Chico Xavier nunca foi deturpado. Ele É o deturpador!
O clima se assemelha a uma grande confusão, quando uma pessoa grita, numa grande aglomeração de pessoas, que alguém furtou. "Pega ladrão!", grita esse indivíduo, enquanto pessoas correm para tudo quanto é canto, apavoradas, e suspeitos dos mais diversos tipos surgem, assim como supostas vítimas. O furto pode ter ocorrido ou não, mas boatarias diversas surgem e se desencontram em narrativas.
No que se diz à deturpação do Espiritismo, do qual a verdadeira tese é a de que o "espiritismo" brasileiro, através do roustanguismo assumido dos tempos de Adolfo Bezerra de Menezes e do roustanguismo disfarçado, porém meticulosamente adaptado por Francisco Cândido Xavier (em que pese o medo deste em se assumir roustanguista), cometeu sérios e gravíssimos desvios doutrinários, a ponto de substituir o cientificismo original pelo Catolicismo medieval redivivo no igrejismo "espírita" brasileiro.
Mas essa verdade, indiscutível e cheia de provas e advertida pela própria literatura original espírita - que, décadas antes, falava dos "inimigos internos da Doutrina Espírita" - , atinge interesses diversos da "Torre de Babel" interna do "movimento espírita", de forma que pessoas diversas, de Alamar Régis Carvalho a Franklin Félix, passando por Orson Peter Carrara, José Medrado, Divaldo Franco, Ana Cláudia Laurindo, Carlos Baccelli e João de Deus, precisam inventar seus "deturpadores" de brinquedo.
Uns atribuem a deturpação espírita a cobrança de dízimos, inventando um "inimigo interno" tão externo que ele está lá longe, na Igreja Universal, ameaçando o Espiritismo. Uns atribuem a deturpação espírita a anônimos "Constantinos" - alusão ao Imperador Constantino, fundador do Catolicismo medieval - a "vaticanizar o Espiritismo", como se isso não fosse obra dos próprios "espíritas".
Há uns que chamam de "deturpadores" os que acreditam na tese da "virgindade de Maria", como se isso não fizesse parte da crença dos próprios "espíritas", de Jean-Baptiste Roustaing até Chico Xavier. E tem animosidades internas, como dirigentes de "centros espíritas" falando que "aquele outro centro espírita é que deturpa a Doutrina, não vá lá, vá para nossa casa", e também o fato de que palestrantes e escritores "espíritas", como o próprio Alamar, usam a desculpa da "vaticanização" para "limpar o mercado espírita" de um sem-número de autores iniciantes que ameaçam o reinado dos "medalhões".
Temos Divaldo Franco cuspindo no prato em que comeu, falando mal do Ramatis que ele tanto acolheu. Temos também interpretações rivalizantes, como os partidários de Juliano Pozati dizendo que Ariston Teles, que refuta a "profecia da data-limite", está "deturpando a doutrina", assim como os partidários de Teles alegam que os de Pozati é que "deturpam" explorando a fé e o medo das pessoas para apostar em supostas previsões eventualmente catastrofistas.
Chico Xavier também é relacionado a outros discursos. José Lucas, moçambicano radicado em Portugal que produz os "Artigos Espíritas", alega que a "Federação Espírita Brasileira" havia "deturpado o Espiritismo" quando relançou um livro "psicografado" pelo "médium", em parceria com o colega Waldo Vieira, omitindo o crédito deste último. E há gente também alegando que a obra de Chico Xavier é "deturpada" por interpretações "vis", "enganosas" e "depreciativas".
Tudo isso é um engodo de grandes e sérios equívocos, acusações de supostas deturpações feitas para enganar a multidão, sendo um truque para confundir as pessoas, como num tiroteio em uma favela, com policiais e milicianos armando um teatro de suposto combate ao crime, matando, desta forma, pessoas inocentes nessa "chuva" de balas perdidas que de perdidas só têm o nome.
Como nesse tiroteio, são visões conflituosas, contraditórias, que podem até refletir conflitos de interesses dentro do "movimento espírita", mas servem para desviar o foco da única e verdadeira denúncia de deturpação: a de que o "movimento espírita" brasileiro, principalmente a pessoa de Chico Xavier, cometeu sérios, gravíssimos e nocivos desvios doutrinários, praticamente jogando fora o "vinho novo" da revelação kardeciana, substituída por dogmas católico-medievais reciclados.
FÁBULA DO SAPO E DO ESCORPIÃO
Como se não bastasse isso, diferentes membros do "movimento espírita", em atitude extremamente pior e multiplamente reincidente em relação à traição que Judas Iscariotes fez com Jesus de Nazaré, traem os postulados espíritas originais de maneira criminosa e irresponsável, enquanto fazem falsos juramentos de "fidelidade absoluta" e "respeito rigoroso" a Allan Kardec, chegando ao cinismo de pedir isso para os outros, quando os próprios "kardecistas" são os traidores de primeira hora.
"Isso não é justo. Judas entregou Jesus à morte. Nós não matamos Kardec, ele morreu antes de nós", alegam os "espíritas". Só que Kardec é "morto" todos os dias, todas as vezes, através da deturpação dos seus ensinamentos, sempre de acordo com os caprichos igrejistas dos brasileiros, com seu "espiritismo à moda da casa" - termo tendenciosamente usado por Alamar Régis, em causa própria - , uma traição cometida de maneira ininterrupta, sempre seguida de falsas juras de fidelidade de seus mais diversos membros.
Se proclamando "mais kardecistas que Kardec", os "espíritas à brasileira" são diversificados nas suas hipocrisias, uns fingindo esquerdismo mas acolhendo o direitista Chico Xavier, outros dizendo que o "bondoso médium" é reencarnação de Kardec, outros afirmando a "data-limite", outros negando-a veementemente. É a Torre de Babel onde os "espíritas" não se entendem, cada um desenhando um caminho que acham que dará ao céu, embora, a longo prazo, se destinasse ao abismo.
E essas falsas juras de fidelidade a Kardec fazem com que muitos se calem, temporariamente, diante do igrejismo "espírita", fingindo "procurar entender melhor" os postulados da Codificação, ficam só descrevendo os postulados do professor francês. Muitos desses fariseus prometem "só falar de Kardec, porque o Espiritismo dele é o único, nada deve ser desenvolvido fora dele".
É como naquele conto do Sapo e do Escorpião, no qual o Escorpião pede para o Sapo lhe dar carona para atravessar um rio. O Sapo se recusa a atender o pedido:
- Não vou lhe dar carona. Você vai me matar com sua picada.
- Não vou lhe picar. - disse o Escorpião. - Se eu lhe picar, você afunda e morre. Eu vou me conter e atravessaremos juntos o rio, sãos e salvos.
- Tudo bem. Vou lhe dar carona. - disse o Sapo.
- Bote fé. Não vou lhe picar. - disse o Escorpião.
No entanto, quando atravessaram o rio, o Escorpião enfiou uma picada mortal no Sapo, que, em seus últimos fôlegos, perguntou:
- Por que fez isso? Você me disse que não iria me picar.
- Desculpe, mas é a minha natureza dar picada em alguém. - disse o Escorpião, que, depois disso, viu o Sapo sucumbindo à morte.
Imagine dois episódios envolvendo o "movimento espírita". Um é quanto à deturpação trabalhada pelo igrejismo medieval de Chico Xavier e outro é quanto à ameaça de Teocracia através da fusão Estado e Religião pela utopia da "Pátria do Evangelho":
1) No primeiro caso, os "kardecistas" prometem somente falar de Allan Kardec e Jesus de Nazaré, somente eles e nada além deles, se concentrando nos ensinamentos originais da Codificação. Tentam cumprir isso na aparência, mas, em dado momento, a "picada" se dá quando se lembram de "lindas narrativas" envolvendo Chico Xavier, Divaldo Franco e Bezerra de Menezes, sob desculpas de se lembrar de "belas lições de paz e fraternidade".
2) No segundo caso, o "espiritismo" brasileiro jura que o projeto da "Pátria do Evangelho", mesmo sendo uma fusão de Estado e Religião, promete um "mutirão solidário" e "respeito às mais diferentes crenças, mesmo opostas à crença espírita". Com o Brasil, nosso país, dominando o mundo, não há como supor uma tirania religiosa, porque é nosso país e achamos que mandar no mundo nos animará a vaidade e o orgulho de sermos os melhores, por se tratar do "nosso país". Mas essa soberba, em médio prazo, terá que se voltar para a carnificina dos que atrapalham o caminho.
E por que a carnificina? Alguém falou, por exemplo, que as grandes corporações de Internet iriam manipular algoritmos para conduzir a humanidade para o ódio reacionário e para o acolhimento de fake news e teorias terraplanistas? Há dez anos, essa hipótese era "impensável", mas ela tornou-se uma realidade contundente, vide o obscurantismo que hoje reina nas redes sociais, não só redutos, no Brasil, das seitas "neopentecostais", mas, sobretudo, fortes redutos da religião "espírita".
A "Pátria do Evangelho", com base nos aspectos punitivistas do moralismo "espírita" - que fala na Terra como uma penitenciária gigantesca, "mundo de provas e expiações" e "hospital da alma" - , pode investir em holocaustos, prisões, torturas, enforcamentos e envenenamentos, usando como desculpa a "criminalização da vítima", que "lamentavelmente desviou-se do caminho da fé cristã e tornou-se obrigada a sofrer esse infortúnio determinado por Deus". Infelizmente, isso é possível.
Com toda certeza, as ideias de Chico Xavier são medievais. Não é possível fazer revisão das mesmas e extrair suco de pedra no deserto, achando que as ideias reacionárias dele seriam "metáforas" de mensagens "progressistas a longo prazo". Até porque a direita em geral, mesmo a direita fascista, usa dos mesmos termos do "bondoso médium", apenas sem a sutileza do mel das palavras. Um revisionismo que "esquerdizasse" o "médium" soaria bastante terraplanista, extremamente subjetivista e opinativo, por mais que tais ideias garantissem, de muitos, sono tranquilo e sorrisos arreganhados.
Os fatos mostram que as ideias de Chico Xavier são direitistas, ultraconservadoras, obscurantistas, medievais. Não se trata de uma impressão desagradável com certos conselhos morais, trata-se, sim, do ultraconservadorismo religioso em estado bruto, ao qual não cabem relativizações. Não são metáforas, está tudo muito claro, e é isso um dos pontos mais graves da deturpação espírita, destoando das ideias de herança iluminista de Kardec.
Portanto, não há como inventar que Chico Xavier foi deturpado. Isso é impossível, embora sirva de forte desculpa para favorecer os fundamentalistas do igrejismo "espírita". Ele foi um deturpador, desviou-se, mais que seus antecessores dos primórdios da FEB, das lições da Codificação, e as substituiu com ideias que o "médium" aprendeu na sua formação católico-medieval original.