O dever de investigar até mesmo Chico Xavier, mesmo sob risco de derrubar o mito

 
O JORNALISMO INVESTIGATIVO É UMA FERRAMENTA PARA DESMONTAR MITOS E NARRATIVAS OFICIAIS SOBRE QUALQUER COISA OU FATO.


A liberdade da fé religiosa não permite que o pensamento desejoso possa prevalecer sobre a Lógica e a Razão. Como seres racionais, não podemos transformar o mundo espiritual numa espécie de "exílio" para hipóteses que não encontram sustentação lógica, deixando as mesmas repousarem na zona de conforto da dúvida, mantida de forma preguiçosa diante do medo de derrubar mitos considerados emocionalmente agradáveis.


Não é a idolatria a Francisco Cândido Xavier - agora "rebaixada" a uma "admiração saudável a um homem bom mas imperfeito" - que trará exceção à regra e um dos mais abomináveis absurdos trazidos pelos "espíritas" brasileiros, que se dizem tão zelosos na sua suposta "fidelidade absoluta" e no seu pretenso "respeito rigoroso" aos ensinamentos kardecianos, é permitir que a problemática obra do suposto médium, tida como "mediúnica", seja aceita como está, sob o âmbito da "dúvida", em clara resposta "espírita" ao "mistério da fé" do terraplanismo católico-medieval.


Há muito terraplanismo escondido na "seara espírita", dentro de um meio que, na Internet, facilmente faz colagens com imagens de Jesus Cristo e Allan Kardec mescladas com Chico Xavier e Emmanuel, ou que coloca um retrato de Humberto de Campos "sobrevoando" um Chico Xavier escrevendo algum texto. O mais grave é que são visões terraplanistas de uma religião que se vende como o "contraponto" aos "evangélicos neopentecostais" e usa de um verniz de "lógica" não muito diferente da que faz os bolsonaristas definirem que a cloroquina é "infalível" no combate à Covid-19.


O mito de Chico Xavier, engenhosamente concebido pelo poder midiático que sustentava a ditadura militar - que inclui tanto as Organizações Globo, a então TV Studios (atual SBT) e a imprensa sensacionalista em geral, que adora tanto glamourizar a violência como abordar a fé religiosa e fenômenos pitorescos, como a suposta paranormalidade - , foi trabalhado de maneira tão habilidosa que fez com que o "médium", na verdade um beato religioso e um moralista reacionário, fosse apreciado por desavisados setores das esquerdas sociais e do ateísmo religioso.


O que envolve Chico Xavier são apelos de manipulação linguística dos mais perigosos, dos quais incluem truques de apelo fortemente emocional, relacionados ao "bombardeio de amor", que simula processos de afetividade e exaltação à "verdadeira beleza", e ao recurso falacioso do argumentum ad passiones, ou "argumento à emoção" (e seu derivado "argumento à piedade", argumentum ad misericordiam). Note-se que não raro os partidários de Chico Xavier apelam, de maneira tendenciosa e traiçoeira: "É preciso ouvir a voz do coração".


Tudo isso é feito para desmontar o senso crítico, que nunca teve um terreno fértil no Brasil. Fenômenos considerados problemáticos no mundo desenvolvido, como a "sociedade do espetáculo", a "overdose de informação" e, sobretudo o "bombardeio de amor" que fez Chico Xavier dominar o antes cético Humberto de Campos Filho, são vistos no Brasil como "coisas positivas".


Afinal, existem interesses estratégicos, que envolvem elites de intelectuais, jornalistas, empresários da Comunicação, mercadores religiosos, políticos e outros empresários associados, que precisam alimentar os fenômenos que, lá fora, são considerados uma ameaça à humanidade. Afinal, há quem se enriqueça através de uma avalanche de notícias que sobrecarregam a mente do público, impedindo-o de refletir cada informação, assim como uma sociedade espetacularizada pela qual o modelo de sucesso esteja nas mãos de subcelebridades e canastrões musicais.


Quanto ao "bombardeio de amor", essa perigosa tática de manipulação dos corações e mentes humanos, aproveitando de suas fraquezas emocionais, tornou-se um instrumento para Chico Xavier promover uma idolatria, que atinge níveis de fanatismo que, de tão ridiculamente extremos, são agora disfarçados de "admiração saudável de homem imperfeito e bom", dentro das manobras discursivas dos "isentões" de plantão.


O "bombardeio de amor", considerado traiçoeiro no exterior, ao se manifestar em Chico Xavier ele se molda conforme, pelo menos, dois principais tipos de obsessão espiritual analisados justamente pela Doutrina Espírita: a fascinação obsessiva e a subjugação.


A maioria dos seguidores de Chico Xavier sente fascinação obsessiva, com apelos emocionais que mesmo a canastrice intelectual do "médium" - setores de sua base de apoio investem num equivocado vínculo entre ele e fatos científicos, com constrangedoras atribuições de supostas "previsões" relacionadas a descobertas que vão da vida em Marte à glândula pineal - não consegue desfazer, associado a apelos visuais que inserem a imagem do "médium" em paisagens floridas ou celestiais ensolaradas.


O "bombardeio de amor" não se limita a relações de namoro. Instituições religiosas usam desse artifício para atrair fiéis. Como um artifício para atrair pessoas para o masoquismo místico da Teologia do Sofrimento, que define a desgraça humana como "caminho mais curto para o Céu", Chico Xavier, com suas ideias medievais, promove, em si, o culto à personalidade que alimenta esses apelos emotivos, que entorpecem seus seguidores que têm a falsa impressão de contraírem energias elevadas.


Essa falsa impressão, que parece trazer a sensação de tranquilidade, alegria imensa - principalmente nos sorrisos arreganhados que as atrizes Fernanda Souza e Maria Paula Fidalgo davam quando mencionavam Chico Xavier - e paz aparente, se desfaz diante da menor contrariedade, quando a reação se explode em sentimentos de raiva, ódio e irritabilidade profundos, partidos justamente de gente que, em tese, se julga "incapaz de manifestar ódio sequer ao mais cruel dos tiranos".


E quem deveria questionar o mito de Chico Xavier, mesmo usando a lógica kardeciana, se sente bloqueado por uma razão ainda pior: é a subjugação ao "médium" e sua imagem simbólica que impede que jornalistas investigativos, acadêmicos questionadores e juristas analíticos de enfrentar a sua pessoa mitológica, reprimidos diante das duas palavras que compõem o nome do "médium".


Mesmo argumentos supostamente racionais como "Não vejo que o médium Chico Xavier tenha algum elemento que possa ser sistematicamente contestado ou avaliado" revelam mais a tradicional omissão de pessoas de baixa vigilância emocional, que já mostrou exemplos de posturas similares quando a Operação Lava Jato é desafiada a investigar os bastidores da corrupção dos políticos do PSDB, os chamados "tucanos".


Simulacros de investigação ocorreram, no âmbito jurídico e acadêmico. No âmbito jornalístico, depois dos testes de José Hamilton Ribeiro, da revista Realidade, que apontaram fraudes na "psicografia" de Chico Xavier, além de divulgar um laudo médico que apontava alucinações mentais no "médium", deram lugar a abordagens meramente "chapa-branca", simplesmente propagandísticas. Até mesmo o jornalista Saulo Gomes, com passado de jornalista investigativo, deixou de lado essa função ao narrar a trajetória do "médium" de maneira meramente apologética e parcial.


A subjugação, diferente da fascinação obsessiva, domina a consciência humana de tal forma que cria nelas indisposições ou disposições indevidas, que as pessoas, em circunstâncias normais, evitariam assumir. Não se trata apenas de um envolvimento com o dominador através de simples apelos emocionais, com o dominador envolto em paisagens floridas, seu rosto "flutuando" num céu ensolarado e nuvens brancas, mas algo mais grave do que isso.


A subjugação toma a consciência humana. O nome "Chico Xavier" traz nervosismo para o jornalista investigativo, o acadêmico e o jurista normalmente empenhados na contestação e no exame. O coração bate forte, a consciência se desnorteia e, de repente, uma "falta de interesse" surge mesmo com tantas exigências de questões e problemas a serem resolvidos. Mesmo com toda sua racionalidade, essas pessoas parecem agir pelo piloto automático e se recusam a investigar um mito religioso.


Quando o fazem, é sempre para trabalhar o pensamento desejoso para manter o mito em pé. A Razão e a Lógica que sejam mandados às favas. Alexandre Caroli Rocha atuou de maneira acovardada atribuindo o problema das obras do "espírito Humberto de Campos" como "dependentes de questões" que o "movimento espírita" não quer resolver (o mundo espiritual e a comunicação com os mortos) porque acha "resolvidas" justamente pelo próprio Chico Xavier (vide sua suposta psicografia e a obra Nosso Lar, sobre uma suposta colônia espiritual).


Ou seja, Caroli Rocha adotou um argumento covarde, pretensamente imparcial mas desprovido de lógica e bom senso. Mas pior posição estava na postura de Ronaldo Terra quando tentou relativizar o apoio que Chico Xavier dava à ditadura militar, explícito e chegando ao ponto de julgar a repressão do AI-5 "necessária" para "combater o caos" (eufemismo para oposição ao regime ditatorial), além de render condecoração e até palestra nas imediações da Escola Superior de Guerra.


Terra se acovardou mais ainda, investindo numa tese sem pé nem cabeça: a de que Chico Xavier teria apoiado a ditadura militar em função da "santidade do médium". É uma argumentação subjetivista, sem sustentação lógica, e que contraria até mesmo os mais comezinhos critérios de objetividade acadêmica. A tese seria considerada ridícula até para os padrões de redação de escola primária.


Ronaldo Terra, mesmo usando de suporte "objetivo" para a "tese da santidade" - como a "catolicização" do Espiritismo e a moralidade religiosa de Chico Xavier - , cometeu falhas grosseiras em função dessa hipótese, por haver sérios problemas quanto ao contexto da mitologia religiosa e da verdade histórica do período político analisado, a ditadura militar:


1) Se Chico Xavier é considerado "humanista", por que ele teria defendido com tamanha convicção um sistema político comandado por opressores, e no momento de maior repressão militar? Sabe-se que um humanista verdadeiro não faz igual consideração para oprimidos e opressores, antes sacrificando sua vida em prol dos oprimidos do que salvar sua pele, mesmo a pretexto de salvar uma religião, exaltando o poder opressor. O "médium", agindo como agiu, preferiu ficar ao lado dos opressores e lembremos que, tido como "pacifista", Xavier aceitou homenagens de uma entidade com "guerra" no nome;


2) A ditadura militar passava por um período de radicalização repressiva, o que mostra que a Escola Superior de Guerra, considerada "laboratório" da ditadura militar - foi ela que tramou o levante militar contra João Goulart e, depois, tornou-se o "cérebro" do regime ditatorial - , nunca faria homenagem alguma a quem quer que fosse, se essa pessoa não colaborasse de forma estratégica pela defesa e permanência da ditadura militar.


A tese de Ronaldo Terra cai por terra (com o perdão do trocadilho) porque, se Chico Xavier recebeu homenagens e fez palestra na Escola Superior de Guerra, em 1972, fato publicado na imprensa (revista Veja e Última Hora) e narrado por Marcel Souto Maior em As Vidas de Chico Xavier, devemos entender ideias profundamente desagradáveis, porém realistas:


1) Pelo seu temperamento, acredita-se que Chico Xavier tinha horror à palavra "guerra" e repudiava a violência física para resolver desavenças pessoais. Como é que ele aceitou comparecer a uma homenagem numa entidade com "guerra" no nome?


2) Se a Escola Superior de Guerra decidiu homenagear Chico Xavier, a entidade militar não deu uma pausa para seu radicalismo ultraconservador, tornando-se "humanista" por algumas horas, porque isso contradiria o seu empenho inflexível que, em 1971, fez com que militares da repressão abordassem acusados de oposição ao regime ditatorial invadindo casas ou em pleno início de passeio familiar, como foi o caso do deputado Rubens Paiva, pai do escritor e dramaturgo Marcelo Rubens Paiva.


A impotência investigativa em prol da preservação de um mito religioso é um ato de covardia e que mostra a falta de firmeza das pessoas, uma ameaça que, com muita antecedência, a literatura kardeciana vislumbrou com a maior precisão possível.


Kardec alertou severamente para os inimigos internos do Espiritismo e suas estratégias de dominação explorando os mais complexos apelos emocionais. Muito aviso se deu pelo perigo de figuras deturpadoras como Chico Xavier, que mesmo demonstrando uma aparência física sem atrativos e uma fala molenga inconvincente, conseguiu dominar as pessoas mais do que qualquer tirano, a ponto de obsediar quem fosse desafiar seu mito trabalhado intensamente nos últimos 45 anos, embora existente antes dessa época.


É dever abrir mão dessas traiçoeiras armadilhas, recusando até mesmo apelar para a desculpa da "caridade", porque Chico Xavier fez apenas uma filantropia fajuta aos moldes do que Luciano Huck faz hoje em dia, trazendo apenas fracos resultados sociais. E as "cartas mediúnicas" nunca foram caridade, tendo sido ao mesmo tempo prestidigitação e cortina de fumaça que desviaram as atenções do povo à crise da ditadura militar, no fim dos anos 1970, e viravam "orgias religiosas" devido à catarse emocional dos frequentadores.


Ninguém é dono da Verdade, muito menos Chico Xavier tem o direito de sê-lo. Ele também não pode estar acima da Verdade e da Razão, transformando-as em suas escravas, obrigadas a legitimar seu prestígio religioso e relativizar os sérios problemas de sua trajetória. Não dá para se esconder pelo mascaramento intelectual ou científico, quando se quer blindar Chico Xavier, porque aí a Ciência e a Razão se tornam apenas escravas de uma Fé Cega e perigosamente mistificadora.


Devemos nos comportar como os jornalistas e escritores do passado, pondo em xeque um mito religioso, rejeitando corajosamente o que, em Chico Xavier, está contrário à Lógica e o Bom Senso, o que, aliás, são muitas e muitas coisas. Os problemas na "psicografia", nos valores morais medievais, no obscurantismo místico e tantos outros pontos negativos na obra de Chico Xavier não podem ser aceitos por conta de sua carteirada religiosa.


Se o mito de Chico Xavier tende a cair um dia, isso é uma certeza comparável ao de um nascer e pôr do Sol. Ninguém pode estar acima da Verdade, da Razão, da Humanidade. Não há também como mascarar o fanatismo por Chico Xavier com argumentações supostamente intelectuais, ou por desculpas "isentas" dizendo que "ninguém é fanático pelo médium, todos apenas o adoram como homem simples e bom, mas imperfeito e errante".


É necessário abrir mão de desculpas desse nível, assim como o uso do pseudo-intelectualismo para blindar Chico Xavier, este, sim, um "tóxico do intelectualismo" a serviço da imagem glamourizada de um mistificador. Jornalistas, acadêmicos e juristas têm como dever investigar tudo que for necessário, até mesmo Chico Xavier, mesmo que isso tenha como preço o desmascaramento do "médium" e o fim de sua imagem oficial, tão adorada por multidões. Sacrifiquemos as paixões religiosas, por mais que elas causem dor e tristeza nos primeiros momentos.


Lembremos, em quantas vezes for necessário, as recomendações de Kardec: "É preferível que caia um único homem, do que todos aqueles que se sentirem enganados por ele". Devemos apagar de nossas mentes a imagem da cabeça de Chico Xavier brotando em flores ou flutuando em céus ensolarados. Há mais coisas importantes para admirarmos e gente mais caridosa do que o "médium".