"Espiritismo" brasileiro adere ao modo "isentão"

SEGUNDO OS "ISENTÕES", CHICO XAVIER FOI REBAIXADO DE "ESPÍRITO DE LUZ" PARA "MÉDIUM ENDIVIDADO", DISSIMULANDO A IDOLATRIA FANÁTICA EM TORNO DELE.

"Os Espíritas não sabem todas as coisas, muito menos os espíritos. Os Espíritos são as almas dos seres humanos que já perderam o corpo físico (...) O espiritismo não faz milagres, nem prodígios", diz o escritor "espírita", Franklin Félix. "Salvador da Pátria não existe, nem a pé nem a cavalo", diz Ana Cláudia Laurindo, outra escritora "espírita". Embora pareça estar com os pés no chão, o "movimento espírita", mesmo através da manifestação minoritária dos "espíritas de esquerda", tende a estar no modo "isentão", nessa sua fase de grave crise.

Afinal, o "movimento espírita" paga o preço caríssimo das más escolhas, da ascensão de oportunistas, arrivistas e farsantes, do envergonhado acolhimento de "independentes" como Zé Arigó e João Teixeira de Faria, o João de Deus, que ao menor escândalo são defenestrados e tratados como se "espíritas" nunca tivessem sido, e isso apesar de ambos terem recebido o apoio certeiro de Francisco Cândido Xavier, uma síntese "mais cristã" de Jair Bolsonaro, Aécio Neves e Luciano Huck.

As más escolhas, que envolvem suposta psicografia com indícios de atividade fake, revelada não só por opositores como o padre Oscar Quevedo, mas também por pessoas amigas a Chico Xavier, como Suely Caldas Schubert, e simpatizantes distanciados, como Ana Lorym Soares, estas duas revelando por acidente tais fraudes, revelam o quanto o "espiritismo" brasileiro foi surpreendido por uma crise gravíssima, que muitos esperariam atingir os evangélicos neopentecostais que hoje cortejam o bolsonarismo.

O "espiritismo" brasileiro hoje trabalha um roustanguismo envergonhado, que finge fidelidade absoluta a Allan Kardec. Atualmente, há algumas correntes "espíritas" que envolvem do conservadorismo extremo de Divaldo Franco e Carlos Vereza, do conservadorismo clássico de Richard Simonetti (herdado por Orson Peter Carrara e João Carlos de Lucca), do semi-conservadorismo de José Medrado, o 'kardecismo coxinha" do falecido Alamar Régis Carvalho, de correntes próprias como o profetismo pseudo-científico de Juliano Pozati e o "kardecismo" messiânico de Ariston Teles, além do "espiritismo de esquerda" de Franklin e Ana Cláudia.

Em nenhum deles, porém, existe a pureza doutrinária é realmente respeitada. Tudo se limita  a uma conversa para inglês ver, e é muito fácil apelar para a teoria kardeciana original para se justificar isso ou aquilo.

Nesta fase "isentona" que agora integra o "movimento espírita", "médiuns" como Chico Xavier foram tirados do pedestal e, para evitar uma queda maior - motivada por denúncias graves envolvendo o "médium" mineiro - , são obrigados a trocar o status de "espíritos de luz" para o status um tanto constrangedor de "médiuns endividados".

A situação é risível. A adoração continua a mesma, mas o fanatismo está mais enrustido, disfarçado pela "admiração saudável a homens de bem", aos quais se cria uma espécie de "carteirada por baixo": os "médiuns" erram muito, são bastante falíveis e imperfeitos, mas apenas "são bem intencionados no trabalho do bem". Ainda que esse "trabalho do bem" fosse um mero assistencialismo de efeitos apenas paliativos.

Como manter adoração a Chico Xavier, diante dessas condições? Adoração sem motivo? Devoção sem razão? Embora cheia de fantasias e delírios, a antiga adoração "divinizada" poderia ser uma estupidez e um exagero, mas pelo menos tinha algum motivo, alguma justificativa. Hoje esses motivos se evaporaram, criando a situação contraditória de uma adoração mais "pé no chão", porém sem um motivo real que a justificasse.

A evocação dos ensinamentos da Codificação continua tendencioso, e, enquanto os "espíritas" brasileiros fingem concordar com os avisos de Kardec de que prever o futuro com datas pré-determinadas é indício de mistificação, eles passam pano no pretenso profetismo de Chico Xavier sobre a tal "data-limite", uns se limitando a negar tal "profetização".

O "espiritismo de insenção", que parece agora substituir a fase dúbia iniciada em 1975 - um "roustanguismo com Kardec" que representou a ascensão e o auge de Divaldo Franco e a consagração de Chico Xavier como "filantropo" e "espírito iluminado" - , chega mesmo, com seu pretenso realismo, a adotar posturas constrangedoras.

É o caso dos "isentões" que, em parte, "não seguem o espiritismo", chegam mesmo a apostar na tese de que as "psicografias" não são "verdadeiras nem falsas". Usam argumentos falaciosos, como alegar, como se vê no exemplo de Alexandre Caroli Rocha (acadêmico admirado pelos "isentões espíritas e não-espíritas"), que as "psicografias" dependem de "análises mais rigorosas sobre mediunidade e mundo espiritual".

O grande problema, nessa abordagem, é que não há retirada de circulação nem outro tipo de proibição para obras supostamente psicográficas, num país que se começa a discutir as fake news. Pelo contrário, as supostas psicografias são disponibilizadas impunemente, constantemente de forma gratuita, e quase sempre usando não só nomes de grandes literatos ou personalidades políticas, mas também famosos falecidos nos últimos anos.

Chega-se ao cinismo de defender a "liberdade da fé", o "direito" de acreditar ou não nas tais "autorias espirituais", o que é um terrível acinte à memória de personalidades mortas, que podem, assim, ser responsabilizadas por mensagens que nunca diriam em vida e nem se estivessem mudando de posição no além-túmulo.

Mas, independente disso, é constrangedor e vergonhoso que se aceite que supostos médiuns virem "donos de mortos". E não são só os "médiuns" mais recentes, como Fernando Bem, acusado de usar dados das redes sociais para forjar "psicografias". Fala-se do próprio Chico Xavier, o "ex-espírito de luz" hoje rebaixado, postumamente, a "espírito bom, mas endividado e imperfeito".

O que ele fez com Humberto de Campos, segundo muitos consideram, nem um inimigo seria capaz de fazer. A sorte que temos é que uma pessoa como Guilherme de Pádua, que assassinou a atriz Daniella Perez, tornou-se um pastor evangélico, da seita neopentecostal Igreja Batista da Lagoinha (uma das seitas apoiadoras de Jair Bolsonaro).

Imagine se Guilherme de Pádua, em vez de evangélico, tivesse se tornado "espírita" e virado "médium". Fazer promoção pessoal usando a vítima como sua suposta parceira espiritual, publicando mensagens igrejistas em nome dela, inventando que conversa com ela frequentemente - à maneira que, por exemplo, o baiano José Medrado diz "conversar" com o espírito do pintor Claude Manet - , seria assustador.

Consta-se que Chico Xavier se apropriou do nome de Humberto de Campos como revanche para uma resenha de desaprovação que o autor maranhense fez ao livro Parnaso de Além-Túmulo, publicada em duas partes no Diário Carioca, em 1932.

Chico Xavier não gostou que Humberto de Campos, em vida, lhe tenha desaconselhado a seguir adiante com a "literatura dos mortos" - que, ao que tudo indica, o maranhense usou de sua ironia para, supostamente, reconhecer "semelhanças" com as obras originais - para evitar concorrer com a literatura dos vivos, definida, pelo cronista, como um ganha-pão dos escritores.

Dois anos depois, Humberto adoeceu repentinamente e morreu, com apenas 48 anos. Maldição de Chico Xavier? Não se sabe, embora tal suposição faça sentido. O certo é que Chico Xavier, com o mesmo "instrumento" com que, mais tarde, alegou as supostas profecias da "data-limite" (que se tornaram um fiasco em 2019, apesar de Juliano Pozati faturar em torno dessa "profetização"), um simples ato de sonhar durante o sono, inventou que Humberto teria se destacado de uma multidão, cumprimentado Chico Xavier e combinado uma "parceria mediúnica".

A narrativa oficial em torno de Chico Xavier indica uma "motivação fraterna" da suposta parceria mediúnica, reforçada com uma tendenciosa reconciliação com o filho do mesmo nome, Humberto de Campos Filho, que, com a mãe e os irmãos, processava o "médium", foi atraído para um espetáculo de doutrinação religiosa e assistencialismo, em 1957, já com a mãe e viúva do escritor, Carolina Vergolino de Campos, falecida.

Todavia, são atos de puro oportunismo, e vemos o quanto, ao sabermos da acidental revelação de Ana Lorym Soares de que a "Federação Espírita Brasileira" realizava fraudes nas psicografias, com alterações editoriais, até mesmo depois da primeira edição ou mesmo de posteriores, que contavam com a colaboração até de familiares de dirigentes e funcionários da FEB e que contavam com o apoio explícito, entusiasmado e colaborativo do próprio Chico Xavier, desmentindo a tese de que ele teria sido "vítima" desse processo.

Chico Xavier está sendo denunciado, em várias páginas da Internet, e a partir do próprio portal "Obras Psicografadas" (www.obraspsicografadas.org), que, infelizmente, teve seu acesso dificultado por conta de um aplicativo MySQL que, sem ele, impossibilita a consulta do portal. Para os entendedores de Informática, o MySQL requer criação de conta e uma série de processos para ser baixado no computador. Não é apenas um programa comum para ser baixado, seu processo é demorado e o fato de depender de usuário e senha causa arrepios em tempos complicados como os atuais.

Já chamam atenção as fraudes de Chico Xavier e sua trajetória arrivista, manifesta desde seu medo em assumir o roustanguismo - apesar do "médium" ser a mais fiel tradução de Jean-Baptiste Roustaing para a realidade brasileira - até a morte suspeita do sobrinho Amauri Xavier, a qual rendem suspeitas de "queima-de-arquivo" (assassinato de informantes), motivado pelo envenenamento (ameaça já descrita em matéria da revista Manchete), crime infelizmente impossível de reabrir investigação, por estar prescrito, tendo ocorrido em 1961, há quase seis décadas.

Diante dessa realidade, Chico Xavier tornou-se um "pepino" para o "movimento espírita", que não quer abrir mão dele, apesar dos escândalos que o fazem nivelar-se àqueles que o "médium" apoiou, como Zé Arigó e João de Deus.

Atualmente, há um silêncio sepulcral em torno de Chico Xavier do qual ninguém nega nem afirma coisa alguma. As provas de que ele apoiou e até colaborou com a ditadura militar, maquiando os danos do "milagre brasileiro" (que, sob a ilusão do "Brasil Grande", agravou a pobreza da população e as convulsões sociais que aumentaram a violência) com assistencialismo e "cartas mediúnicas", tendo se tornado, nesse sentido, o Luciano Huck de seu tempo, não são oficialmente reportadas pela mídia nem postas a exame por acadêmicos, jornalistas e juristas.

O que se vê é uma passagem de pano, metáfora para pessoas que deixam para lá quando uma pessoa denunciada é alguém que atende a interesses em jogo e, por isso, tem que ser poupado de alguma punição ou consequência grave. Até porque Chico Xavier, que deve, simbolicamente, migrar da imagem de um "Jair Bolsonaro do bem" para uma espécie de "Luciano Huck vintage", precisa ser guardado para ser usado, pelas classes dirigentes, como um suposto pacifista e pretenso filantropo, para os tempos vindouros.

A lógica das classes dirigentes é que, com o desgaste do bolsonarismo e das religiões protagonistas neste cenário, as seitas evanélicas neopentecostais, se use Chico Xavier como o "injustiçado profeta do bem", como um pastiche de Jesus Cristo desenvolvido pela ditadura militar para anestesiar as populações naqueles tempos de crise. Chico Xavier, que apesar do visual antiquado e das ideias medievais, é visto como "dono do futuro", seria o símbolo de "novos tempos" de "confraternização brasileira" pós-Bolsonaro e pós-pandemia.

E mesmo que Chico Xavier "volte" de mãos dadas com Luciano Huck, o establishment pós-bolsonarista tentará, mais uma vez, "vender" o "médium" para as esquerdas, como um suposto símbolo de pacificação, progresso humano e fim das polarizações. E exaltado por uma caridade fajuta, dos níveis do referido apresentador do Caldeirão do Huck e tão fajutas que qualquer Elon Musk (empresário que confessou ter financiado o golpe contra Evo Morales na Bolívia) pode praticar, sem acrescentar mérito algum a isso.

É uma manobra sutil e traiçoeira, por trás de dóceis palavras vindas de lábios sorridentes: a ideia de oferecer um "médium de direita" como Chico Xavier para a apreciação complacente de setores de esquerda iludidos com a imagem do "médium" carregando bebês pobres no colo e falando de um "Brasil melhor", ignorando que o religioso sempre fazia apologia ao sofrimento humano e o "futuro" era apenas uma desculpa para prometer melhorias que o tempo presente demonstra impossíveis. 

É aquela conversa de um "amanhã melhor" que nunca chega, porque ele nunca se transforma no "hoje", ele tem que ser sempre "amanhã" e, quando se torna o "hoje", há uma pressa dos conservadores de plantão para transformar o "hoje melhor" num "ontem", devolvendo ao presente a desgraça e a mediocridade costumeiras, que aliás são a linha do "atual espiritismo brasileiro".

Com isso, vemos "isentões", sejam eles "espíritas" ou "não-espíritas", ou os "ateus graças a Deus" que cortejam Chico Xavier, todos com seu verniz de "imparcialidade", "equilíbrio" e uma suposta racionalidade não muito diferente daquela do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso ou de burocratas de toda ordem que recorrem ao tecniquês para justificar medidas nocivas à população e contrárias, portanto, ao interesse público.

Daí a nova fase do "espiritismo isentão", que demonstra estar feliz com a realidade caótica e com os problemas sérios existentes no país. O "isentão" é o novo conservador, a defender, agora, um sistema de valores marcado pela imperfeição, pela mediocridade, pelos infortúnios, corrupções e outros crimes, uma sociedade "nem tão boa nem muito ruim" na qual os problemas permanecem como zonas de conforto para pessoas que se dizem "gente como a gente" e que parecem resignadas com os defeitos da espécie humana.

Daí que eles não se incomodam quando se rebaixa Chico Xavier de "espírito de luz" para "médium endividado", "retirando" ele do "jantar dos puros" do imaginário dos antigos seguidores, para colocá-lo no contexto do "gente como a gente" que produz tanto bolsonaristas como "isentões" que se recusam a serem associados ao bolsonarismo, mas, mesmo assim, surgiram sob as mesmas condições sociológicas que permitiram a vitória eleitoral do "capitão".