Como Chico Xavier está associado a Bolsonaro, Huck e Aécio?
O que são as narrativas, senão formas de construir um padrão de compreensão que pode não ser realista, mas traz uma porção de sentidos que permitem com que mesmo pessoas iludidas venham com argumentações aparentemente fortes para suas convicções, mesmo que elas esbarrem em problemas lógicos muito sérios.
No caso de Francisco Cândido Xavier, a narrativa que desenha o "bondoso médium" como um personagem de contos de fadas, um mito que, da forma como hoje conhecemos, prevalece há cerca de 46 anos, mil mentiras e mil fantasias que agradam a muitos e fazem derramar lágrimas - como numa masturbação com os olhos - , carrega uma série de falácias que parecem verdades indiscutíveis.
Na verdade, a adoração a Chico Xavier, mesmo sob o verniz da "admiração equilibrada de um homem imperfeito", que carrega um aparato supostamente humanista e pretensamente realista, se serve a caprichos materialistas dos seus seguidores, que desejam que o Brasil tenha alguém com os atributos de Jesus Cristo e de Nostradamus.
Apesar desses caprichos, mas também em função dos mesmos, os adeptos e mesmo simpatizantes "distanciados" de Chico Xavier tentam se armar de um exército de argumentos falaciosos que possuem uma aparência de "lógica", "objetividade" e "imparcialidade", num país em que "normal", "imparcial", "isento" e "objetivo" sempre está vinculado a dar valor a quem é conservador e direitista.
No entanto, em dado momento esses argumentos - que, todavia, aceitam até que a suposta caridade de Chico Xavier seja citada vagamente, sem provas nem dados, pois quando é a favor do "médium" qualquer boataria serve - se esgotam e as pessoas se explodem de comentários ríspidos e ameaças, ou partem para um silêncio aborrecido, a contragosto, como quem não aceita ser derrotado nos argumentos mas evita responder para não ser humilhado por respostas mais lógicas.
SÍNTESE DE POLÍTICOS CONSERVADORES
Eventualmente, na Internet, se divulga que Chico Xavier, em sua trajetória, sintetizou numa só pessoa três personalidades hoje em evidência. No que diz ao arrivismo e às ideias conservadoras, Chico Xavier remete a Jair Bolsonaro, sobretudo quanto aos escândalos causados no começo da carreira. Quanto à esperteza de se sair de enrascadas, Chico Xavier remete a Aécio Neves, mineiro como o "médium". E quanto à suposta caridade, que mais ajuda o "benfeitor" que os necessitados, Chico Xavier parece muito com Luciano Huck.
Como se chegou a tais constatações, que soam incômodas a muitos brasileiros, que consideram Jair Bolsonaro símbolo do autoritatismo, do ódio e da irresponsabilidade, Aécio Neves um símbolo de corrupção e impunidade e Luciano Huck um símbolo de oportunismo e demagogia?
Simples. É porque Chico Xavier também não foi a imagem do "homem iluminado" que se construiu nos últimos 45 anos. Muitos só conhecem a imagem dele como "fada-madrinha do mundo real", e é uma quantidade muito grande de brasileiros que caíram nessa narrativa habilidosa, no qual o "argumento à emoção" (argumentum ad passiones), recurso da retórica falaciosa, e o "bombardeio de amor" (love bombing), foram eficazes na santificação de alguém que não é assim tão "santo" assim.
Nem as narrativas "pé no chão" que começam a prevalecer atualmente, criando um Chico Xavier "imperfeito" que mais serve de desculpa para quem não consegue desmentir os pontos negativos de sua trajetória, fazem sentido, por recorrerem ao vício de "passar o pano", ou seja, de agir em complacência com os defeitos alheios, que servem como uma espécie de "carteirada por baixo", dentro daquele discurso do "gente como a gente".
JAIR BOLSONARO COM LIVRO DE CHICO XAVIER E AÉCIO NEVES E LUCIANO HUCK EM UBERABA, CIDADE ONDE O "MÉDIUM" PASSOU SEUS ÚLTIMOS DIAS.
Chico Xavier se ascendeu produzindo livros que, mediante uma análise meticulosa e objetiva, podem ser considerados pioneiros nos textos fake, um agravante para os dias de hoje, em que se tenta combater a indústria de fake news. Sem um preparo para a atividade paranormal, o Brasil, bem mais atrasado que o mundo desenvolvido - que já tem dificuldades para compreender a questão da paranormalidade - , tornou-se terreno fértil para o charlatanismo mediúnico.
Tanto que o Brasil parece ter mais "médiuns" do que se pode considerar, mesmo em condições bastante incipientes. Surge um "médium" mais ou menos a cada cinco dias por ano, prometendo trazer a mensagem "do além" de um morto da temporada. A má interpretação da tese cristã e kardeciana de que "somos todos médiuns" abre caminho para uma verdadeira farra na qual os mortos mais parecem garotos-propagandas do igrejismo "espírita".
Obras creditadas a grandes poetas e escritores, mas que escapam sempre dos estilos originais dos mesmos, foram publicadas causando justa indignação com os homens do Saber. Infelizmente, o Brasil tem o costume de fazer a Fé prevalecer sobre a Razão, de forma que a Fé se acha mais com razão do que a própria Razão.
Lembremos que isso é condenado por Allan Kardec que falava do perigo da Fé Cega, quando ela se julga acima da Razão e se arma de uma porção de desculpas para desqualificar a Lógica e o Bom Senso, em nome de dogmas e mistificações que precisam prevalecer para beneficiar interesses estratégicos.
E quais os interesses estratégicos em promover, aumentar e manter o mito de Chico Xavier? Simples, seu mito foi concebido pelo então presidente da "Federação Espírita Brasileira", Antônio Wantuil de Freitas, para alavancar a venda de livros. A desculpa da "caridade" sempre existiu, mas a ênfase sempre estava em aspectos pitorescos da suposta mediunidade, tanto que empurraram Chico Xavier para forjar atividades ligadas à psicofonia (dublando locutores em off) e materialização (usando modelos cobertos de roupas brancas ou voluntários com gazes e algodões pela boca).
O mito de Chico Xavier enriqueceu os cofres dos dirigentes da FEB de tal forma que ela virou o "Vaticano espírita" não só por promover a catolicização da Doutrina Espírita, mas também pela soberba de seus dirigentes. Usava-se como pretexto o "pão dos pobres", sem trazer qualquer fundamento a respeito disso.
Depois de Wantuil, o mito de Chico Xavier teve que ser reforçado. Com os escândalos de que seus livros enriqueciam os chefões da FEB - a essas alturas, Wantuil tinha anunciado sua aposentadoria - , Chico Xavier teve que usar uma manobra, que é deixar de publicar seus livros pela Editora da FEB e passar a publicá-los por editoras "espíritas" supostamente modestas, para dar a impressão da "mais autêntica simplicidade".
Junto a isso, recorria-se ao método do jornalista britânico católico, Malcolm Muggeridge, que havia concebido o mito de Madre Teresa de Calcutá, pretensamente ligado à "bondade" e ao "amor ao próximo". Com rigorosamente os mesmos apelos, o mito de Chico Xavier foi reciclado durante a ditadura militar, na tentativa de salvar o regime ditatorial, do qual o "médium" havia sido um colaborador no âmbito religioso.
Dessa maneira, desenhou-se o mito do "bondoso médium", apenas deixando de lado os aspectos pitorescos enfatizados na campanha de Wantuil. O mito de Chico Xavier não conseguiu salvar a ditadura militar, mas criou nos brasileiros um paradigma religioso e moralista conservador, dentro de um nível que sobreviveu à redemocratização, mas que depois cobrou sua retomada com o golpe político de 2016.
Só que, dentro do jogo psicológico das Organizações Globo - que havia blindado Chico Xavier, entre 1977 e 2018; hoje a blindagem é feita pelos grupos Abril e Folha - , o mito de um "médium" com personalidade direitista e pano de fundo social e familiar ultraconservadores, que lhe permitiram defender ideias medievais, conseguiu ser "vendido" até mesmo para setores desavisados das esquerdas ou mesmo do ateísmo, apesar deste ser demonizado pelos "espíritas".
A Rede Globo é conhecida por propagar valores de forma que eles fossem acolhidos também pelos seus opositores, como que numa sutil catequização cultural, pois, se as esquerdas compartilham os mesmos valores propagados pela Globo, como gírias, estilos musicais, modos de vestir e pensar e ídolos religiosos, significa que o poder da corporação de Roberto Marinho tornou-se transcendental.
A manobra hoje atinge até os bolsonaristas, que a chamam de "Globolixo", mas devem agradecer muito à Globo, porque foi ela que os "alfabetizou", criando as condições psicológicas que fizeram eles mesmos serem bolsonaristas. Vide toda a campanha do anti-petismo que teve a Globo como sua maior propagadora.
Chico Xavier também foi desenvolvido, com antecedência, sob as mesmas condições psicológicas. Muitos se horrorizam com suas comparações com Jair Bolsonaro, Aécio Neves e Luciano Huck, mas é necessário pensar em todo um imaginário que prevalece no Brasil, com suas posturas contraditórias, em que o "velho" tenta se sobressair ao "novo", eventualmente se passando por ele - enquanto o realmente "novo", ao desaparecer, é tido como "velho" - , causando confusão em muita gente.
Vivemos, por exemplo, os extremos da libertinagem sexual do "funk" e da abstinência material do "espiritualismo". As redes sociais brasileiras se comportam como uma grande roça de pessoas cafonas, mistificadas, infantilizadas e conservadoras, mesmo quando se autoproclamam "progressistas", mas possuem sérios resíduos conservadores que fazem com que muitos petistas tenham momentos surpreendentemente bolsonaristas.
Fala-se em Chico Xavier usando mil desculpas, as mais diversas alegações, os mais diversos pretextos, com um desnecessário "exército de palavras" usadas como força-tarefa para proteger o mito de revelações que, embora verídicas, soam desagradáveis. A blindagem de Chico Xavier, superior à do próprio Aécio Neves, permitem que sua imagem de "fada-madrinha do mundo adulto" esteja até mesmo acima da Verdade e da Razão, mesmo ao arrepio da lógica kardeciana.
E quem acha que Chico Xavier não tem a ver com Jair Bolsonaro, Aécio Neves e Luciano Huck, fatos e constatações revelam que esse vínculo existe, sim, não bastasse todos habitarem um mesmo padrão de imaginário brasileiro:
1) Chico Xavier foi um defensor tão radical e extremo da ditadura militar que, através da nossa análise com base em fatos históricos e no contexto político da época, concluímos que o "médium" foi colaborador desse regime, daí as homenagens feitas pela Escola Superior de Guerra. Juntando isso com o conservadorismo de suas ideias, também concluímos que, se estivesse vivo em 2018, Chico Xavier teria apoiado a campanha de Jair Bolsonaro em 2018. Lembremos que Chico Xavier era anti-petista, com o mesmo horror dos opositores do Partido dos Trabalhadores;
2) No fim da vida, Chico Xavier recebeu a visita de Aécio Neves e, mesmo numa breve conversa, os dois teriam sentido, provavelmente, uma forte sintonia espiritual. É um equívoco dizer que uma suposta profecia de 1952 previu a ascensão de Aécio, mas é correto dizer que o político do PSDB se encaixa nas perspectivas de um grande líder político sonhadas pelo "médium";
3) Sob a mesma assistência da Globo, Luciano Huck, antes conhecido como um apresentador "hedonista" e "fazendeiro de bundas", moldou-se como um dublê de ativista e filantropo similar ao que foi Chico Xavier. Huck viu o filme sobre o "médium" em 2010, ao lado de sua esposa Angélica, e fez edições do quadro do Lata Velha em Pedro Leopoldo e Uberaba, levando em conta a pessoa do religioso. E isso se confirma quando Pedro Leopoldo é uma cidade de Minas Gerais esquecida até pelos mineiros, sendo uma "prima pobre" das cidades da Grande Belo Horizonte, por guardar feições fortemente interioranas e semi-rurais.
Daí que a realidade dos fatos muitas vezes é refutada por pessoas adultas ou mesmo razoavelmente esclarecidas que precisam se refugiar, de alguma forma, em fantasias que lhes servem como analgésico para suas inseguranças. Daí que blindar o mito de Chico Xavier e moldá-lo conforme as fantasias de cada um serve como zona de conforto pelo qual a Fé religiosa se torna um refúgio pelo pretexto de que negar a realidade e a lógica dos fatos "traz esperança e alegria para os povos". Há quem acredite na fraternidade do Senso com o Contrassenso, como se Mentira e Verdade fossem irmãs...