor o roteiro de acusações contra o ex-presidente descritas num esquema rudimentar exibido em arquivo PPT (do Microsoft Power Point), Dallagnol teve o processo arquivado no dia 25 de agosto de 2020, sob a alegação de que o caso "precreveu", mesmo depois de quatro anos realizado.
Nem as denúncias da Vaza Jato, que, através de dados colhidos de um telefone celular revelaram a corrupção tramada entre Moro e Dallagnol, impulsionaram na condenação, até porque a sentença foi dada pelo Conselho Nacional do Ministério Público, órgão do qual faz parte o procurador paranaense, e os interesses corporativistas falaram alto diante da denúncia movida pelo advogado de Lula.
Por ironia,quem publicou as matérias da Vaza Jato foi o Intercept Brasil, de Glenn Greenwald, cujo membro da equipe editorial, Alexandre DeSanti, fez parte da equipe da revista Superinteressante, da Editora Abril, que havia feito uma cobertura acovardada da vida de Chico Xavier, como acima citamos.
É irônico que DeSanti estivesse participando das investigações da Vaza Jato, quando no caso do "médium" sua atuação se equipara justamente aos juristas que passam pano em Moro e Dallagnol diante de suas irregularidades. Quando as fraudes de Chico Xavier são reveladas até por acidente por fontes solidárias (Suely Caldas Schubert) ou simpatizantes distanciadas (Ana Loryn Soares), relativizá-las e deixá-las repousar no campo da dúvida, a ponto de permitir a "livre crença" na suposta veracidade de uma "mensagem espiritual", soa preguiçoso e complacente com a desonestidade.
Enquanto isso, repercute as denúncias que foram oficialmente publicadas desde dezembro de 2018 sobre os crimes que João Teixeira de Faria, o suposto médium João de Deus, havia feito desde 1972. Embora se diga que João de Deus nunca foi do "movimento espírita", ele começou como discípulo de Chico Xavier, que passou pano para os abusos do pupilo e lhe ofereceu a Casa Dom Inácio de Loyola, que fica em Abadiânia, a meia-hora de Uberaba, refúgio do "médium" de Pedro Leopoldo após o caso do sobrinho Amauri.
Em livro divulgado por Chico Felitti (notem a ironia do prenome), A Casa, lançado há pouco mais de cinco meses, revela-se que João de Deus, acusado de crimes sexuais, chegava a promover orgias sexuais de dentro da instituição, além de outras práticas ilícitas como esconder dinheiro em sacos, contratar capangas e depositar armas de fogo. João de Deus também é acusado de charlatanismo, exercício ilegal da Medicina e de cobrança financeira de remédios terapêuticos, contrariando o princípio da caridade.
Não é difícil comparar tudo isso com as acusações contra o próprio Chico Xavier, ainda tido como "o maior médium do Brasil", mas associado a fraudes que nem os simpatizantes conseguem desmentir, antes confirmando sem querer. Só o livro Parnaso de Além-Túmulo, por apresentar poemas aquém do que fizeram, em vida, os supostos autores espirituais, ter tido modificações editoriais bruscas por cinco vezes e em vinte anos já aponta o caráter fraudulento da obra xavieriana.
Chico Xavier também é acusado de promover "leitura fria" - interpretação psicológica de dados pessoais e de reações psicológicas de um entrevistado - e consultas bibliográficas para forjar falsas "cartas mediúnicas". O caso Jair Presente inclui denúncia de que uma parente do falecido engenheiro, tarefeira (termo usado para definir voluntários em "centros espíritas") de um "centro" em Campinas, ter enviado jornais para Chico Xavier estar a par das informações aproveitadas para as pretensas psicografias.
Há até mesmo desconfiança de que a pretensa parceria com o "espírito Humberto de Campos" teria sido feita por revanche, já que Chico Xavier não teria gostado da recomendação que o autor maranhense, em vida, havia feito ao "médium", de evitar produzir "psicografias" para não concorrer com os escritores vivos, que precisavam sobreviver com o trabalho literário.
As desconfianças em torno de Chico Xavier, acusado de ser farsante e reacionário, ainda não refletem sequer na imprensa de esquerda, habituada a se contrapor aos abusos da mídia hegemônica. O "médium" ainda goza de uma imagem glamourizada, cujo principal pretexto é a "caridade", ainda que sob os mesmos padrões do apresentador Luciano Huck (que confessou ser admirador do "médium"), que muito pouco ajudam os mais necessitados e rendem apenas promoção pessoal e idolatria ao suposto benfeitor.
No entanto, a verdade dos fatos chega sempre um dia. Observando que obstáculos diversos como a obra de Attila Paes Barreto, O Enigma Chico Xavier Posto à Clara Luz do Dia, de 1944, ou as denúncias de Amauri Xavier, foram deixadas de lado e o "bondoso médium" construiu sua carreira puxando o tapete de seus opositores, existe o dado irônico de que, ao dito "profeta da data-limite", se chega a "data-limite" de sua trajetória, nem de longe tão brilhante quanto seus seguidores e simpatizantes espalham pelos quatro cantos do Brasil e, em certo ponto, do mundo.
Não se trata apenas de dizer que Chico Xavier era "imperfeito e endividado" e "realmente errou muito" e passar pano em tudo isso. As irregularidades de Chico Xavier tiveram efeitos nefastos muito grandes, entre eles a usurpação da memória dos mortos, num país cujo povo mal consegue conhecer a si próprio, quanto mais entrar em contato com os mortos.
Num mundo que, no seu todo, ainda tem dificuldades para exercer a paranormalidade, devemos reconhecer que o Brasil se encontra em situação pior, de uma ignorância completa, total, que tornou-se um terreno fértil para as atuações de Chico Xavier contra o Espiritismo original, deturpando seus ensinamentos, e para suas práticas fraudulentas e suas posições ultraconservadoras, presentes em seus textos doutrinários.
Estamos muito perto de ver jornalistas, juristas e acadêmicos serem "convidados" a abrir mão de sua fascinação obsessiva em torno do "médium" e voltar a investigá-lo de maneira firme e altamente contestatória. Derrubar um mito é o de menos. Diz o próprio Kardec: "melhor que caísse um único homem do que aqueles que viessem a ser enganados por ele". Até agora o Brasil preferiu se jogar no abismo das suas eternas crises do que abrir mão da adoração a um mito religioso. Isso terá que acabar um dia.