Quando até os razoavelmente esclarecidos se iludem com Chico Xavier
REVISTA REALIDADE FOI UMA DAS POUCAS COBERTURAS QUE ENXERGARAM DE MANEIRA CRÍTICA O FENÔMENO CHICO XAVIER.
Diante de textos que, através de provas, desmontam o mito de Francisco Cândido Xavier, encarado por pessoas adultas e até idosas de maneira similar à que fadas madrinhas e princesas de contos de fadas exercem no imaginário infantil, mesmo pessoas que parecem ter algum nível de esclarecimento sentem algum incômodo, pois em dado momento até elas sentem fascinação obsessiva pelo suposto médium.
É como diz o ditado: "o uso do cachimbo faz a boca ficar torta". Desde meados dos anos 1970 Chico Xavier é sustentado - postumamente, desde julho de 2002 - através de uma narrativa que, em si, parece uma mistura de novela da Rede Globo com estórias infantis, criando um mito em si infantilizado, fabuloso, embora com aspectos pitorescos e controversos, alimentado por narrativas "mais isentas".
São cerca de 45 anos martelando a imagem do "bondoso médium", nos mesmos moldes que Malcolm Muggeridge, jornalista católico inglês, fez com Madre Teresa de Calcutá. São quatro décadas de profundos apelos emocionais, que causam nos adultos as mesmas impressões fantasiosas que as crianças sentem quando ouvem estórias infantis.
Infelizmente, uma das ferramentas de dominação de Chico Xavier, o "bombardeio de amor" (love bombing), é tão explícita quanto ignorada, mesmo por aqueles que possuem algum grau de racionalidade. Os apelos emocioniais, similares ao dos cantos-de-sereias da Odisseia de Homero, entorpecem até aqueles que tentam alguma resistência a isso. Não por acaso os apelos emocionais de Chico Xavier chegam a seduzir até mesmo uma boa parcela de gente cética.
Duas denúncias-chave que começam a ser divulgadas, informalmente, a respeito de Chico Xavier, como o seu ultraconservadorismo doutrinário - que desqualifica sua atribuição de ser o "dono do nosso futuro", através de supostas profecias - e as fraudes psicográficas, chegam a ser relativizadas até por alguns esclarecidos que ainda se acham capazes de argumentar em favor de suas impressões agradáveis, que eles temem perder.
Sobre o ultraconservadorismo, exemplificamos um argumento possível quanto à ideia de Chico Xavier, baseada na Teologia do Sofrimento, de que "é necessário aceitar a desgraça humana em silêncio, porque o silêncio é a voz dos sábios". É uma ideia medieval, mas que o razoavelmente esclarecido, mas com alguma falha na compreensão crítica das coisas, tenta relativizar, da seguinte forma:
"Não acredito que esse conceito de aceitar o infortúnio em silêncio seja conservador. As filosofias orientais, principalmente chinesas, consideradas de crença moderna, já falavam nisso, assim como falavam no 'inimigo de si mesmo'. Creio que sejam metáforas que servem apenas para frear nossos impulsos agressivos e talvez a forma com que são argumentadas assustem a muita gente".
Apesar de bem intencionado, esse argumento é bastante falho. Afinal, desconhecer que um recado moralista, que é deixado claro, que é o de se silenciar e se conformar com a própria desgraça, é uma ideia explícita e não uma metáfora, não faz sentido. Afinal, a ideia de aceitar o sofrimento em silêncio não está em linguagem figurada, portanto não pode ser entendida como uma "maneira de dizer".
As ideias de Chico Xavier, relacionadas à aceitação do sofrimento, à servidão no trabalho e à submissão hierárquica se manifestam de maneira explicitamente conservadora, não sendo metáforas para obter um suposto equilíbrio emocional, como se calar-se no sofrimento fosse uma mera questão de não se revidar numa briga de vizinhos. Não há, nessas ideias, um sentido figurado que refutasse o aspecto conservador de tais preceitos.
Quanto a outro aspecto, as fraudes psicográficas, que colocam Chico Xavier como pioneiro da literatura fake - uma constatação urgente, mas que soa dolorosa nos dias de hoje, mesmo diante da preocupação em combatermos as fake news - pessoas que se declaram "esclarecidas" e até o são em outros assuntos, mas adotam postura hesitante diante do caso do "médium", tentam o seguinte argumento, atribuindo aos "espíritos" a "incapacidade de se comunicarem de forma clara".
"Não acredito que houvesse fraude, porque isso depende de compreendermos melhor as mensagens que os espíritos nos dão, que soam por demais complexas para nosso entendimento e, portanto, precisam ser traduzidas conforme a linguagem mental e verbal existente na Terra para que sejam, assim, acessíveis para o público comum".
O argumento é bonito e faz muitas pessoas dormirem tranquilas, embora depois elas acordem atormentadas, porque tais palavras descritas no parágrafo anterior soam completamente fora de lógica e desqualificam completamente os chamados "benfeitores espirituais", que, supostamente na sua intenção de "difundir a boa nova", teriam ao menos que receber algum crédito, no caso de considerarmos suas mensagem "verídicas".
A tese apresentada no belo discurso apresenta muitos problemas, e indica que fosse preferível que os supostos médiuns abandonassem tal atribuição e pregassem por conta própria, de sua mente, de sua imaginação, porque seriam mistificadores de qualquer maneira, mas, ao menos, seriam um pouco mais sinceros na produção das mensagens.
Além do mais, como atribuir "complexidade" nas "mensagens espirituais" se considerarmos "legítima" a atribuição de que espíritos de personalidades brasileiras e portuguesas, que já falam o nosso idioma e trazem as palavras que imediatamente compreendemos? Teríamos que "traduzir" o quê, como se os espíritos brasileiros, em vez de falarem português, passassem a falar aramaico? Soa bastante ilógica tamanha desculpa exposta em palavras tão arrumadas.
O caso da mudança de estilo também não procede em suas desculpas. Já se falou da "linguagem universal do amor" ou mesmo de suposto nervosismo do "espírito" que "se comunica" através de Chico Xavier. Alguns se arriscam a dizer que o talento morre com o corpo e o que vai para o mundo espiritual é uma "visão impessoal em comunhão com Deus". São alegações bonitas, mas altamente problemáticas em qualquer argumento, sobretudo o mais relativista.
A lógica nos diz que, quando o espírito desencarna, ele amplia suas faculdades mentais, ocultadas pela matéria física. Isso pressupõe que, se ele era mais talentoso e com estilo peculiar, tais qualidades se reforçariam no além-túmulo, tornando-se ainda mais fortes. Mas a obra de Chico Xavier que usa os nomes de mortos demonstram o contrário, com o "espírito" parecendo menos talentoso e personalizado do que foi em vida, o que fez o jornalista Léo Gilson Ribeiro, um dos fundadores de Caros Amigos, a investir numa ironia jocosa: "O espírito sobe, o talento desce".
O melindre dessas pessoas razoavelmente esclarecidas em relação a Chico Xavier se dá, sem dúvida, por motivações cautelosas. Essas pessoas, evitando polemizar, não se arriscam a mexer num ídolo religioso, achando que poderão prejudicar as pessoas ao pôr em xeque toda a profissão de fé que estas possuem em favor do "médium".
Só que isso vai contra os ensinamentos da Codificação, que recomenda que o rigor da Lógica e da Razão possa ser usado para contestar tudo que está em desacordo, de maneira enérgica e corajosa. Afinal, não há como frear diante de um ídolo religioso, ainda mais quando a literatura kardeciana recomenda que não temamos sequer contestar os religiosos. Tudo em Chico Xavier apresenta elementos que contrariam a Lógica e o Bom Senso, mas desaparece a coragem necessária de rejeitar o "médium".
O apego a um ídolo religioso torna-se um perigo, uma teimosia infantil que, traduzida para o contexto da vida adulta, cria sentimentos perigosíssimos de obsessão, sejam a fascinação ou a subjugação. Até agora não se tem conhecimento de casos de pessoas em possessão por Chico Xavier, mas é provável que existam, e o apego a uma única pessoa, pouco se importando com o país e com a humanidade, é um risco ameaçador em vários aspectos, trazendo o azar e até a tragédia para muita gente.
Jesus Cristo e Allan Kardec nos alertaram, com muita antecedência, para os mistificadores que iriam usar a Boa Nova para dominar as pessoas e inserir nelas o obscurantismo moralista que garante as desigualdades sociais e o poder político-religioso próximo aos moldes da Idade Média. Lendo os livros doutrinários deixados por Chico Xavier, nota-se esse medievalismo que salta aos olhos, tão retrógrado que o "médium" teve que atribuir a autores mortos para não ser responsabilizado por ideias tão antigas e obsoletas.
Seria necessário uma reeducação moral muito grande e intensa, e o uso dos argumentos lógicos para convencer as pessoas que é preferível abandonar a idolatria de uma figura religiosa de valor duvidoso do que se submeter a ela, como um escravo da fé cega. É inútil apenas deixar de falar em Chico Xavier ou admitir que ele "errou muito" e "tinha muitos defeitos", quando a idolatria permanece na mesma. O ideal é passar a rejeitá-lo, vendo nele um inimigo interno do Espiritismo, que anulou o legado kardeciano e o substituiu por uma repaginação do Catolicismo medieval.