Adoração a Chico Xavier reflete complexo de vira-lata dos brasileiros

A IMAGEM PATERNALISTA DE CHICO XAVIER CONTRASTA COM SUA IMAGEM DE HUMILDADE QUE AGRADA PESSOAS QUE SOFREM COMPLEXO DE VIRA-LATA.

Que o Brasil vive um complexo de vira-lata, isso é verdade, desde que o dramaturgo e jornalista esportivo Nelson Rodrigues cunhou esse termo quando via a resignação dos torcedores brasileiros como segundo lugar da Seleção Brasileira de Futebol na Copa do Mundo de 1950, realizada no próprio país.

No entanto, esse viralatismo cultural é subestimado ou visto como naquela anedota na qual a pessoa que tem a janela de sua casa suja pensa que a sujeira está na janela da casa do vizinho. Muitos imaginam que a cultura, no Brasil, é como uma virgem sem maldades que nunca é assediada nem estuprada e que sempre diz "não" para pessoas traiçoeiras que querem dominá-la.

Não é bem assim. O Brasil vive um dos piores períodos culturais dos últimos 50 anos. A ilusão de que as redes sociais estão muito movimentadas, que reagem como "fiscais" do reacionarismo e da imbecilidade alheios, e a utopia de que a aparente diversidade cultural, vista como uma mega store de fenômenos culturais do passado, presente e futuro de infinitas possibilidades artísticas, representa por si só um "excelente período" para o país, engana até gente com certo grau de esclarecimento, mas está longe de qualquer sentido prático na nossa realidade.

Afinal, a "oferta" de inúmeras vertentes artísticas e a ilusão de que todo internauta pode se tornar sábio porque, em tese, tem "tudo" em seu acesso, não significa que a alienação e a burrice fossem evitadas. O "tudo do tudo" só faz sentido para aquele intelectual burguês ou para aquele jornalista culto que podem pagar caro para bens culturais requintados e podem apreciar aquilo que quase ninguém conhece, mas dizer que só por causa disso o Brasil "sempre tem uma cultura vibrante e em excelente fase" é um grave equívoco.

A acomodação dos brasileiros nos últimos anos coloca o Brasil numa situação perigosa comparável aos momentos que a Alemanha e a França viveram por volta de 1936, ou seja, há 85 anos. Naquela época, alemães não levavam a sério a tirania de Adolf Hitler, cuja aparência lembrava a de um vilão bonachão de comédia de pastelão, e, por isso, não passava do "palhaço" que fazia papel de ridículo como chefe da nação.

A França, por sua vez, imaginava que, em 1936, poderia continuar vivendo ou, se não for o caso, recuperar a chamada Belle-Èpoque, o auge do "século das luzes" francês, em todo o seu esplendor. No Brasil, as pessoas estão procurando algum charme perdido em 1958 ou alguma faísca do vigor cultural de 1922, vendo a salvação da pátria até no "funk ostentação" paulista ou na "pisadinha" nordestina, ou então em livros de auto-ajuda ou de diários de youtubers.

O conjunto que envolve escolaridade precária, falta de diálogos entre pais e filhos - o que complica na transmissão de valores sócio-culturais - , influência dos meios de comunicação para idiotizar a sociedade (o que facilita o lucro da mídia e das empresas anunciantes além de tornar o povo mais inofensivo e consumista), além de um ideário conservador confuso e contraditório no qual "cabem", ao mesmo tempo, um hedonismo desenfreado e uma religiosidade subserviente.

A VICIADA ADORAÇÃO A CHICO XAVIER, O "FILANTROPO" DA DITADURA

A viciada adoração que se dá a Francisco Cândido Xavier, suposto médium que deturpou o Espiritismo, segue um caminho surreal. Quando a Internet é "invadida" de textos questionando o seu mito, as pessoas reagem em silêncio, com exceção de alguns chiquistas revoltados querendo blindar seu ídolo.

Depois que esses textos são produzidos, e, não havendo um novo texto com algum questionamento, as pessoas saem da toca e voltam a elogiar o "médium" em alguma de suas pretensas virtudes. Nos últimos tempos houve um conjunto de fatos infelizes diversos e as redes sociais vieram com "Chico Xavier e a profecia da data-limite", lembrando que a "data-limite" é a marca que o "médium" deixa nas mídias digitais a exemplo da música "Evidências" da dupla Chitãozinho & Xororó.

E aí chegam famosos lembrando do "bondoso médium", internautas comuns elogiando um dos livros "psicográficos" (apesar de serem aberrantes obras que exibem abordagens históricas grosseiras e cheias de erros, o que as invalida em todo, porque "lindas mensagens" não são desculpa para salvar obras de desonestidade intelectual), e os seletivos memes que mostram um Chico Xavier adocicado, com algumas frases dele mais agradáveis e com a imagem de "fada-madrinha do mundo real" que sustenta a sua reputação entre seus seguidores e simpatizantes.

É um vai-e-volta viciado. Se ninguém critica Chico Xavier, ele "retorna" com a idolatria piegas e gosmenta. Sempre com aqueles mesmos apelos de supostas bondade e caridade, sempre com aquela emotividade tóxica do fanatismo religioso enrustido, um fanatismo que luta para não ser visto como "fanático", tanto que não são raros os que dissimulam a adoração doentia alegando que "só sentem admiração por um homem imperfeito que era apenas bom".

Fácil brincar com as palavras para disfarçar intenções reais e atitudes que poderiam dar no que as redes sociais denominam de "cancelamento". A falácia do "gente como a gente" mostra esse complexo de vira-lata na qual ninguém assume a realidade pela vidraça quebrada ou pela lixeira derrubada com a sujeira escorrendo pelo chão. Quando não dá para esconder o erro, há sempre o apelo demagógico do "quem nunca errou na vida?", passando pano sempre nos defeitos humanos, como se quisesse naturalizá-los.

E Chico Xavier é a figura exata para esse complexo de vira-lata, para essa confusão emocional que atinge a maioria dos brasileiros, misturando desonestidade com paternalismo assistencialista, vitimismo com narcisismo, autoritarismo com subserviência, preguiça com servidão, desapego com o necessário e apego ao supérfluo, na qual a baixa qualidade de vida e a ambição desmesurada coexistem, num imaginário cheio de contradições que luta para continuar sendo hegemônico no Brasil.

Chico Xavier é o "filantropo" daqueles que odeiam filantropia, não escondem suas caras de nojo quando veem os pobres nas ruas das cidades, são pessoas egoístas, reacionárias, elitistas, racistas e machistas. Mas têm uma pessoa que, tão reacionária, hipócrita e obscurantista - sim, Chico Xavier era tudo isso - , que, no entanto, pode simbolizar supostas virtudes humanas, ainda que de maneira artificial, "sendo aquilo" que as pessoas comuns não conseguem ser.

O mito de Chico Xavier, que no fundo nunca foi mais do que um "Jair Bolsonaro do Cristianismo", com aspectos de esperteza comparáveis aos de Aécio Neves e de pretensa caridade comparáveis aos de Luciano Huck, se alimenta e retroalimenta por conta dessas "fraquejadas" emotivas de seus seguidores. É como se Chico Xavier fosse, em si, o ópio do povo, tragado quando ninguém aparece para reprovar tamanha atitude, e, quando isso ocorre, o vício é logo suspenso temporariamente.

O que quase ninguém percebe é que, quando se critica o mito de Chico Xavier, não se está agindo por rancor gratuito nem por inveja de qualquer espécie. Inveja de cometer fraudes literárias, consentir com o (provável) assassinato de um sobrinho e, mesmo defendendo radicalmente a ditadura militar, ser aceito pelas forças progressistas que rejeitam o regime ditatorial? Inveja de ser falso e deturpar o Espiritismo, e ainda assim ser considerado pelos mais crédulos como "reencarnação de Allan Kardec"?

Não se tem inveja disso. As críticas vêm porque são raríssimos os brasileiros que se encorajam a ler as entranhas da literatura kardeciana. Critica-se Chico Xavier de acordo com os critérios do rigor da Razão, com base em argumentos lógicos e não por pedradas atiradas do escuro. Mas mesmo assim a fascinação obsessiva que muitos sentem pelo "médium", um sentimento preocupantemente doentio, os fazem cegos, surdos e mudos até diante da mais consistente revelação. Nem Jesus lhes conseguiria abrir os olhos.

O Livro dos Médiuns é, pelo seu conteúdo pouco compreendido até por muitos que o leem (de maneira salteada e superficial, sem raciocinar aquilo que é lido), tão indigesto para os "espíritas" comuns que o livro deveria ser apelidado de "Manual de como não cometer os erros que Chico Xavier cometeu em sua obra". Tamanhos são os puxões de orelha que, dizem os críticos da deturpação espírita, os ouvidos de Chico Xavier derramariam rios de sangue de tão puxados.

Chico Xavier é amostra de como NÃO fazer em termos de Espiritismo. Mas a fascinação obsessiva e a subjugação em torno dele - alimentada por uma rede de televisão que leva o nome do "médium" - fazem com que os brasileiros prefiram a perdição em suas vidas do que qualquer desmascaramento da figura de seu ídolo religioso. Inverte-se o recado kardeciano de que "é melhor que caia um homem do que todos aqueles que se sentirem enganados por ele". No Brasil, o que vale é "melhor que caia um país inteiro do que o mito de Chico Xavier".

E é o que vemos: um Brasil caindo, despencando, sob o altíssimo risco de viver sob uma tirania ainda mais violenta, da qual não sabemos como irá acontecer. Um renomado jornalista, Pepe Escobar, brasileiro respeitado no exterior por suas contundentes análises sob os bastidores do jogo político internacional, alertou que, se Jair Bolsonaro for eleito, poderá haver um desastre de proporções trágicas no Brasil sem precedente algum na história da humanidade. Ou seja, nosso país, que muitos imaginam ser um grande paraíso, poderá viver uma catástrofe em proporções dantescas inimagináveis.

JAIR BOLSONARO E CHICO XAVIER - É bom "jair" se acostumando com a ideia de que os dois se ligam por afinidades de sintonia, motivadas por ideias afins e trajetória arrivista semelhante.

E quando as pessoas vêm alegando que "é por isso que recorremos a Chico Xavier, pelos riscos de catástrofe que ameaçam o Brasil", respondemos: o "médium" é considerado um "pé-frio" que costuma arruinar, pelo mau agouro, aqueles que prestam alguma consideração a ele.

De Juscelino Kubitschek a Nair Bello, passando por Guilherme Fontes e o cantor Roberto Carlos, vários simpatizantes do "médium" sofreram algum azar na vida, seja perdendo entes queridos ou encontrando dificuldades que inviabilizaram ou quase inviabilizaram seus projetos pessoais.

Coitado de determinado roqueiro britânico que, só por causa de algumas derrotas no futebol, ganhou fama de azarento. Triste "raciocínio" no padrão da burrice reinante nas redes sociais. Enquanto isso, são muitas as críticas de pessoas comuns que seguem o "espiritismo à brasileira" e cultuam Chico Xavier e que reclamam de serem as primeiras visadas por assaltantes, desafetos pessoais, estupradores e assassinos em várias circunstâncias da vida. E, se não elas, são seus entes mais valiosos.

E esse mau agouro se dá por conta da desonestidade. É lamentável que Chico Xavier seja considerado o "símbolo da verdade", com tantas pessoas, idiotizadas pelo fé cega (definida sob o confuso eufemismo, no contexto "espírita", de "fé raciocinada"), sem um mínimo esforço de raciocínio, acreditando que "o que Chico Xavier diz é verdade".

Aliás, o Brasil decai porque, dos anos 1970 para cá, se adorou demais Chico Xavier, o "Jair Bolsonaro do Cristianismo". Se as pessoas se sentem ofendidas com tamanha comparação, devemos lembrar que Chico e Jair tiveram trajetórias arrivistas comuns, como se um mesmo roteiro tivesse feito para tamanhas canastrices morais, apenas substituindo "fraudes literárias" e "meio literário" por "plano de atentado terrorista" e "meio militar".

O reacionarismo de ambos é semelhante. Contra Chico Xavier e Jair Bolsonaro houve acusações de haver problemas mentais. Os lemas "Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho" e "Brasil, Acima de Tudo, Deus Acima de Todos" são idênticos, como se o lema bolsonarista fosse a tradução "gente como a gente" do lema chiquista. Ambos defenderam a ditadura militar e a julgavam ser o "melhor caminho para o progresso brasileiro". 

Especialistas dizem que, se vivo estivesse, o próprio Chico Xavier seria um apoiador radical do governo de Jair Bolsonaro. Chico Xavier seria o primeiro a rejeitar o impeachment. Conforme os especialistas, o "médium" diria com as seguintes palavras: "Não vamos transformar a ferramenta do impeachment em um brinquedo. Oremos para nosso irmão Bolsonaro governar conforme os ensinamentos do Cristo". Lembremos que Chico Xavier, em vida, era radicalmente anti-petista e declarou explicitamente contrário ao comunismo.

É desagradável considerar que Chico Xavier e Jair Bolsonaro são unha e carne e que os dois mitos têm trânsito fácil nas redes sociais, porque aparentemente os dois gozam de fachadas ideológicas diferentes. Mas os bolsonaristas que cultuam Chico Xavier são muito mais tranquilos do que os "isentos" e esquerdistas que cultuam o "médium", porque os bolsonaristas não precisam explicar, tudo se dá pela natural afinidade de sintonias. Os demais é que precisam explicar, com argumentações confusas, contraditórias e cegamente emocionais e subjetivistas, as suas posições.

A adoração a Chico Xavier é, portanto, um rol de confusões, contradições, mistificações, mitificações. O "médium" não teve a trajetória limpa que Kardec e Jesus tiveram. Pelo contrário, só mesmo no Brasil alguém com trajetória arrivista, que usurpa os nomes dos mortos, se apropria da Doutrina Espírita para deturpá-la e ainda aceita que se sacrifique um sobrinho que atrapalharia a "escadaria para o céu" do ambicioso "médium", é que é adorado de maneira mais obsessiva e doentia pelos brasileiros.

Só mesmo um complexo de vira-lata para transformar Chico Xavier em "símbolo maior das virtudes humanas", através da adoração doentia e hipócrita de uma ampla maioria de deslumbrados marcados por suas confusões mentais, típicas do referido complexo. E no terreno da confusão não há moradia para a coerência. A coerência nunca foi amiga de Chico Xavier.