Relações do caso Flordelis e do caso Amauri Xavier

 

O recente caso da pastora e deputada Flordelis, investigada pelo assassinato do marido, o pastor Anderson do Carmo, em Niterói, 16 de junho de 2019, chocou a sociedade brasileira por ser um crime ocorrido sob o manto da fé religiosa. Dizem rumores que Flordelis matou Anderson porque não queria se divorciar dele, com quem estava brigando nos últimos meses da vida do pastor. Há familiares, entre vários filhos adotivos, acusados de participação do crime, cometido por algum pistoleiro de aluguel.


Há 62 anos, por volta de agosto de 1958, um outro caso contribuiu para a morte suspeita de seu denunciante. Este era Amauri Xavier, um jovem de então 25 anos que estava denunciando o tio, ninguém menos que o hoje festejado Francisco Cândido Xavier, atualmente gozando, de forma póstuma, de uma imagem glamourizada que só recentemente foi "lapidada" para o gosto dos "isentões", que preferem idolatrar pessoas "gente como a gente", "imperfeitas".


Chico Xavier, como é conhecido o tio de Amauri, era acusado de charlatanismo, ou seja, sua tão alegada "mediunidade", que o fez ganhar o título de "maior médium do Brasil", era uma farsa. As acusações de fraudes na atividade "psicográfica" são muitas e, recentemente, descobriu-se que mesmo gente solidária como a historiadora Ana Lorym Soares e a "médium" e amiga de Chico Xavier, Suely Caldas Schubert, deixaram vazar que as "psicografias" sofreram alterações editoriais de dirigentes da "Federação Espírita Brasileira", o que aponta ações fraudulentas, sob o apoio do próprio "médium".


São denúncias fortes, mas que o desconhecimento generalizado dos brasileiros e o seu pouco apreço pela literatura - que, no mercado brasileiro, se resume à predominância de obras de conteúdo "analgésico" (servem de mero entretenimento e não para busca do Saber) - deixam passar, com algumas pessoas até relativizando as acusações, como se, ao envolver Chico Xavier, fosse possível permitir que existam coisas absurdas e contraditórias, em profundo desacordo com a Lógica e a Razão.


Amauri causou escândalo em 1958 quando denunciou as fraudes do tio, e isso ocorreu um ano após Chico Xavier ter assediado Humberto de Campos Filho, organizando um evento "espírita" supostamente em homenagem ao filho do autor maranhense. Naquele evento espetaculoso, em 1957, Humberto Filho foi atraído para um evento que reuniu culto religioso e práticas de Assistencialismo, deixando o jornalista e produtor de TV abobalhado, chorando copiosamente e constrangido a "ajudar a fazer sopas" para agradar o "médium" contra o qual participou de um processo judicial.


As denúncias de Amauri Xavier, que não suportava ser obrigado a se passar por "médium", a exemplo do tio, reforçavam os indícios que só a partir de 1981 foram revelados em cartas divulgadas no livro de Schubert, Testemunhos de Chico Xavier, pelo qual se sabe, entre outras coisas, que o "médium" agradeceu aos dirigentes da FEB pela ajuda na revisão dos originais das ditas "psicografias". 


Em outras cartas, e nas revelações trazidas por Ana Lorym em tese acadêmica de 2018, conseguimos até ter conhecimento de que Manuel Quintão e Luís da Costa Porto Carreiro Neto "recheavam" as "psicografias" de Chico Xavier com imitações de vários estilos literários.


As denúncias, num país menos ingênuo, teriam desmascarado Chico Xavier, que já teria sido punido pela Justiça em 1944 no caso Humberto de Campos. São crimes que envolvem falsidade ideológica mas que a complacência dos homens da Terra, que selecionam privilegiados em dadas vantagens sociais - como fazer parte de uma aristocracia ou oligarquia poderosa ou então ter prestígio religioso, sendo este o caso do "médium" - , lhes reservam a impunidade.


Hoje Chico Xavier é visto de maneira adocicada e até mesmo piegas, como um pretenso símbolo da "fraternidade e do amor ao próximo". É tido como "profeta" e "pacifista". Daí a dificuldade extrema, que faz com que os brasileiros tenham uma sensação de medo profundo quando surge algum texto pondo em xeque o mito do "bondoso médium". Mesmo que cada texto fosse de acordo com a Lógica e Bom Senso, a recusa de muitos brasileiros em lê-los até o fim e considerar as teses apresentadas atinge níveis preocupantes. 


Chico Xavier exerce perigosa fascinação obsessiva em muitos brasileiros. A própria Codificação rejeita a fascinação obsessiva e a alerta como um dos tipos mais perigosos de obsessão espiritual. O Livro dos Médiuns descreve, no Capítulo 23, dá detalhes sobre este processo obsessivo, e também descreve outro, mais perigoso, que é a subjugação, que atinge aqueles que deveriam investigar Chico Xavier pelos âmbitos da Justiça, do Jornalismo Investigativo e da contestação acadêmica mas recuam ao ver o nome dele como alvo de investigação.


Por isso a narrativa oficiosa em torno de Chico Xavier, desenvolvida pela ditadura militar em parceria com a FEB e a Rede Globo e sob inspiração no método do inglês Malcolm Muggeridge, sempre se volta em favor do "médium", mesmo que seja através de abordagens fantasiosas, subjetivistas, meramente opinativas ou trazendo justificativas sem pé nem cabeça que afrontam seriamente a Lógica e o Bom Senso.


SUSPEITAS DE ASSASSINATO


Assim como no caso Anderson do Carmo, o caso Amauri Xavier causa estranhezas pela sua morte prematura. Tido como seu único vício o álcool, Amauri faleceu jovem demais para alguém que só tinha esse vício, pois ele faleceu aos 28 anos incompletos, enquanto a média de mortes prematuras sob esse vício começa por volta de 35 anos de idade. A revista Manchete, de 09 de agosto de 1958, já alertava sobre a ameaça de morte por envenenamento, o que teria se consumado três anos depois.


Em 2021 farão 60 anos da morte de Amauri Xavier. Apesar de muito suspeita, são praticamente nulas as chances do caso ser reaberto pela Justiça, já que prescreveu. Além disso, durante anos ela é relatada oficialmente como uma "morte acidental", mesmo sabendo que o envenenamento também pode produzir hepatite tóxica, que teria sido a causa mortis do jovem.


Evidentemente, Chico Xavier não mandou nem desejou a morte do sobrinho, ficando até entristecido com o desfecho. Suspeita-se que o mandante tenha sido o próprio presidente da FEB, Antônio Wantuil de Freitas, conhecido pelo seu autoritarismo, poder central e ganância financeira - apesar da ideia oficial de que Chico Xavier deixava a renda dos seus livros "para a caridade", o dinheiro foi para as contas pessoais dos dirigentes da FEB, a ponto de, estranhamente, financiar um Christian Spiritist Center nos EUA, como forma de tentar expandir o poder da instituição para fora do Brasil.


Mas, em todo caso, Chico Xavier se preocupava em ser desmascarado, até porque são muitas as provas de que suas "psicografias" eram fraudulentas, pois elas sempre escapavam, sem exceção, dos aspectos pessoais dos autores mortos a que se supunha autoria.


Até 1958, as denúncias de fraudes de Chico Xavier não tinham um relato detalhado dos bastidores. Já ventilavam denúncias de que Manuel Quintão e Porto Carreiro Neto "aperfeiçoavam" as "psicografias" moldando os textos para estilos literários correspondentes, após a gafe de Augusto de Campos e Antero de Quental, este um autor português, tivessem sido confundidos na imitação textual, conforme havia alertado o crítico literário Osório Borba.


As fraudes de Chico Xavier só foram denunciadas com maior ênfase e, por acidente - o chamado "fogo amigo" - a partir de 1979, quando o fotógrafo Nedyr Mendes da Rocha provou, sem querer, a cumplicidade do "médium" no caso Otília Diogo, através de fotos que mostravam ele extrovertido e entusiasmado demais para ser considerado "enganado" pela farsante. A partir de 1981, Suely, ao divulgar as cartas de Xavier e Wantuil, também vazou, sem querer, que as "psicografias" sofriam modificações editoriais, com o apoio, consentimento e colaboração do próprio "médium".


São fraudes preocupantes que nem mesmo a alegação recente do tipo "Está certo, mas pelo menos Chico Xavier fez caridade", repetida como um disco de vinil arranhado, convencem. Até porque a "caridade" de Chico Xavier também se tornou uma farsa, sendo mais um artifício para obter promoção pessoal, nos mesmos moldes que, atualmente, faz o apresentador Luciano Huck, admirador confesso do "médium".


E aí vemos o medo de muitos brasileiros em ver o mito de Chico Xavier cair, posto em xeque-mate. É o medo dos brasileiros ficarem "sem religião", uma vez que existem denúncias que desgastam setores conservadores do Catolicismo e as seitas evangélicas neopentecostais. A essas alturas o "espiritismo" brasileiro, ainda emergente aos olhos dos outros (como os próprios neopentecostais foram, nos anos 1990), é visto como a "terceira via" da fé cristã, e as investigações contra ele e seu maior representante, Chico Xavier, apavora muita gente.


Mesmo quando se coloca o rigor da Lógica kardeciana, os brasileiros preferem ficar com Chico Xavier e trocar o rigor da Razão pela zona de conforto de uma dúvida acomodada, em nome de uma fé cega que, mesmo após a morte do "médium" em 2002, blinda sua imagem mesmo diante de um passado em que o sangue de Amauri Xavier ganha um significado muito grave, ainda mais quando vemos que Flordelis também fazia, à sua maneira, um Assistencialismo similar ao do "médium", incluindo cuidar de filhos adotivos.


Afinal, Amauri foi vítima de uma campanha difamatória, acusações escalafobéticas foram feitas contra ele (como fabricar dinheiro e invadir casas), sendo alvo de rancor do próprio "meio espírita", tido como "incapaz de odiar sequer o pior dos inimigos". Tratado como um cão vira-lata, humilhado, atacado e morto por envenenamento, Amauri agora "retorna" diante do agravante de que o mito de Chico Xavier se desenvolveu através de meios arrivistas que a memória curta tenta esquecer mas que agora voltam à tona desafiando o silêncio e a complacência dos que, podendo, se recusam a investigar o "médium".