"Cartas psicografadas": diversionismo contra a Teologia da Libertação

 

AMIGOS DE JAIR PRESENTE FORAM OFENDIDOS POR CHICO XAVIER, QUE SE IRRITOU COM A DESCONFIANÇA DOS JOVENS QUANTO ÀS SUPOSTAS PSICOGRAFIAS.


Em mais um apelo oportunista para crescer como movimento religioso, o "espiritismo" brasileiro vem com mais uma matéria sobre supostas cartas mediúnicas, provavelmente sob encomenda da "Federação Espírita Brasileira" (FEB). A matéria, com o constrangedor título de "Mamãe, sou eu", foi produzida pelo portal TAB, do Universo On Line, braço digital da Folha de São Paulo e associa as "psicografias" às tragédias da Covid-19.


A Folha de São Paulo é a mais recente trincheira de blindagem a Francisco Cândido Xavier e o "espiritismo" brasileiro, definido como "kardecismo" como um eufemismo para uma forma deturpada da Doutrina Espírita, em que o nome de Allan Kardec é formalmente respeitado, mas seus ensinamentos são violados não apenas de forma explícita, mas também inescrupulosa e tão abusiva quanto as bajulações e falsos juramentos de fidelidade ao professor de Lyon.


Antes, a blindagem vinha dos Diários Associados - por meio de um lobby de atores de novelas e teleteatros e de produtores e diretores de programas - , principalmente da TV Tupi, porque da parte da revista O Cruzeiro havia gente que contestava o mito de Chico Xavier, embora sabemos que a revista Manchete, do grupo Bloch, passou a dianteira ao noticiar o caso Amauri Xavier, avisando até mesmo que o sobrinho do "médium" sofria ameaças de morte do "meio espírita", o que joga querosene na fogueira da morte suspeita do jovem.


Depois, ela veio com a Rede Globo de Televisão, na medida em que os Diários Associados estavam em crise e tiveram que se desfazer de boa parte do seu espólio (hoje a empresa é dona apenas de poucas rádios). A Globo foi responsável por reinventar o mito de Chico Xavier, usando do mesmo método que o "fabricante de santos", o católico inglês Malcolm Muggeridge, fez para Madre Teresa de Calcutá.


Chico Xavier, nas mãos da Globo, tornou-se o "filantropo de novela", e sua trajetória teve ocultos os pontos negativos, criando um padrão oficial de "espiritismo" marcado pela mistificação religiosa que atinge altos graus de pieguice, dotados também de valores moralistas conservadores.


Desde que a Rede Globo ficou visada demais pela associação a Chico Xavier - que, mesmo de maneira nunca reconhecida, atua como um "pé-frio" para aqueles que manifestam alguma admiração a ele, já que estes, depois disso, estranhamente sofrem infortúnios graves e até tragédias atingem entes próximos - , as Organizações Globo resolveram amenizar a blindagem.


A empresa da família Marinho permitu até mesmo um "fogo amigo", quando, ao noticiar as denúncias contra o farsante João Teixeira de Faria, o João de Deus, o jornal O Globo admitiu que ele trabalhou durante anos para Chico Xavier e este o blindou, assim que soube das denúncias criminais já em 1993 (acusações que incluíram charlatanismo, estupro e porte ilegal de armas), lhe ofereceu o "escudo" de um casarão "assistencial" que hoje é a Casa Dom Inácio de Loyola.


Por isso, outra corporação midiática acabou se tornando o novo campo de blindagem "espírita", a Folha de São Paulo, da família Frias. Tido como uma mídia "moderna" e "isenta", apesar de ter colaborado com a ditadura militar - transportava, em suas camionetas, presos políticos - e manifestar um anti-petismo rancoroso, a Folha carrega uma imagem de "modernidade" que a faz diferenciar do concorrente O Estado de São Paulo, o Estadão, pelo fato de abraçar novidades como as causas identitárias.


Dizem rumores que a adesão da Folha ao "espiritismo" brasileiro e à figura antiquada de Chico Xavier se deu após o falecimento do seu dono, Otávio Frias Filho. Desconfia-se que essa adesão se deve a Luís Frias, na esperança de que os "centros espíritas" pudessem enviar uma mensagem atribuída ao falecido irmão designando-o para ser o herdeiro do grupo Folha. Luís e outros irmãos disputam o controle da empresa.


Vamos a um trecho da matéria do TAB:


"Às segundas-feiras, à noite, centenas de pessoas assistem a uma sessão virtual de psicografia, transmitida na página de Facebook do médium Hamilton Júnior, 24. "Acredito que ela desencarnou por covid-19, pelo que senti. E é uma criança", garante ele, referindo-se à mensagem. Foram sete cartas recebidas naquela sessão de psicografias e transcritas por Hamilton.


Mães, pais, filhos, genros, noras e até amigos enchem o espaço de comentários do vídeo, pedindo ajuda. Querem mensagem de alguém que já morreu, de maneira a amenizar a saudade ou encontrar respostas para a fatalidade. Deixam nome completo do possível remetente, data de nascimento e da morte. Rezam. Esperam. Poucos recebem. 


"Fico sempre na expectativa que minha filha vai me mandar uma carta", escreve uma seguidora, entre os 108 comentários daquela reunião — a maioria frustrada. "Oh, Deus, dê-me este merecimento, acalma minha alma, não posso acreditar que tudo acabou. Este vírus venceu e levou minha filha amada", completa a mulher. 


"Quero lembrar a vocês que toda carta que a gente recebe, a gente encontra o dono. A espiritualidade faz com que chegue até a pessoa", diz o médium. O jovem é paraibano, mas mora em São Paulo desde 2019. De família católica, adolescência evangélica e com passagem pelo kardecismo, hoje ele se define como espiritista — cuja prática religiosa contempla regras menos ortodoxas como, por exemplo, consultas espirituais virtuais".


O texto segue os clichês das narrativas oficiais que, desde, pelo menos, meados dos anos 1970, se tem das supostas "cartas psicografadas". Embora essas narrativas creditem a prática da suposta mediunidade como "positiva", sabe-se que contra ela existem acusações pesadas de fraudes como a "leitura fria" (técnica de interpretação de informações e gestos trazidos por um depoente), pesquisas literárias (revistas, jornais e outros bens escritos).


Além do texto mencionar um jovem "médium", na tentativa de buscar um novo ícone para a religião "espírita" no Brasil - cujos maiores representantes, Divaldo Franco, José Medrado e João de Deus, têm, respectivamente, 94, 60 e 79 anos, hoje - , o "isento" Hamilton Júnior, que não se declara mais "kardecista". Mesmo assim, poderá ser uma das cartas da manga do "movimento espírita", que aproveita o desgaste das seitas evangélicas "neopentecostais" para buscar hegemonia religiosa.


"CORTINA DE FUMAÇA" CONTRA O CATOLICISMO PROGRESSISTA


A aparente rivalidade entre "kardecistas" e "neopentecostais" não impede constatar que ambos foram beneficiados pela ditadura militar para neutralizar a força do Catolicismo progressista, que, através da Teologia da Libertação, estava rearticulando os movimentos populares que ameaçariam o poder da ditadura militar. Os católicos, além de estimularem a atuação de camponeses e operários na mobilização politica, denunciavam aos órgãos internacionais humanitários a violência da repressão ditatorial.


Diante desse risco subversivo, instituições como a FEB, a Igreja Universal do Reino de Deus, a Igreja Internacional da Graça de Deus e a Assembleia de Deus teriam recebido subsídios do poder militar para se fortalecerem e tirarem fiéis da Igreja Católica, com a finalidade de enfraquecer o Catolicismo que atuava como uma grande força de oposição à ditadura.


Esta denúncia faz sentido, mas falta uma investigação mais apurada que apontasse de que forma e qual valor dos subsídios a ditadura fez para as instituições, não apenas as seitas "neopentecostais", mas também ao "movimento espírita", cujo maior astro, Chico Xavier, era um defensor muito radical do regime ditatorial, chegando a definir o AI-5 como "necessário" e foi premiado pela Escola Superior de Guerra, o que traz fortes indícios de que o "médium" foi um colaborador estratégico deste regime.


As "cartas psicografadas" - que, nas mãos do UOL, vêm à tona em mais uma sutil retomada conservadora numa época de crise do governo Bolsonaro (que seria apoiado por Chico Xavier, se estivesse vivo) - eram uma armação que atuava como uma "cortina de fumaça" diante da crise da ditadura militar, e difundida pelo poder estratégico da Rede Globo de Televisão e o método Muggeridge que fez o "médium" ser tratado, até hoje, como se fosse uma fada-madrinha do mundo real e adulto.


Não bastassem as acusações de fraudes - o que valeu a reação irritada e ofensiva de Chico Xavier contra os amigos de Jair Presente, que desconfiraram da farsa - , as "cartas mediúnicas" eram, em si, um espetáculo orgiástico, porque os efeitos psicológicos das "sessões mediúnicas" eram comparados às orgias, só que sem sexo, drogas nem dinheiro, o que é mais grave, porque a emotividade tóxica é manifesta sem esses estímulos artificiais, criando danos mentais ainda maiores e de difícil diagnóstico.


O que chama a atenção é um sentido semiológico subliminar das "cartas dos entes queridos" que transformam a morte num espetáculo e a vida após a morte num pretenso mundo de fantasia. Sabe-se que o Brasil é totalmente ignorante em assuntos de "mediunidade" (na verdade, paranormalidade), se situando em um estágio mais atrasado do que países como EUA, Reino Unido e França, que, ainda que com estudos incipientes sobre paranormalidade, apresentam ainda problemas de abordagem e enigmas ainda sem solução.


O fato de que o Brasil, pretensamente, "avançou" em relação ao Velho Mundo quanto ao tema da paranormalidade, é de trazer desconfiança profunda, tamanha a facilidade com que surgem "médiuns", algo impensável diante de uma prática ainda dotada de muitos mistérios. Além disso, muitas práticas dos supostos médiuns, a partir do próprio Chico Xavier, são reprovadas pela própria obra da Doutrina Espírita, O Livro dos Médiuns, que alertava previamente de aspectos negativos observados na trajetória do religioso mineiro:


1) Uso de nomes ilustres para promover mistificação;


2) Textos empolados (pretensamente eruditos) para dar aparato de pretensa superioridade intelectual;


3) Influência de espíritos autoritários (Emmanuel, no caso de Chico Xavier) que indicam inferioridade espiritual grave;


4) Estabelecimento de datas determinadas para acontecimentos futuros, identificado pela Codificação como uma prática de espíritos inferiores e zombeteiros para intimidar as pessoas.


Diante da profunda ignorância e da fascinação obsessiva dos brasileiros por Chico Xavier, esses aspectos negativos, mesmo extremamente graves, não conseguem desfazer tamanha ilusão, na qual as pessoas se sentem hipnotizadas, mesmo postumamente, pela figura mística do "médium", o que já é uma grande aberração, porque "médium", no Brasil, está associado ao culto à personalidade, perigosa prática que não havia indícios na época da Codificação.


A espetacularização da morte tem como sentido subliminar não só a aceitação da morte de entes queridos, mas das vítimas da opressão ditatorial. Defensor de um moralismo punitivista e subserviente, próprio da Teologia do Sofrimento (corrente ultraconservadora também defendida, no seu tempo, por Madre Teresa de Calcutá), Chico Xavier transformou em espetáculo a morte prematura de brasileiros comuns, mas de forma subliminar também pedia para se aceitar as mortes dos presos políticos.


A ideia é supor que, se os brasileiros comuns "estão em situação melhor", os presos políticos estariam "em situação melhor ainda", como supostos endividados morais que "ingressaram, se não no Paraíso, em lugar próximo disso". Vale lembrar que o mundo espiritual é ainda um mistério não superado, e tudo que o "espiritismo" brasileiro definiu como "além-túmulo" é especulativo, sem fundamentação científica e tomado por paixões materialistas que tentam renegar a vida terrena como reduto da perenidade humana, mas veem o pós-morte como continuidade do materialismo da Terra.


CHICO XAVIER FOI ANTI-PETISTA DE PRIMEIRA HORA


O que se observa é que Chico Xavier - que, se vivo estivesse, não estaria entre os moderados que hoje apoiam Lula - foi um anti-petista de primeira hora, tendo manifesto o mesmo horror pela candidatura presidencial de um operário que o horror declarado pela atriz Regina Duarte.


Chico Xavier estaria, aliás, contrário ao impeachment de Jair Bolsonaro, pessoa tida como "antagônica" ao "médium" através de uma simbologia superficial e maniqueísta, mas que teve a mesma forma de arrivismo, causando controvérsias semelhantes, um com supostas psicografias, outro com plano de atentado terrorista. Além disso, Chico Xavier e Jair Bolsonaro compartilham de quase todos os valores ultraconservadores, descontado apenas o porte de armas, reprovado pelo "médium".


Daí que as "cartas psicografadas", além de servir de "cortina de fumaça" em todos os sentidos, teve como finalidade desviar as atenções do público para o então líder sindical Lula, também considerado forte opositor à ditadura militar. 


A ideia é distrair a população através de um espetáculo religioso que, embora supostamente representasse uma prática espírita, ela se rebaixa aos espetáculos mistificadores das tábuas Ouija e das mesas girantes, virando um entretenimento para os parentes dos falecidos e um motivo para a adoração a Chico Xavier, alimentada por uma emotividade tóxica.


Daí que as "cartas psicografadas", com seu apelo fortemente piegas e sensacionalista - o fenômeno rendia matérias efusivas na imprensa marrom, a única beneficiada nesse processo - , revelam um emaranhado de problemas graves, que vão desde sentimentos obsessivos pelos mortos até sentimentos egoístas que veem o "lado positivo" das mortes prematuras daqueles que tinham planos de vida que foram abortados definitivamente, já que a reencarnação dificilmente recupera o curso desses projetos vitais, devido às profundas mudanças sociais inevitáveis.


E isso mostra o quanto a matéria do TAB apela para os mesmos clichês de um "espiritismo" que se repete em suas propagandas e campanhas, sempre reforçando o apelo religioso e mistificador que fizeram com que o dito "kardecismo" esteja sempre divorciado dos mais caros ensinamentos de Kardec, em prol de uma religiosidade medieval, ultraconservadora e irracional, alimentada pela adoração, por meio de uma emotividade tóxica, a Chico Xavier.