Homofobia e anti-aborto em Chico Xavier

 

Religioso tradicionalista, Francisco Cândido Xavier destoa, até com muita evidência, da imagem "moderna" e "progressista" que se vende do "espiritismo" brasileiro, há pelo menos 45 anos. Defendendo valores que remetem à Teologia do Sofrimento, corrente radical do Catolicismo da Idade Média, Chico Xavier realizou a proeza de tornar o legado kardeciano ainda mais medieval do que a Igreja Católica que dominou o Velho Mundo entre o século V e o século XV.


Isso porque as ideias espíritas originais foram abandonadas ou, quando muito, distorcidas ao sabor das conveniências. A alegada "fidelidade absoluta" e "respeito rigoroso" a Allan Kardec é só conversa para boi dormir, porque aqueles que a dizem, no Brasil, são quase sempre os primeiros a trair os ensinamentos do professor lionês, de maneira pior, constante e ainda mais hipócrita do que a traição que Judas Iscariotes fez a Jesus Cristo.


O Brasil está desinformado da própria deturpação feita no "movimento espírita", de forma que se permite que a narrativa oficial e mentirosa do "espiritismo" brasileiro, no qual se defende a "catolicização" como um processo "acidental e saudável", usando como desculpa as "tradições populares da religiosidade brasileira", que supostamente "não ferem" os ensinamentos do Espiritismo original.


Essa narrativa torna-se mentirosa, uma vez que a "catolicização do Espiritismo" apresenta aspectos mais perversos do que se imagina. Como ocorre em toda novidade que é introduzida no Brasil, que em vez de superar velhas correntes se adapta a elas, o "espiritismo" brasileiro aproveitou as mudanças que a Igreja Católica exerceu nos últimos séculos para acolher os católicos medievais que se sentiram traídos e frustrados com as modificações sofridas pela religião ao longo do tempo.


Com isso, o "espiritismo" brasileiro virou um refúgio para católicos medievais, já nos primórdios do "movimento espírita", em 1884, quando foi fundada a "Federação Espírita Brasileira". A ascensão de Chico Xavier, em 1932, já reforçava esse caráter católico-medieval, quando Parnaso de Além-Túmulo já apresentava as ideias ultraconservadoras do "bondoso médium", como a servidão e a conformação com a desgraça humana.


A homofobia e a rejeição radical ao aborto são ideias que sempre foram explicitamente manifestas por Chico Xavier, da mesma maneira que todo conservador e reacionário sempre se manifestou. A posição anti-aborto - definida como "pró-vida", apesar de seus partidários "lavarem as mãos" diante de outros fenômenos anti-vida, como as mortes das gestantes em gravidez de risco ou, fora desse âmbito, a ação do feminicídio, que ceifa a vida de potenciais mães - as pessoas até aceitam que seus valores associados sejam defendidos por Chico Xavier.


Em Vida e Sexo, de 1970, atribuído, em tese, ao espírito Emmanuel, a posição anti-aborto de Chico Xavier é bastante explícita e chocante, dentro das mesmas alegações que qualquer bolsonarista evangélico costuma argumentar. Vejamos:


"[…] De todos os institutos sociais existentes na Terra, a família é o mais importante, do ponto de vista dos alicerces morais que regem a vida. […] Com semelhantes notas, objetivamos tão só destacar a expressão calamitosa do aborto criminoso, praticado exclusivamente pela fuga ao dever. Habitualmente - nunca sempre - somos nós mesmos quem planifica a formação da família, antes do renascimento terrestre, com o amparo e a supervisão de instrutores beneméritos, à maneira da casa que levantamos no mundo, com o apoio de arquitetos e técnicos distintos. Comumente chamamos a nós antigos companheiros de aventuras infelizes, programando-lhes a volta em nosso convívio, a prometer-lhes socorro e oportunidade, em que se lhes reedifique a esperança de elevação e resgate, burilamento e melhoria. Criamos projetos, aventamos sugestões, articulamos providências e externamos votos respeitáveis, englobando-nos com eles em salutares compromissos que, se observados, redundarão em bênçãos substanciais para todo o grupo de corações a que se nos vincula a existência. Se, porém, quando instalados na Terra, anestesiamos a consciência, expulsando-os de nossa companhia, a pretexto de resguardar o próprio conforto, não lhes podemos prever as reações negativas e, então, muitos dos associados de nossos erros de outras épocas, ontem convertidos, no Plano Espiritual, em amigos potenciais, […] fazem-se hoje - e isso ocorre bastas vezes, em todas as comunidades da Terra - inimigos recalcados que se nos entranham à vida íntima com tal expressão de desencanto e azedume que, a rigor, nos infundem mais sofrimento e aflição que se estivessem conosco em plena experiência física, na condição de filhos-problemas, impondo-nos trabalho e inquietação. Admitimos que seja suficiente breve meditação, em torno do aborto delituoso, para reconhecermos nele um dos grandes fornecedores das moléstias de etiologia obscura e das obsessões catalogáveis na patologia da mente, ocupando vastos departamentos de hospitais e prisões".


Mesmo diante de episódios como os das meninas de Coari, Amazonas, e São Mateus, Espírito Santo, vítimas da gravidez prematura depois de quatro anos estupradas, não sensibilizaram os "espíritas" e nem sensibilizaria Chico Xavier. 


A menina de Coari, estuprada pelo pai, concluiu a gravidez aos 13 anos, seu filho nasceu e sobreviveu, mas ela morreu por complicações do parto. Já a de São Mateus, estuprada pelo tio, teve que fazer aborto para salvar sua vida. A Justiça capixaba autorizou a cirurgia, realizada longe, em Recife, mas quase foi impedida por uma manifestação de fundamentalistas religiosos.


Sobre o caso de Coari, a "doutrina" de Chico Xavier, essencialmente não muito diferente do conservadorismo conhecido apenas entre neopentecostais e parte dos católicos, teria felicitado o caso, pelo pretexto de que a mãe "encerrou sua missão existencial" e deu ao filho "a oportunidade de uma nova existência". Esquece essa doutrina que a mãe estava com um compromisso de vida já em plano, enquanto o do filho nem começou. Por ironia, "aborta-se" o que já foi começado na vida da gestante.


Já a homofobia, parte dos chiquistas reage com estranheza. Chico Xavier falava com jeito que muitos acreditam ser efeminado. Houve narrativas que supuseram que Chico Xavier tinha encarnações anteriores quase sempre femininas, entre elas a suposta personagem Flávia, filha de Públio Lentulus, de duvidosa existência, mas creditado na obra "realista" Há Dois Mil Anos, atribuída a Emmanuel. A falsa imagem de "progressista" que Chico Xavier carrega na posteridade - apesar de seu reacionarismo radical em toda sua vida - reforça a suposição de que ele seria apoiador da causa LGBTQ.


Uma declaração, escrita no livro Vida e Sexo, e a declaração do próprio Chico Xavier no Pinga Fogo da TV Tupi, em 1971, fazem uma grande pegadinha ao alegar que "os homossexuais merecem o mais absoluto respeito". Vejamos o livro:


"A homossexualidade, hoje chamada também transexualidade, definindo-se, no conjunto de suas caraterísticas, por tendência da criatura para a comunhão afetiva com outra criatura do mesmo sexo, não encontra explicação fundamental nos estudos psicológicos de base materialista mas é perfeitamente compreensível à luz da reencarnação.


Embora a sociedade terrena seja constituída, em sua maioria, por criaturas heterossexuais, o mundo vê, na atualidade, em todos os países, extensas comunidades de irmãos em experiências dessa espécie, somando milhões de homens e mulheres solicitando atenção e respeito, em pé de igualdade ao respeito e à atenção devidos aos heterossexuais.


A vida espiritual pura e simples rege-se por afinidades eletivas essenciais; contudo, através de milênios e milênios, o Espírito passa por fileira imensa de reencarnações, ora em posição de feminilidade, ora em condições de masculinidade, o que sedimenta o fenômeno da bissexualidade, mais ou menos pronunciado, em quase todas as criaturas.


O homem que abusou das faculdades genésicas, arruinando a existência de outras pessoas com a destruição de uniões construtivas e lares diversos, é em muitos casos induzido a buscar nova posição, no renascimento físico, em corpo morfologicamente feminino, aprendendo, em regime de prisão, a reajustar os próprios sentimentos, ocorrendo o mesmo com a mulher que tenha agido de igual modo".


Embora fingindo compreender "respeito e atenção" aos homossexuais, note-se que Chico Xavier evitou a palavra "apoio". O "respeito e a atenção" se dão na condição de "enfermos psicológicos", portadores de uma "confusão mental" na reencarnação sob o gênero oposto - homem reencarnando como mulher e vice-versa - e o último parágrafo do trecho selecionado mostra a postura da "cura gay", que consideramos, de maneira verídica, ter tido em Chico Xavier seu defensor, não sendo portanto uma especulação de fake news, só porque o termo não era usado com estas palavras.


Vejamos a declaração no Pinga Fogo:

"ALMYR GUIMARÃES Chico, tem aqui uma pergunta de dona Maria Lúcia Silva Gomes. Pergunta: "Como se explica o homossexualismo e a perturbação no comportamento sexual à luz da doutrina espírita?"


CHICO XAVIER Temos tido alguns entendimentos com Espíritos amigos e notadamente com Emmanuel a esse respeito.


O homossexualismo, tanto quanto a bissexualidade ou bissexualismo como a assexualidade são condições da alma humana. Não devem ser interpretados como fenômenos espantosos, como fenômenos atacáveis pelo ridículo da humanidade. Tanto quanto acontece com a maioria que desfruta de uma sexualidade dita normal, aqueles que são portadores de sentimentos de homossexualidade ou bissexualidade são dignos do nosso maior respeito. E acreditamos que o comportamento sexual na humanidade sofrerá de futuro revisões muito grandes, porque nós vamos catalogar, do ponto de vista de ciência, todos aqueles que podem cooperar na procriação e todos aqueles que estão numa condição de esterilidade.


A criatura humana não é só chamada à fecundidade física, mas também à fecundidade espiritual. Quando geramos filhos, através da sexualidade dita normal, somos chamados também à fecundidade espiritual, transmitindo aos nossos filhos os valores do espírito de que sejamos portadores.


Não nos referimos aqui aos problemas do desequilíbrio nem aos problemas da chamada viciação nas relações humanas. Estamos nos referindo a condições da personalidade humana reencarnada, muitas vezes portadora de conflitos que dizem respeito seja à sua condição de alma em prova ou à sua condição de criatura em tarefa específica.


De modo que o assunto merecerá muito estudo e poderemos voltar a ele em qualquer tempo que formos convidados. Porque nós temos um problema em matéria de sexo na humanidade, que precisaríamos considerar com bastante segurança e respeito recíproco.


Se as potências do homem na visão, na audição, nos recursos imensos do cérebro nos recursos gustativos, nas mãos, na tatilidade com que as mãos executam trabalhos manuais, nos pés; se todas essas potências foram dadas ao homem para a educação, para o rendimento no bem, isto é, potências consagradas ao bem e à luz em nome de Deus, seria o sexo, em suas várias manifestações, sentenciado às trevas?".


Embora Chico Xavier tente ser prolixo para disfarçar sua homofobia, podemos ver neste depoimento, assim como no texto de Vida e Sexo, a síntese de seu pensamento, que se encaixa perfeitamente no conceito de "cura gay", que não aparece no ideário xavieriano com estas palavras, assim como a Teologia do Sofrimento, que sabemos aparece no pensamento do "médium" como um conceito "sem rótulo", mas com todas as suas ideias presentes:


1) A comunidade LGBTQ é acolhida pelos "espíritas", sob a desculpa da "atenção e respeito", como "enfermos morais";


2) O homossexualismo é entendido não como uma escolha pessoal, mas como um processo resultante de conflitos psicológicos (confusão mental) da pessoa que reencarna sob um gênero oposto. 


3) Em muitos casos, o "espiritismo" brasileiro atribui a reencarnação sob o sexo oposto como um "castigo" por faltas cometidas na encarnação anterior, conforme o moralismo punitivista da religião brasileira consagrada por Chico Xavier;


4) A recomendação de Chico Xavier é que as pessoas que reencarnam sob o sexo oposto modifiquem seus pensamentos e se adaptem à nova condição de gênero determinada no nascimento, levando em conta a missão de formar Família e cumprindo as condições biológicas impostas por Deus.


DESÍGNIOS DE DEUS


O que faz com que constatemos a homofobia e o anti-aborto nas ideias de Chico Xavier é que ele se fundamentava numa ideia primária: a obediência absoluta aos desígnios de Deus. Esse é um princípio que esteve em sua obra no começo ao fim, não havendo lógica de qualquer subversão como certas correntes do chiquismo tentam nos fazer crer.


É justamente a "obediência a Deus" que faz com que Chico Xavier defenda posturas que causem choque a seus seguidores, como preferir que uma menina de 10 anos realize sua gravidez até o fim e depois morra, como a menina de Coari, e estabelecer a "cura gay", ou seja, a reeducação do homossexual para abrir mão dessa postura social e agir em respeito à condição genésica determinada biologicamente no nascimento.


Não podemos fugir dessa postura e idealizar em Chico Xavier posições que ele em nenhum momento iria assumir. Por graves equívocos, simpatizantes e adeptos do "médium" já o definiram erroneamente como "marxista", "ativista LGBTQ", "alma-gêmea do ex-presidente Lula" e outras tolices, quando até mesmo a precarização do trabalho era mais preferível ao "médium" do que as lutas sindicais.


Chico Xavier preferia que o trabalhador tenha uma jornada exaustiva, com perdas salariais, mediante os abusos de patrões e colegas de trabalho, com base na ideia meritocrática de "serviço", ou seja, servidão, dentro da ideia de "servir a Deus através do trabalho do homem", no qual se recomenda a submissão e a relativa recompensa de uma modesta remuneração, que garanta apenas as condições mínimas de sobrevivência, ainda que sem alcançar uma qualidade de vida digna e satisfatória.


Os brasileiros, entorpecidos pelas paixões religiosas, que lhes incutem uma cegueira emocional que atrofia a percepção da realidade, não admitem que Chico Xavier foi um ultraconservador convicto e, digamos, dos mais radicais. Ainda vivem por uma imagem idealizada que mais parece tirada de alguma novela ou algum filme de fantasia, e por isso renegam que o "bondoso médium" tenha sido capaz de defender ideias tão obscurantistas.


Mas vendo as ideias de Chico Xavier, em livros e depoimentos, nota-se que seu ultraconservadorismo é um fato verídico, que não deve ser entendido como fruto de impressões de certas pessoas incomodadas com as ideias do "bondoso médium".


Em outras palavras, não é opinião considerar que Chico Xavier era ultraconservador. Não é uma sensação de desagrado com certas ideias do "médium" que vale defini-lo dessa forma. São fatos e se estendem ao apoio ostensivo que Chico Xavier deu à ditadura militar e que rendeu condecoração e palestras na Escola Superior de Guerra. Nem esse fato pode ser relativizado, porque a lógica dos fatos revela que Chico Xavier foi não só apoiador, mas colaborador estratégico da ditadura militar.


Por isso é que é imperativo que as pessoas deixem de lado suas fantasias emocionais. A ideia de um Chico Xavier "isento" ou "progressista" agrada muita gente, mas não encontra sustentação na realidade. Não é porque vivemos na Terra que tenhamos que invalidar a realidade, quando ela se volta contra um ídolo como Chico Xavier, da mesma forma que também não faz sentido defender que a ilógica, o absurdo e a fantasia sejam vistos como "realistas e lógicos" no mundo espiritual.


Idealizar Chico Xavier pode agradar as pessoas, fabricar consensos pelas boas impressões que isso causa e deixar multidões tranquilas. Mas isso se torna uma grande e perigosa ilusão, porque em dado momento sempre haverá uma ocasião de decepção, o que trará irritação, fúria e teimosia àqueles que antes se julgavam gozar de "elevadas vibrações". Sabe-se que essas "elevadas vibrações" não passam de perigosas fantasias, a serviço do fanatismo religioso e do culto à personalidade que garantiu a fama de Chico Xavier, o maior e mais perigoso mistificador da história do nosso país.