Razões da contundente semelhança de Chico Xavier e de Jair Bolsonaro

JAIR BOLSONARO E SEU "ESCUDO".

As pessoas não conseguem admitir as semelhanças profundas entre Jair Bolsonaro e Francisco Cândido Xavier. A imagem que Chico Xavier tem entre boa parte dos brasileiros é uma imagem construída desde 1978, com narrativas trazidas por uma aliança entre a ditadura militar e a Rede Globo, que promoveram o "médium" como algo parecido com uma fada-madrinha de contos de fadas ou, se não for o caso, como um ursinho de pelúcia a abalar o sono acordado de muitas pessoas nas redes sociais.

Antes de mais nada, não custa explicar, novamente, que o "espiritismo" brasileiro, juntamente com as religiões protestantes chamadas "neopentecostais", teriam sido contempladas pela ditadura militar para se fortalecerem, como "religiões alternativas", para enfraquecer o Catolicismo, que atuava nos anos 1970 através da corrente progressista Teologia da Libertação.

Os ativistas católicos - não confundir com o assistencialismo ultraconservador de Madre Teresa de Calcutá, que aliás serviu de fonte para o marketing religioso que promoveu Chico Xavier sob o mesmo método do jornalista inglês Malcolm Muggeridge - estavam denunciando as arbitrariedades e as violações dos direitos humanos da ditadura militar, ameaçando destruir o regime feito para proteger os interesses de grupos poderosos no Brasil.

A Teologia da Libertação assistia camponeses, operários e sem-teto. Igrejas escondiam em seus aposentos estudantes perseguidos pela repressão policial. Padres ajudavam acusados de subversão política a buscar exílio no exterior. Sacerdotes e bispos católicos denunciavam atos que iam desde a tortura e morte nos porões do DOI-CODI até assassinatos de camponeses nas áreas rurais dominadas pelo poder latifundiário.

Era demais para o poder ditatorial que, não bastasse o fracasso do "milagre brasileiro", teria que lidar com as convulsões sociais internas. A "solução" necropolítica já havia sido feita com feminicídios, violência no campo, assassinatos por motivos banais nos subúrbios e roças, nos fratricídios, parricídios, latrocínios, mortes estimuladas por um sistema de valores confuso, desigual e que naturaliza a barbárie e o sofrimento humano. Medidas "desagradáveis", mas socialmente aceitas, para reduzir a população brasileira, para que a burguesia que enriqueceu demais não precise "repartir demais" o seu "bolo".

Como tolerar, dentro do projeto autoritário lançado em 1964 e reforçado com o AI-5, uma religião que se tornou uma das maiores forças de oposição à ditadura militar, expondo policiais, militares, esquadrões da morte, grandes proprietários de terras, cujos crimes ganharam repercussão nas entidades estrangeiras de proteção e defesa dos direitos humanos. Daí para a comunidade internacional atuar paradar fim à ditadura brasileira, já no fim dos anos 1970, seria um pulo.

Seria preciso uma atitude diversionista. A meta é enfraquecer a Igreja Católica, usando como desculpa a "diversidade religiosa" que nunca foi defendida de fato. Afinal, crenças como o islamismo e o candomblé, vinculadas a povos sem plenos privilégios sociais, continuaram sendo combatidas sob o silêncio do status quo, que investiu apenas no discurso da "liberdade de crença" para elevar a título de "religiões alternativas" o "movimento espírita" e as "seitas neopentecostais".

É só verificar a época. Mais ou menos 1976, 1977. Note que, de forma quase simultânea, "lideranças" como Edir Macedo, Romildo Ribeiro Soares (R. R. Soares, no momento se tratando contra a Covid-19) e Chico Xavier começaram a ter maior destaque. 

A seletividade questionadora de muitos brasileiros só admite a armadilha das seitas "neopentecostais", denunciando a Igreja Universal do Reino de Deus, de Edir, envolvida em escândalos em Angola, e a Igreja Internacional da Graça de Deus, de R. R. Soares, e a Assembleia de Deus, entre outras seitas.

Mas se esquecem que o "espiriitsmo" brasileiro se fundamentou pela deturpação dos ensinamentos kardecianos, de tal forma que Espiritismo, no Brasil, não é sinônimo da Doutrina dos Espíritos original, mas de uma forma repaginada do Catolicismo da Idade Média - tardiamente introduzido no Brasil a partir do movimento jesuíta, de tal forma que o Padre Manuel da Nóbrega virou uma espécie de "paraninfo" e "pensador", rebatizado como Emmanuel - , com algumas concessões ao Ocultismo homeopático.

A religião se propagou pela figura ultraconservadora de Chico Xavier, cujo verdadeiro perfil é dissimulado e mascarado por narrativas que hoje circulam nas redes sociais e é respaldada pela grande imprensa. São narrativas que foram montadas por volta de 1976 e lançadas dois anos depois, a partir do Globo Repórter da Rede Globo sobre o "médium", programa no qual se aplicava o roteiro de Malcolm Muggeridge, não creditado oficialmente, para promover o deturpador do Espiritismo.

Lembremos que, antes dos anos 1970, Chico Xavier era apenas uma figura pitoresca, mais digna de estar num almanaque de curiosidades aberrantes. Era uma pessoa que receberia, normalmente, admiração de pessoas que gostavam de ver atrações ilusionistas (difícil não se lembrar de Phineas Taylor Barnum, ou P. T. Barnum), fenômenos ufológicos ou figuras aberrantes como cachorro de duas cabeças ou porco de um olho, e pouco se incomodam de ver a cabeça da Tênia Solium, um tipo de verme perigoso, em close.

A imagem "agradável" que as pessoas têm de Chico Xavier não foi criação de Deus nem da Natureza, e nem surgiu com o primeiro livro, o comprovadamente fraudulento Parnaso de Além-Túmulo, um dos pioneiros da literatura fake contemporânea no Brasil. Essa imagem do Chico Xavier em modo "fada-madrinha" foi fruto dessa narrativa que a ditadura militar promoveu para enfraquecer a Teologia da Libertação, diminuir seguidores da Igreja Católica e proteger, se não a ditadura, pelo menos a sociedade elitista que a respalda e o conservadorismo social associado.

"CATÓLICO À PAISANA": OUTSIDER RELIGIOSO QUE ENGANOU ATÉ ATEUS

Devemos analisar essa imagem de Chico Xavier sem a natural complacência de pesquisadores que caem facilmente no seu canto-de-sereia, trocando a objetividade investigativa por uma complacência mistificadora, numa lamentável atitude de rendição à mitificação religiosa do suposto médium. E isso é grave no Brasil, em que se confunde a objetividade no tratamento jurídico, acadêmico e investigativo com "passagem de pano", ao ponto de ocorrerem gafes como o pós-graduando Ronaldo Terra dizer que Chico Xavier apoiou a ditadura "porque ele era santo".

Chico Xavier foi um outsider religioso moldado com os mesmos atributos de "salvação da pátria" que a figura política de Jair Bolsonaro. A propaganda para promover o "médium" foi munida de uma carga emocional tão grande que imobiliza, através não só da fascinação obsessiva quanto da subjugação  (tipos de obsessão perigosos relatados em O Livro dos Médiuns), até mesmo quem possui algum grau de esclarecimento, um mal já relatado previamente pelo livro kardeciano.

Diz a metáfora que Chico Xavier personifica o mais perigoso de todos os cantos-de-sereia, em que pese a substituição da simbologia de belas mocinhas usando caudas de peixe por um idoso de aparência normalmente repulsiva e sem atrativos estéticos. A simbologia passa a ser "metafísica", pela promessa de um "grande paraíso" a ser alcançado através da conformação com o sofrimento e a desgraça humanas.

O "espiritismo" brasileiro criava dois discursos, um para iniciantes, outro para quem está adentrado na sua doutrina. No discurso para iniciantes, é feita uma fachada atraente, da qual se vende uma imagem supostamente moderna, progressista, racional e voltada à esperança e à melhoria de vida das pessoas. É uma isca para atrair todo mundo, até mesmo esquerdistas e mesmo os ateus, aparentemente alheios a qualquer religião e à menor chance de crença em Deus.

Desse modo, o "espiritismo" brasileiro se vende como uma falsa "Teologia da Libertação", apenas por alegações de caráter superficial e emotivo. Fala-se vagamente em caridade e são feitas bajulações a personalidades como Dom Hélder Câmara e Dom Paulo Evaristo Arns. A religião "kardecista" (eufemismo para a religião que deturpa Allan Kardec) tentava se apropriar do prestígio da Teologia da Libertação católica para enfraquecer a original, através desse vínculo artificial.

Com isso, enquanto as seitas "neopentecostais" criavam uma religiosidade mais claramente bruta, voltada ao Velho Testamento da Bíblia e concentrada numa mistificação religiosa mais explícita, dotada de uma assumida formalização de seu obscurantismo (vide a evidente agenda de valores antissociais que permitiram o surgimento dos "pobres de direita" que engrossaram o apoio a Bolsonaro), o "espiritismo" brasileiro tentava promover um ultraconservadorismo mais enrustido.

Chico Xavier apareceria, então, como um suposto líder ecumênico, diferente do papel "fechado" que seus "parceiros" de aventura anti-católica, Edir Macedo e R. R. Soares, desempenhavam. De início, havia uma aparente rivalidade entre "neopentecostais" e "espíritas", até pela concorrência de quem atraía mais fiéis. 

A atuação de Chico Xavier foi mais habilidosa, por ser respaldada por uma poderosa rede de televisão na época (Rede Globo), que para enfrentar os "católicos socialistas", teve que montar um "católico sem batina" para dar a impressão de que o "médium" era apoiado por motivos "laicos" e cujo alcance tinha como finalidades criar um aparato "ecumênico" para atrair a adesão até de comunistas e ateus.

A Rede Globo tinha essa habilidade de tentar introduzir seus valores no imaginário das esquerdas brasileiras, que em 2002 se ascenderam reduzindo seus valores esquerdistas a agendas de caráter político, econômico e pedagógico. Muitos se queixavam que a mídia de esquerda, quando se tratava de pautas culturais, acolhia sem perceber valores e fenômenos que vinham do culturalismo de direita.

É certo que os neopentecostais levaram a melhor na adesão de seguidores, uma vez que se tornou a alternativa fácil de "purificação" da imagem social de criminosos, sub-celebridades e famosos decadentes, que de uma forma ou de outra refletiram no grande público que assistia a programas popularescos e, em parte, policialescos, da TV aberta.

No entanto, a blindagem maior coube ao "espiritismo" brasileiro, uma blindagem bem maior do que a que se queixava do PSDB antes que o partido sofresse uma crise através da ascensão da corrente comandada pelo governador de São Paulo, João Dória Jr.. É ilustrativo que Chico Xavier, no fim da vida, e o tucano Aécio Neves manifestassem admiração recíproca, em plena afinidade de sintonias. Aécio era o "líder" que o "médium" tanto desejou em sua vida.

A MESMA PSIQUE DOS BRASILEIROS FAVORECE CHICO XAVIER E JAIR BOLSONARO

Enquanto o "espiritismo" brasileiro possui uma fachada "positiva" que reina nas redes sociais, despistando suspeitas e intimidando a investigação crítica - mesmo quando esta segue a recomendação kardeciana de seguir o rigor da Razão - , o "espiritismo profundo" que se vê dentro dos seus meios é o contrário da imagem simpática que ilude esquerdistas e ateus, estes enganados pela fachada "ecumênica" e supostamente ativista de Chico Xavier.

O "espiritismo profundo", que difere do mundo de sonho e fantasia que a religião vende para os iniciantes, é enfrentado por aqueles que estão mais adentrados em sua prática, frequentam "centros espíritas" há meses e já leram alguns livros de Chico Xavier, Divaldo Franco, José Medrado e derivados.

Este "espiritismo profundo" é o que realmente se pratica no Brasil. Uma repaginação do Catolicismo da Idade Média, vigente no Brasil colonial, e cujos fundamentos estão mais próximos da Teologia do Sofrimento - corrente radical do Catolicismo medieval - do que da própria Codificação espírita original.

Dentro do "espiritismo profundo", o que se vê não é a esperança por uma vida melhor, mas a pregação de que se deve aceitar o sofrimento humano como suposto atalho para as "bênçãos eternas". É a doutrina do "quanto pior, melhor", da máxima "pimenta nos olhos dos outros é refresco". As liderenças "espíritas", evidentemente, não sofrem, embora usem conceitos da Teologia do Sofrimento para abafar, com poses de vitimismo, qualquer denúncia ou crítica dirigida contra eles.

E foi aí que Chico Xavier fez engrandecer seu mito, através de muito vitimismo, através do choro fácil daqueles que não querem que as críticas se dirijam a uma única vírgula do que ele fez ou disse. E isso faz com que mesmo as pessoas progressistas entrem em contradição, defendendo Chico Xavier e a religião "espírita" que apoiam pautas contrárias ao imaginário progressista.

O ideário do "espiritismo profundo", cujas fontes prioritárias são os livros de Chico Xavier, é um moralismo punitivista. A pessoa veio para sofrer, pagar as "dívidas passadas", numa vida terrena que deve ser marcada por desgraças. A pessoa é impedida até de se evoluir, porque perde o controle do seu destino e não pode ajudar a não ser três tipos de pessoas: os algozes ou agressores, os arrivistas ou aproveitadores, e os extremamente pobres (através da caridade paliativa dos donativos).

Esse moralismo é próprio da Teologia do Sofrimento que teve em Madre Teresa de Calcutá, tão reacionária e medieval quanto Chico Xavier, sua divulgadora em todo o mundo. E as ideias de Chico Xavier, presentes em seus livros, são do mais terrível obscurantismo medieval, defendendo até mesmo o trabalho servil e exaustivo, demonizando o prazer humano, tido como "fonte de pecados", e criminalizando a vítima, única culpada de seus males pessoais.

Esse moralismo punitivista, reforçado por outros escritores "espíritas", mas sempre de acordo com o ultraconservadorismo de Chico Xavier, coloca o suicídio como "crime hediondo" e o homicídio como "crime culposo", com base na tese da culpabilidade da vítima. Assassinos, embora sejam vistos como "sujeitos à ação da Justiça de Deus", têm como atenuante a atribuição de "agirem para o pagamento de dívidas morais" de suas vítimas. Já o suicida é agravado como um "covarde" que não aguentou "cumprir sua missão expiatória na Terra".

Com esse moralismo, Chico Xavier criou um imaginário que o faz bem mais próximo de Jair Bolsonaro do que se pensa. Os dois já se afinam extremamente, na forma como se ascenderam, provocando escândalos e recebendo a complacência da Justiça, defendendo ideias ultraconservadoras e usando lemas idênticos, "Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho" e "Brasil, Acima de Tudo, Deus Acima de Todos".

Muitos se revoltam com essa comparação, achando que Chico Xavier "não representa" o ódio pregado por Bolsonaro. Se baseiam essas pessoas em narrativas que adocicaram a imagem do "médium" na crendice popular, montadas pela habilidade dramatúrgica da Rede Globo durante a ditadura militar.

Esquecem essas pessoas do Chico Xavier rabugento do programa Pinga Fogo, da TV Tupi de São Paulo., em 1971. Do Chico Xavier que ofendeu pessoas pobres vítimas de tragédia num circo em Niterói. Do Chico Xavier que agrediu os amigos do falecido Jair Presente, que desconfiaram das supostas psicografias, o que fez o "bondoso médium" chamar essa reação de "bobagem da grossa", em tom bastante ríspido.

Chico Xavier pode, aparentemente, reprovar a violência e o porte de armas, mas seu moralismo é complacente com homicidas e agressores, encarados como "pessoas condenáveis", mas cujos males são vistos, em contrapartida, como "necessários" para as chamadas "Leis de Causa e Efeito", teoria moralista inventada pelos "espíritas" brasileiros para justificar a defesa desse punitivismo moral.

E é por isso que a adoração a Chico Xavier rende maldições terríveis, causando azar a todo aquele que manifestar algum apreço ao "médium". Vários famosos já viram seus filhos morrerem prematuramente depois que manifestaram essa adoração. Outros tiveram projetos pessoais dificultados ou mesmo interrompidos. Outros não puderam sequer ter jogo de cintura ou meter a cara para vencer na vida, enfrentando dificuldades intransponíveis.

É por isso que Chico Xavier, diferente do modo "fada-madrinha" ou "ursinho de pelúcia" do imaginário quase unânime nas redes sociais, plantado em 1978 para interesses político-religiosos estratégicos, criou condiões psicológicas que não só permitiram a popularização e a ascensão de Jair Bolsonaro em 2018, mas também seu fortalecimento e o risco dele ser reeleito e continuar o seu mandato.

É como se Jair Bolsonaro, pelos efeitos da Lei de Atração, fosse um protegido de Chico Xavier. "No meu menino ninguém mexe", diria o "médium", que se estivesse vivo entre nós, seria um bolsonarista tão radical que estaria, até hoje, rejeitando o impeachment pois, segundo Chico Xavier, não seria o momento de tratar o "instrumento do impeachment" um "brinquedo", pedindo para que os brasileiros "rezem" para Bolsonaro continuar governando o Brasil e construindo a "Pátria do Evangelho".

Conhecendo Chico Xavier fora das narrativas fabulosas que a grande mídia defende, a alta sociedade assina embaixo e as redes sociais alimentam, realimentam e retroalimentam, se verá um religioso medieval, obscurantista e reacionário que pode até ser entendido como um equivalente, no âmbito da religião, ao que Jair Bolsonaro é para a política, um outsider religioso, um "padre sem batina" usado para enfraquecer as práticas realmente progressistas da Teologia da Libertação católica.