O perigo de associar a ideia de "paz" a um único homem, ainda mais Chico Xavier
Surge nos bastidores do "espiritismo" brasileiro uma tendência sob a qual seus propagandistas diretos e indiretos - devemos levar em conta o "exército" de "não-espíritas" e supostos ateus nesse processo - tentam anunciar um "novo tempo de paz", com apelos piegas e um aparente otimismo de que "tudo vai melhorar", sem que se levasse em conta condições objetivas para tanto.
Evidentemente, o principal sujeito dessa campanha é Francisco Cândido Xavier, promovido, nos últimos 45 anos, a um ídolo religioso nos moldes de Madre Teresa de Calcutá, associado a um modelo conservador de "ativismo social" e "filantropia"que nem de longe ameaça os privilégios das classes ricas, que apenas podem dar parte do que tem desde que seja apenas uma pequena parte, incluindo bens obsoletos, donativos de segunda categoria e uma pequena quantidade financeira.
Essa caridade não traz méritos reais, embora sua propaganda fosse estranhamente extrema. Mas isso se torna suspeito quando os "filantropos" são pessoas como Bill Gates, Elon Musk - que revelou participação no recente golpe político na Bolívia - e o nosso Luciano Huck, que em primeira hora se assumiu admirador de Chico Xavier, tendo visitado o "médium" no final da vida e tendo assistido ao filme biográfico, além de realizar o quadro "Lata Velha", no Caldeirão do Huck, nas duas cidades mineiras associadas ao religioso, Pedro Leopoldo e Uberaba.
Os brasileiros não conseguem entender, mas essa caridade não pode, ao mesmo tempo, "aliviar a dor do sofrimento" e "transformar vidas", porque uma coisa contraria a outra. Uma caridade que transforma vidas não alivia a dor do sofrimento, porque o sofrimento torna-se, simplesmente, extinto, assim como a sua dor, que não é "aliviada", porque já acabou.
Além disso, pouca gente sabe que a verdadeira caridade pouco tem a ver com o protagonismo do aparente benfeitor. Se a suposta caridade de Chico Xavier lhe rende protagonismo e muito alarde, é sinal de alguma coisa suspeita, que envolve promoção pessoal e fanatismo religioso.
A própria ênfase, em níveis exagerados, da suposta humildade de Chico Xavier, requer desconfiança. Lembremos de ditados muito sábios, que nos chamam atenção para supostas qualidades e atitudes que parecem "maravilhosas demais", dentro de uma realidade nem tão maravilhosa assim. Isso é um outro assunto que merece maior análise.
O que se sabe é que existe um lobby em torno de Chico Xavier que oculta seu passado sombrio, de produção de literatura fake - mesmo quando até simpatizantes e aliados não escondem as fraudes pelas modificações editoriais das "psicografias" - e de defesa, mesmo dentro da obra doutrinária, de pontos de vista reacionários. Um texto enumera um reacionarismo, em Chico Xavier, que muita gente ainda desconhece ou se recusa a admitir, enfeitiçada pelo mito do "bondoso médium".
O lobby insiste numa narrativa que se monopolizou dos anos 1970 para cá, que concebe o mito de Chico Xavier como se fosse o equivalente, no mundo adulto e numa realidade que se pretende "objetiva", das princesas e fadas-madrinhas do imaginário infantil. Uma imagem adocicada, piegas, que não obstante é cheia de fantasias e idealizações, e que contamina, pasmem, até mesmo o terreno contestatório e mobilizador das esquerdas sócio-políticas brasileiras.
Essa imagem, tão defendida com apelos bastante piegas que nem mesmo o jornalismo investigativo, o inquérito jurídico e o questionamento acadêmico se encorajam em desfazer, tenta a todo custo sobreviver a tudo quanto é impasse. A Verdade não toca em Chico Xavier, sendo obrigada a se tornar "escrava" do "médium" e não destruir o mito que se repousa em torno dele.
BELAS ATRIZES
O lobby do "espiritismo" brasileiro agora se utiliza de belas atrizes de televisão para propagar a doutrina roustanguista - mas oficialmente definida como "espiritismo kardecista" - como uma suposta doutrina da "paz", do "futuro" e da "caridade".
Nos últimos tempos, tivemos a atriz Regiane Alves fazendo filme sobre Divaldo Franco, quando este ainda tinha crédito, antes de ser desmascarado pelo seu reacionarismo declarado num encontro "espírita" em Goiás, em fevereiro de 2018. Recentemente, a campanha ganhou a adesão de outras atrizes, Fernanda Souza, conhecida pelo seriado Toma Lá Dá Cá, e Maria Paula Fidalgo, com passagem na MTV Brasil e tendo se consagrado pelo humorístico Casseta & Planeta Urgente. Ambas agora se anunciam como "engajadas pela paz e fraternidade".
Fernanda Souza, recentemente, emprestou seu perfil no Instagram para uma palestra em transmissão ao vivo (conhecida como live) com o cineasta e escritor Juliano Pozati, no empenho de requentar a já desgastada farsa da "data-limite" de Chico Xavier, uma suposta profetização, condenada pela Doutrina Espírita original, cheia de erros de abordagem e que não se realizou de forma esperada em 2019, ano de sua conclusão de 50 anos.
O pretexto da live era relacionar a "data-limite" à pandemia da Covid-19, usando como pretextos os "recados fraternais" da suposta profecia. É curioso, também, que Pozati recentemente "enxugou" a "profecia" de Chico Xavier, retirando dela os aspectos negativos, relacionados a cataclismas e outras fatalidades, que foram alvo de conflitos entre os seguidores do "médium". Restaram apenas aspectos "mais positivos", relacionados aos mesmos apelos do "espiritismo" igrejista brasileiro.
Agora é a vez da atriz Maria Paula, que em sua participação, através de uma live, no programa Conversa Com Bial (agora adaptado às residências dos interlocutores, devido à pandemia), disse que Chico Xavier "previu" que ela seria famosa e faria muito sucesso no Brasil. A justificativa da atriz para o que ela define como "premonição" é risível: um elogio dado a ela quando ela era bebê.
"Ele (Chico Xavier) estava com um grupo de pessoas, mas, de repente, veio na direção da minha mãe que estava comigo no colo. Sem nunca terem se visto, ele a chamou pelo nome e disse que estava muito feliz de vê-la na cidade. E disse mais: Maria Paula (passando a mão na minha cabeça) será muito conhecida e que trará muita alegria para os brasileiros", disse ela.
O relato é vago e extremamente superficial. De que forma Maria Paula seria "muito conhecida" e traria "muita alegria para os brasileiros"? A mensagem do "médium" foi mais um daqueles elogios que se dá a um bebê, e não há o menor fundamento, por mais que o pensamento desejoso desse sentido a especulações de caráter sentimental, de que havia uma "premonição" nesse comentário.
O mais irônico nessa declaração é que Maria Paula a fez quando ela mesma atravessa um período de ostracismo, esquecida do grande público e já há muito tempo sem ser "muito conhecida" nem "trazer alegria para muitos brasileiros".
Em outra ironia, até mesmo um ex-colega seu da MTV Brasil, que nem aparecia, então, em frente das câmeras, por ser diretor de Jornalismo da emissora, o apresentador Zeca Camargo, se mantém em evidência mesmo depois de sair da Rede Globo, após aproveitamentos menores na emissora. Mesmo em atuações de baixa audiência, Zeca, hoje na TV Bandeirantes, sempre procurou se manter em cartaz na mídia, diferente da ex-Casseta, que mesmo continuando a carreira permanece "apagada" dos holofotes.
Outro dado que devemos considerar é que Pedro Bial, neste caso, nem de longe resolveu contestar a figura de Chico Xavier, se esquecendo que o "bondoso médium" apadrinhou João Teixeira de Faria, o João de Deus, latifundiário e acusado de charlatanismo, como pretenso "médium", contrariando as teses de que o goiano "nunca foi espírita". Neste caso, porém, Bial nem de longe se interessou a investigar os pontos arrepiantes da trajetória de Chico Xavier, acusado de se promover, entre outras coisas, com a usurpação dos nomes dos mortos.
O apadrinhamento aconteceu em 1993, dez anos depois de começarem as denúncias sobre os crimes de João de Deus ocorridos desde 1972 - que envolvem assédio sexual, porte ilegal de armas e comercialização indevida de remédios terapêuticos - , o que derruba qualquer teoria em favor de Chico Xavier, seja como suposto profeta, seja como alguém que "cometeu muitos erros na juventude, mas depois aprendeu a lição".
Chico Xavier quis ele mesmo ser profeta? Ou ele usou sua "carteirada" religiosa para ficar papeando banalidades, entre sonhos e comentários rotineiros, que seus seguidores entendem como "profecia"? Ainda vamos analisar isso, mas o que se sabe é que ele usou de sua "carteirada" para dominar e influenciar as pessoas, algo que contraria frontalmente os ensinamentos do Espiritismo original.
O grande perigo dessa atitude é que Chico Xavier acaba "privatizando" as virtudes humanas em torno de sua própria pessoa, referentes sobretudo à paz e à caridade, num contexto em que o ódio tornou-se "coisa pública", acessível principalmente aos bolsonaristas, empoderados em suas neuroses, abusos, estupidezas e crimes.
E o próprio Chico Xavier nem teve realmente essas virtudes. Nos bastidores, ele era ranzinza, suas ideias doutrinárias são de um reacionarismo medieval aos níveis quase totalmente bolsonaristas (só exclui o caso do uso de armas), e como filantropo fez coisas tão fajutas quanto Luciano Huck faz hoje.
Até mesmo no "não-cumprimento" da caridade Chico Xavier se assemelha a Luciano Huck, pois, se o apresentador do Caldeirão do Huck não tira os recursos do próprio bolso para "ajudar o próximo", dependendo dos patrocinadores e do público, o "médium" não tirava do bolso sua "caridade", dependendo dos seguidores que vêm com dinheiro e mantimentos. É a metáfora da cigarra que nada faz mas busca se promover às custas do trabalho das formigas.
Lembremos que Chico Xavier não permaneceu pobre e, como "médium", ele apenas renunciou tocar em dinheiro. O seu "voto de pobreza" foi um mito feito para iludir a opinião pública, porque ele renunciou formalmente ao lucro da venda de seus livros, mas ele continuava sendo sustentado, vivendo do bom e do melhor - apenas sob o aparato da "simplicidade" e "humildade" - sob o sustento da "Federação Espírita Brasileira".
É terrível que Chico Xavier seja visto como uma suposta personificação da paz e da fraternidade, diante de uma obsessão mesquinha e leviana de transformá-lo em um suposto "Jesus Cristo brasileiro", com supostos poderes de um Nostradamus e pretensa reputação científica e intelectual. É um perigo que só serve a pessoas tomadas de cegueira emocional, que, mesmo ligadas a "ideias boas", "estórias lindas" e tudo que parecer alegre e agradável, podem soar bastante traiçoeiras e macabras.
Sobre supostos médiuns e supostos espíritos, fiquemos então com o que Allan Kardec, sabiamente, alertou no Capítulo 20, Influência Moral dos Médiuns, num trecho do item 230 em O Livro dos Médiuns, através de publicação de uma mensagem de Erasto:
"Os médiuns levianos, pouco sérios, chamam, pois, os Espíritos da mesma natureza. É por isso que as suas comunicações se caracterizam pela banalidade,a frivolidade, as idéias truncadas e quase sempre muito heterodoxas, falando-se espiritualmente.(8) Certamente eles podem dizer e dizem às vezes boas coisas, mas é precisamente nesse caso que é preciso submetê-las a um exame severo e escrupuloso. Porque, no meio das boas coisas, certos Espíritos hipócritas insinuam com habilidade e calculada perfídia fatos imaginados, asserções mentirosas, como fim de enganar os ouvintes de boa fé.
Deve-se então eliminar sem piedade toda palavra e toda frase equívocas, conservando no ditado somente o que a lógica aprova ou o que a Doutrina já ensinou".